Edição 298
O controle de convencionalidade e o julgamento com perspectiva de gênero: o papel do Poder Judiciário no século XXI
2 de junho de 2025
Sylvia Marlene Juíza Federal na Seção Judiciária de São Paulo

O presente estudo tem a finalidade de noticiar inovação constitucional que está a exigir dos magistrados brasileiros nova postura interpretativa, diante do pluralismo jurídico que vigora neste século XXI: a prática do controle de convencionalidade e sua utilização para o julgamento com perspectiva de gênero, na abordagem interseccional.
Conforme já discorremos, os juízes nacionais converteram-se nos primeiros intérpretes da normatividade internacional, com a missão de tutelar o corpo jurídico interamericano, por meio do controle difuso de convencionalidade das leis, não cabendo proceder à mera subsunção do fato à norma jurídica. A par disso, pensamos que o princípio da dignidade da pessoa humana passa a ser o centro da ordenação jurídica mundial.
Assim, os magistrados brasileiros devem efetuar o controle difuso de convencionalidade das leis em face dos tratados internacionais, ficando reservada, aos juízes constitucionais, a declaração para a retirada da citada norma do nosso ordenamento jurídico, tal como ocorre em sede de controle de constitucionalidade.
Com efeito, “o diálogo das fontes eleva a visão do intérprete para o télos do conjunto sistemático de normas, inseridas num feixe de pluralidade normativa, em que se prestigiam os valores constitucionais e os direitos humanos, tutelando-se o sujeito vulnerável, em ajuste entre a autonomia da vontade e liberdade, confrontada com o direito à diferença e à igualdade”.
Nessa seara, o controle de convencionalidade constitui ferramenta que pode ser utilizada para o julgamento com perspectiva de gênero, julgando-se “com atenção às desigualdades e com a finalidade de neutralizá-las, buscando o alcance de uma igualdade substantiva”, como consta conceituado no Protocolo para Julgamento com perspectiva de Gênero do CNJ.
Registre-se que, em 2015, na cidade do Panamá, foi aprovado, pela Assembleia Geral do Parlatino – Parlamento Latino-Americano e do Caribe, o Marco Normativo para consolidar a Democracia Paritária, documento normativo cujo objetivo é ser referência para a “implementação de reformas institucionais e políticas que promovam e assegurem a igualdade substantiva entre homens e mulheres em todas as esferas de tomada de decisão”.
Vale destacar que, em 2021, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apresentou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, como diretriz administrativa para os membros e as membras do Poder Judiciário, mostrando-se como importante guia na trilha metodológica para a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, na abordagem interseccional do gênero, raça e etnia. A Resolução no 492, de 17 de março de 2023, do CNJ encampa vetores constitucionais para os julgamentos com perspectiva de gênero.
Anote-se, outrossim, que o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável no 5 da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) visa alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas.
Assim, pensamos que: “[…] o papel do Poder Judiciário sofreu grandes modificações no século XXI, cabendo ao juiz dizer, em cada caso concreto, qual dos princípios em conflito deverá prevalecer para solucionar o caso trazido à baila, cuja atuação é delimitada pelos parâmetros do próprio regime constitucional, e também: (i) pelo princípio da inafastabilidade de controle jurisdicional; (ii) por caber ao Poder Judiciário aplicar os valores e direitos constitucionais consoante ser o Brasil um Estado Democrático de Direito; (iii) porque os direitos e garantias fundamentais devem embeber a interpretação da Constituição e de seus destinatários; (iv) pela observância do princípio da dignidade da pessoa humana; (v) por considerar que os direitos constitucionais fundamentais, como saúde, educação, moradia etc. são de variada eficácia e aplicabilidade e demandam a integração dos vários poderes para sua total fruição pelas pessoas.”
Portanto, o Poder Judiciário assume relevante papel na garantia do respeito, da proteção e da promoção dos direitos humanos, tendo, no controle de convencionalidade de normas, excelente ferramenta para enfrentar o desafio de garantir a primazia da dignidade da pessoa humana, com a promoção da igualdade material, ao tutelar o sujeito vulnerável, em ajuste entre a autonomia da vontade e liberdade, confrontada com o direito à diferença e à igualdade, com a observação do julgamento na abordagem interseccional do gênero, prestigiando-se, assim, o disposto pelo artigo 3o, inciso IV, da Constituição Federal.
Nessa seara, o Supremo Tribunal Federal (STF), em março de 2018, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade no 4.275, reconheceu, aos transgêneros, a possibilidade de alteração do nome social no registro civil, sem a necessidade de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo ou de tratamentos hormonais, baseando-se a decisão do ministro Edson Fachin no controle de convencionalidade e na Opinião Consultiva no 24 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, segundo a qual “o reconhecimento da identidade de gênero pelo Estado é vital para a garantia do pleno gozo dos direitos humanos”.
Destaque-se, ademais, que, em abril de 2012, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no 54, o STF reconheceu que gestantes de fetos anencéfalos têm o direito e a liberdade para decidir se interrompem a gravidez, caso seja constatada, por meio de laudo médico, a anencefalia do feto – condição caracterizada pela ausência parcial do encéfalo e da calota craniana. O ministro relator Marco Aurélio de Mello utilizou-se do texto da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também conhecida como “Convenção de Belém do Pará”, ratificada pelo Estado brasileiro em 27 de novembro de 1995, cujo artigo 4o inclui, como direitos humanos das mulheres, o direito à integridade física, mental e moral, à liberdade, à dignidade e a não ser submetida a tortura, para embasar o seu voto.
Assim, cabe aos Juízes Constitucionais da Corte Suprema a retirada de norma do nosso ordenamento jurídico que não se coadune com tratados internacionais de direitos humanos, especialmente para o julgamento sob o enfoque da perspectiva de gênero, em sua abordagem interseccional.
De outro lado, aos magistrados brasileiros compete a realização do controle difuso de convencionalidade, harmonizando eventual conflito de normas que possa haver entre normas de direito interno e internacional, ao analisarem o caso a ser julgado, devendo eleger a primazia do tratado internacional de direitos humanos, a fim de que seja resguardada e promovida a dignidade da pessoa humana em busca de concretizar o direito à igualdade de gênero.
Concluímos, portanto, no sentido de que o papel do Poder Judiciário, no século XXI, está ligado à tutela do corpo jurídico interamericano, por meio do controle de convencionalidade das leis. Pensamos que o Poder Judiciário constitui-se como guardião do direitos humanos fundamentais, em especial, neste estudo, para o julgamento sob a perspectiva do gênero, valendo-se, para tanto, do controle de convencionalidade, quer na modalidade difusa ou concentrada, como um instrumento para promover a igualdade substancial, promovendo “o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, de acordo com um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, de acordo com artigo 3o, inciso IV, da Constituição Federal.
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