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O desafio do século XXI

5 de março de 2001

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O pronunciamento do Presidente Fernando Henrique na abertura da Assembléia Geral da ONU, pelo significado e conteúdo da oração, merece, reflexão sobre os assuntos abordados, que foram vivamente aplaudidos pelos reprensentantes das Nações presentes colocando nosso País na vanguarda das postulações e reclamos dos interesses da humanidade. Reiterou a constituição imediata do Estado Palestino, com direito à sua autodeterminação e o respeito a existência de Israel como Estado soberano e como fator para que o Oriente Médio possa construir seu futuro em paz.

Os aplausos e reconhecimento recebidos no plenário da ONU, logo após a sua consagradora recepção na Assembléia na França, torna Fernando Henrique, um dos mais preeminentes Chefes de Estado, como justamente definiu o Primeiro-Ministro ingles TONY BLAIR, naturalmente, o que, enche de orgulho seus compatriotas.

Discurso do Presidente Fernando Henrique Cardoso na abertura da Assembléia Geral da ONU

Ao saudar vossa excelencia, senhor presidente, presto tributo a Republica da Coréia, que da ao mundo um exemplo de dedicação a paz e ao desenvolvimento. Reitero minha admiração ao secretario-geral Kofi Annan, que junto com a ONU recebeu a merecida homenagem do Prêmio Nobel da Paz.

Mais do que nunca, precisamos agora de sua lucidez e coragem no esforço de construção de uma ordem internacional pacifica, democrática e solidaria. Só o fanatismo se recusa a ver a grandeza da missão das Nações Unidas e de Kofi Annan.

Senhor presidente, senhoras e senhores, par urna tradição que remonta aos primórdios desta Organização, o mes de setembro em Nova Yorque é marcado por urna celebração do dialogo: a abertura do debate desta Assembleia Geral.

Nao foi assim este ano. A ação mais contraria ao dialogo e ao entendimento entre os homens marcou o mes de setembro em Nova Yorque, como tambem em Washington: a violencia absurda de um golpe vil e traiçoeiro dirigido contra os Estados Unidos da America e contra todos os povos amantes da paz e da liberdade.

Foi uma agressão inominável a esta cidade, que, talvez mais do que qualquer outra, e símbolo de uma visao cosmopolita. Uma cidade que sempre acolheu indivíduos de toda parte, como aos judeus holandeses de origem portuguesa que no Século XVII se transferiram do Brasil para a então Nova Amsterdã.

Nova Yorque cresceu, prosperou e firmou-se dentro dos valores do pluralismo. Fez-se grande e admirada não só por sua herança judaica, anglo-saxã, mas tambem pela presença árabe, latina, africana, caribenha, asiatica. Os atentados de 11 de setembro de 2001 foram uma agressão a todas essas tradições. Uma agressão a humanidade.

Como primeiro chefe de Estado a falar nesta sessão da Assembleia Geral, quero ser muito claro, como o fiz na propria manha daqueles horriveis atentados e nos contatos com o presidente George W. Bush: O Brasil empresta integral solidariedade e apoio ao povo norte­americana em sua reação ao terrorismo.

Para nós, todo o continente americano foi atingido. Daí nossa iniciativa de propor a convocação do órgao de consulta do Tratado Interamericano de Assistencia Reciproca. O terrorismo é o oposto de tudo o que a ONU representa. Destrói os princípios de convivência civilizada. Impõe o medo e compromete a tranquilidade e segurança de todos os paises. As vitimas de qualquer ato terrorista não estarão sozinhas, e seus responsaveis – individuos, grupos ou Estados que os apoiem – nao ficarao impunes.

Encontrarão nos povos livres uma aliança solida disposta a levantar barreiras contra a marcha da insensatez. A Carta das Nações Unidas reconhece aos Estados ­membros o direito de agir em auto-defesa. Isto não esta em discussão. Mas é importante termos consciência de que o êxito na luta contra o terrorismo não pode depender apenas da eficácia das ações de auto-defesa ou do uso da força militar de cada pais.

O compromisso das Nações Unidas, em 1945, foi o de trabalhar para fundar a paz e preservar as gerações futuras do flagelo da guerra. A guerra tem sempre um pesado custo humano. Um custo em vidas interrompidas, em vidas refugiadas e amedrontadas. Tudo isso realça a responsabilidade dos terroristas pelo que sucede hoje.

