O controle externo do Judiciário

5 de fevereiro de 2004

Cármine Antônio Savino Filho Desembargador do TJERJ

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Um novo modismo tenta se apoderar de nossos corações e mentes. Atraentes à primeira vista, “politicamente correta” para os desavisados, a tese do controle externo do judiciário pode seduzir à vastas camadas da população, neste momento histórico em que a sociedade – pretendendo passar o País a limpo – reclama das autoridades um comportamento essencialmente ético. Pessoas de boa fé, ávidas de maior responsabilidade dos poderes estatais (e não sem razão), se deixarão conduzir pelos dois principais argumentos dos defensores primeiro, que o controle externo do Judiciário virá aperfeiçoar o regime democrático. Não é verdade; segundo, que o Judiciário não tem outros controles senão os seus próprios internos. Também não é verdade. Estes são só dois primeiros, mas não únicos equívocos.

A questão não pode ser encarada como um imenso “Você Decide” nacional, em que as pessoas votam subjetivamente, de acordo com seus valores e interesses pessoais. O posicionamento exige reflexão: é legítimo este pretendido controle externo? É necessário? É conveniente? É factível? Em que ajudará à causa democrática? Quais são seus pontos mais negativos? O pensador norte-americano John Dewey certa vez afirmou que “possível é ter os fatos sem pensar, mas não é possível pensar sem ter os fatos”. Então, vamos pensar, tendo os fatos.

Primeiro, existem justificativas suficientes? Quando se fala em necessidades de controle externo, admite-se implicitamente que haja um controle interno (o que ninguém nega), contudo, insuficiente ou insatisfatório. Temos, então, de definir em que áreas há essa deficiência, sem o que não encontraremos uma razão válida. Vamos por partes: será o controle interno deficiente na seleção de pessoas que virão compor os quadros do Judiciário? Certamente que não, eis que os magistrados são sempre escolhidos mediante concursos públicos, notórios por seu grau de exigência: cerca de 90 por cento dos candidatos são reprovados. E qual seria a opção? Concursos monitorados por órgãos estranhos ao Judiciário? Com que propósito? Qual o benefício? Haverá também o mesmo controle externo para os concursos públicos do Executivo e do Legislativo? Quanto aos tribunais de segundo grau, a participação do Judiciário se limita – no preenchimento de um quinto das vagas – a formar listas alheias e remetê-las ao executivo, que livremente escolhe a quem nomear. E o que dizer do preenchimento das vagas ao Supremo Tribunal Federal? A escolha de seus ministros é feita pelo Senado Federal, por indicação do Presidente da República. Ora, certamente não é na constituição dos quadros Judiciários que se possa pretender um controle externo.

Será talvez nas finanças do Judiciário? Mas, segundo a Constituição, já existe um duplo controle externo: um na elaboração da proposta orçamentária, que é feita “dentro dos limites estipulados com os demais Poderes na lei de diretrizes orçamentárias”; outro, através do exame dos gastos perante os Tribunais de Contas, que não pertencem à esfera do Judiciário, como muitos possam pensar. Assim, também não é com relação às finanças que se legitima a tese de controle externo.

Não será também na esfera administrativa, a não ser que se crie um órgão para controlar o livro de ponto de contínuos e secretárias…Talvez os defensores da tese queiram controlar o comportamento dos magistrados como pessoas. Também neste aspecto, não faz sentido. É claro que desvios de comportamento podem ser encontrados em magistrados, pessoas humanas que são, como de resto existem em membros do Legislativo e do Executivo. Contudo, todas as corporações dispõem de mecanismos internos de controle – o Congresso, as Forças Armadas etc. – e não consta que os do Judiciário sejam menos eficazes. E fica a mesma indagação: haveria um controle externo para o comportamento pessoal de membros apenas do Judiciário, ou esse controle seria estendido a todos quantos detenham parcela de poder? Por exemplo, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal também abdicariam de seus mecanismos internos de correição em favor de um outro poder externo? Idem, idem para os oficiais da Marinha, do Exército, da Aeronáutica, das Polícias Militares? Ou só o Judiciário?

Deixamos para final a derradeira e mais perigosa das pretensões: a possibilidade de um controle externo para a função judicativa. É extremamente difícil encontrar nele algum benefício e é obviamente fácil detectar os inúmeros malefícios desse controle de ato de julgar, acima dos já legalmente estruturados na hierarquia das instâncias. Primeiro: um controlador externo teria poder de rever decisões? Órgãos revisores já existem dentro do Judiciário, próprios para confirmar ou cassar decisão de instância inferior. Constituir um órgão revisor extra-judiciário seria apenas construir outro judiciário paralelo. Resultado: decreta-se a morte do Judiciário (alguém tem dúvida?) e nada se ganha com o novo órgão controlador, sujeito às mesmas injunções do órgão controlado. Acaso os defensores da tese do controle externo já se deram conta de que estariam alterando e comprometendo irremediavelmente o equilíbrio de forças entre os poderes, que classicamente mantém em harmonia o campo de forças sociais?

Pior: cedo haveria quem reinvidicasse um novo órgão controlador para controlar o órgão controlado. Sim, porque o primeiro órgão controlador não poderia – a manter a coerência da tese original – ficar submetido a apenas seus próprios controles internos…E daí, quem controlaria o segundo, o terceiro, o quarto… não foi sem razão que o texto bíblico indaga:

_“Qui ipsos custodes custodiet?”

“Quem vigiará o vigia?” “Quem guardará o guarda?”

É preciso compreender que a neurose de sucessivos controles em nada assiste a democracia, nem de sua essência faz parte. Antes, este controle desproposital, sem sentido, inútil e maléfico, além de desestabilizar um poder estruturado, concentrará megapoderes que não honram a prática democrática, mas que são o verdadeiro objetivo daqueles que se pretendem árbitros supremos, megacensores da vontade nacional. Travestir de roupagem democrática esta orquestração ultimamente ensaiada contra o Judiciário é a melhor forma de desservir a democracia, no instante justo em que o Judiciário dá provas de sua qualidade, dignidade e preparo.

Que sejam dadas ao Judiciário as ferramentas e os recursos de que ele necessita, para aumentar sua eficiência, desenvolver a eficiência e colocá-lo mais ao alcance das desprotegidas. O Judiciário precisa, sim, de muita coisa. De tutela, não.