O Brasil espera que, apesar de todas as circunstancias, nao se vejam frustradas as ações de ajuda humanitária ao povo do Afeganistão. Mais ainda: dentro de nossas possibilidades, estamos dispostos a abrigar refugiados que queiram integrar-se ao nosso pais.

Há coisas que são óbvias. mas que merecem ser repelidas: a luta contra a terrorismo não é, nem pede ser, um embale entre civilizações, menos ainda entre religiões. Nenhuma das civilizações que enriquecem e humanizam nosso planeta pode dizer que não conheceu, em seu próprio interior, os fenômenos da violência e do terror.

Em todo o mundo, problemas de segurança publica, consumo e tráfico de drogas, contrabando de armas e lavagem de dinheiro são males afins do terrorismo, que devemos extirpar. Quero sugerir, desta tribuna, a realização de uma campanha mundial de opinião publica que conscientize os usuários de drogas em lodos as países para o fato de que estao, ainda que involuntariamente, contribuindo para financiar o terrorismo.

Se pretendemos estrangular o fluxo de recursos de que as redes ou facções terroristas se valem para espalhar a destruição e a morte, é imprescindivel reduzir drasticamente o consumo de drogas em nossas sociedades.

Alem disso, devemos evitar que as diferenças de regimes fiscais entre os paises sirvam como instrumento para a evasao de divisas essenciais ao desenvolvimento ou como proteção para as finanças do crime organizado, inclusive de ações terroristas.

Se a existência de paraísos fiscais for indissociavel desses problemas, entao nao devem existir paraísos fiscais. Coloquemos um fim a esses abrigos da corrução e do terror, ate hoje admitidos complacentemente por alguns governos.

Senhor presidente, é natural que, após 11 de setembro, os temas da segurança internacional assumam grande destaque, Mas o terrorismo não pode silenciar a agenda da cooperação e das outras questões de interesse global. O caminho do futuro impõe utilizar as forças da globalização para promover uma paz duradoura, baseada, não no medo, mas na aceitação consciente por todos os países de uma ordem internacional justa.

Sobre essa questão, tenho procurado mobilizar as varias lideranças mundiais, o Brasil quer contribuir para que o mundo nao desperdice as oportunidades geradas pela crise de nossos dias. Pensemos na causa do desenvolvimento, um imperativo maior.

Há um mal-estar indisfarçável no processo de globalização. Não me refiro a um mal-estar ideológico, de quem é contra a globalização por principio, ou de quem recusa a ideia de valores universais, que inspiram a liberdade e o respeito aos direitos humanos. Mas ao fato de que a globalização tem ficado aquém de suas promessas.

Ha um deficit de governança no plano internacional, e isso deriva de um deficit de democracia. A globalização só sera sustentavel se incorporar a dimensao da justiça. Nosso lema ha de ser o da “globalização solidaria”, em ‘contraposição a atual globalização assimétrica.

No comercio, ja é hora de que as negociações multilaterais resultem em maior acesso dos produtos dos países em desenvolvimento aos mercados mais prósperos. Os ministros reunidos em Doha tem uma pesada responsabilidade: a de fazer com que o novo ciclo de negociações multilaterais de comercio seja realmente uma “Rodada do Desenvolvimento”.

Para isso, e indispensável avançar com prioridade nos temas mais relevantes para a eliminação das praticas e barreiras protecionistas nos países desenvolvidos.

O Brasil, que vem liderando negociações para garantir maior acesso aos mercados e melhores condições humanitarias para o combate as doenças, buscara encontrar o ponto de equilíbrio entre a necessária preservação dos direitos de patente e o imperativo de atender aos mais pobres.

Somos pelas leis de mercado e pela proteção à propriedade intelectual, mas não ao custo de vidas humanas. Este é um ponto a ser criteriosamente definido. A vida ha de prevalecer sobre os interesses materiais. Senhor presidente, é necessario renovar as instituições de Bretton Woods e prepará-las para os desafios do seculo XXI.

É preciso dotar o FMI de mais recursos e de capacidade para ser um emprestador de ultima instancia, e atribuir ao Banco Mundial e aos bancos regionais o papel de promotores mais ativos do desenvolvimento.

Devemos reduzir a volatilidade dos fluxos internacionais de capital e assegurar um sistema financeiro mais previsível, menos sujeito a crises, na linha do que vem sendo proposto pelo G-20.

No mesmo sentido, embora não se ignorem as dificuldades praticas de um mecanismo como a “Taxa Tobin’, poderiamos examinar alternativas melhores e menos compulsórias. Proponho que a Conferencia sobre o Financiamento do Desenvolvimento, a realizar-se no próximo ano em Monterrey, dedique especial atenção a essas questões.

Pensemos, também, em formas práticas de cooperação para amenizar o drama da Aids, sobretudo na Africa.

Ate quando o mundo ficara indiferente a sorte daqueles que ainda podem ser salvos das enfermidades, da miseria e da exclusao? O final do seculo XX marcou o fortalecimento de uma consciencia de cidadania planetaria, alicerçada em valores universais.

O Brasil esta decidido a prosseguir nessa direção. O Tribunal Penal lnternacional sera um avanço histórico para a causa dos direitos humanos. A proteção do meio-ambiente e o desenvolvimento sustentavel sao tambem desafios inadiaveis de nosso tempo. A marcha das alterações climáticas é um fato cientificamente estabelecido, mas nao e inexoravel.

O futuro depende do que fizermos hoje, em particular com relação ao Protocolo de Kioto. É preciso encontrar a melhor maneira de implementá-lo. Ele nao pode ser posto a margem. Os eventos atuais, inclusive nesta cidade, mostram a dimensão da ameaça das armas de destruição em massa.

Quer se trate de armas bacteriológicas, como o antraz, de armas químicas ou nucleares, nao ha alternativa ao desarmamento e a não proliferação. Impedir que a ciencia e a tecnologia se transformem em arma dos insensatos e imperativo etico, que só se efetiva com a interferencia ativa e legitima das Nações Unidas no controle, destruição e erradicação desses arsenais.

Senhor presidente, assim como apoiou a criação do Estado de Israel, O Brasil hoje reclama passos concretos para a constituição de um Estado Palestino democrático, coeso e economicamente viável. O direito a autodeterminação do povo palestino e o respeito a existência de Israel como Estado soberano, livre e seguro são essenciais para que o Oriente Médio possa reconstruir seu futuro em paz.

Esta é uma divida moral das Nações Unidas. É uma tarefa inadiável. Como inadiavel é a superação definitiva do conflito em Angola, que merece a oportunidade de retomar seu caminho de desenvolvimento.

O mesmo futuro o Brasil deseja ao Timor Leste, que esperamos ver em breve ocupando seu assento nesta Assembléia como representação soberana. Para responder a problemas cada vez mais complexos, o mundo precisa de uma ONU forte e agil.

A força da ONU passa por uma Assembleia Geral mais atuante, mais pres­tigiada, e por um Conselho de Segurança mais representativo, cuja composição nao pode continuar a refletir o arranjo entre os vencedores de um conflito ocorrido há mais de 50 anos, e para cuja vitória soldados brasileiros deram seu sangue nas gloriosas campanhas da Itália.

Como todos aqueles que pregam a democratização das relações internacionais, o Brasil reclama a ampliação do Conselho de Segurança e considera ate de bom senso a inclusão, na categoria de membros permanentes, daqueles países em desenvolvimento com credenciais para exercer as responsabilidades que a eles impõe o mundo de hoje.

Como considera inerente a lógica das atuais transformações internacionais a expansão do G-7 ou G-8. Ja nao faz sentido circunscrever a um grupo tão restrito de países a discussão dos temas que tem a ver com a globalização e que incidem forçosamente na vida política e econômica dos paises emergentes. Senhor presidente, uma ordem internacional mais solidaria e mais justa nao existira sem a ação consciente da comunidade das nações. É um objetivo demasiado precioso para ser deixado ao sabor das forças do mercado ou aos caprichos da politica de poder.

Nao aspiramos a um governo mundial, mas nao podemos contornar a obrigação de assegurar que as relações internacionais tenham rumo e reflitam a vontade de uma maioria responsável. A sombra nefasta do terrorismo demonstra o que se pode esperar se nao formos capazes de fortalecer o entendimento entre os povos.

Esta Organização foi criada sob o signo do dialogo. Dialogo entre Estados soberanos que sejam suditos de nações livres, cujos povos participem ativamente das decisões nacionais. Com sua ajuda, vamos fazer com que o Século XXI não seja o tempo do medo. Que seja o florescimento de uma humanidade mais livre, em paz consigo mesma, na caminhada sensata para a construção de uma ordem internacional legitima, aceita pelos povos e ordenadora das ações dos Estados no plano global. Este é o desafio do século XXI.

Saibamos enfrentá-lo com a visao grandiosa dos fundadores desta organização, que sonharam com um mundo plural, baseado na Paz, na solidariedade, na tolerância, e na Razão que é a matriz de todo o Direito.”

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