O consumidor, o registro público e o financiamento de veículos

14 de fevereiro de 2013

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Cartórios existem no mundo inteiro. São unida­des estatais que cumprem função notarial-registral, visando proteger a fé pública e a segurança jurídica concreta. O povo tem essa compreensão: os negócios importantes devem ser lançados em notas e registros públicos. Um documento registrado ganha em eficácia e paz social no curso das gerações. Quem se expõe aos contratos “de gaveta”, aos recibos informais, à só palavra ou ao “fio do bigode”, assume riscos que muitas vezes arrastam a litígios intermináveis.

Certos setores da economia, porém, apoiados no clichê que prega o rebaixamento do chamado Custo Brasil, têm destravado críticas acerbas contra certos registros públicos. Valem-se da mentira como método, para desacreditar e confundir, produzindo uma espécie de geléia geral. A questão central é criar condições a um modelo de mercado livre de regras, nomeadamente o comércio bancário que prega a desregulamentação do crédito, cada instituição tendo o controle final dos contratos e das garantias.

Nas relações creditícias, o problema da falta de regras e fiscalização é a adoção de práticas abusivas, fomentando uma espécie de mercado negro. Isto explica a má vontade contra os cartórios, por atuarem dentro da estrita legalidade, preventivamente, a prol do equilíbrio e maior respeito às partes contratantes. Demais disso, os registros públicos são fiscalizados pelas Corregedorias Gerais da Justiça, o que mais reforça a excelência dos serviços e a exação dos emolumentos, afastando irregularidades.

Platão discorreu sobre o mundo real e o ideal. Afirma que a realidade é relativa e mutável, sujeita a revisões até o conhecimento definitivo. O ideal é permanente porque as ideias não morrem. Pois bem. É inegável o choque entre esses dois valores das ações humanas – o real e o ideal –, tantas vezes postos em oposição, maior, se em jogo interesses econômicos, apegados à maximização dos resultados. É óbvio que o ideal é regulamentar o crédito bancário, em defesa do consumidor, mas os empresários do setor preferem suprimir o registro público, sob a falsa premissa de que o interesse do credor é o único a tutelar.

Admitir isso é fazer gol contra. Exaltar a informalidade é zombar do cidadão-consumidor, deixando-o com um simples carnê à mão e cara de bobo. Sem cópia do contrato, o devedor fica apeado de seus direitos fundamentais. Tudo pode acontecer, revela o cotidiano forense. Não importam as queixas de adulteração do pactuado. Daí que o consumidor, ainda quando vitorioso, termina vítima das tarifas e despesas acrescidas aos financiamentos, tudo somado ao peso extorsivo das taxas de juros. Por pior que seja a condenação, a maior vitória será sempre do financista.

Num regime político firmado nos valores do Estado Constitucional e Democrático de Direito, para não parecer obra de fachada, a lei tem de valer para todos, ou não será mais lei e sim meio de dominação. O valor da segurança jurídica, assegurado pelo registro público, é anseio antiquíssimo, como noticia a História, nas figuras do escriba, no antigo Egito, e dos tabelliones, na Roma imperial, em contínua evolução até os nossos dias. A Escola de Bolonha, na Itália, anotam os historiadores, fixou a base científico-institucional do notariado moderno. Com efeito, os atos e negócios passados à vista de um notário ou registrador, uma vez selados pela fé pública, portam a marca da correção, geralmente a salvo de vícios e impugnações.

Ninguém ignora a necessidade de aprimoramento do sistema notarial-registral. Ocorre que as reformas circulam além da ação dos delegatários que obedecem à estrita legalidade. Sem o empenho das Corregedorias estaduais e do Conselho Nacional de Justiça, estabelecendo metas e comandos regulatórios, nada será operacionalmente viável. O que não se pode é misturar conceitos, para exaltar a liberdade de contratar, com supressão do registro público, porque isso importa em expor a sociedade a um padrão perigosamente anárquico, relegando à Justiça, em todos os casos, o acerto final das contas abusivas.

O fato é que os financiamentos para compra de carro atraíram empresas privadas interessadas em controlar o registro administrativo das garantias. Negócio de bilhões. As investidas mais duras remetem ao Código Civil de 2002 que teve a redação da parte final do § 1º, do artigo 1.361, alterada no Senado da República. Num passe de mágica, a conjunção “e” virou “ou”. Na lei, nenhuma palavra é inútil. A sintaxe do “ou”, no caso, significava afastar do registro público, fiscalizado pelo Judiciário, os contratos de alienação fiduciária de veículos, transferindo-os ao domínio dos órgãos de trânsito.

Dir-se-á: que bom, simplifica. Eis o canto da sereia. Os Departamentos Estaduais de Trânsito são mero sáculo de dados de programa operado por empresa privada que cobra cada anotação de gravame, afora as taxas administrativas. Tudo rápido, o credor protegido. E o devedor-consumidor? Resposta também rápida: fica apenas com a obrigação de pagar o que lhe for cobrado, pena de perder o veículo liminarmente, em ação de busca e apreensão. Não recebe sequer cópia do contrato do financiamento que assina em branco. Não é só. Na hipótese de cancelar o gravame, em juízo, a ordem judicial dependerá do arbítrio da empresa privada que opera o sistema, autônoma e soberanamente.

Ora, os direitos básicos do consumidor demandam, de um lado, a responsabilidade civil dos bancos e financeiras. Por outro, apontam aos deveres do Estado de assegurar e implementar os meios hábeis de sua defesa, conforme impõe a norma dos artigos 5º, XXXII, e 170, V, da Constituição cidadã. Cabe ao Poder Público adotar todas as medidas necessárias a mais plena e eficaz defesa do consumidor de crédito, o que inclui o dever de aprimorar a fiscalização preventiva, lançando campanhas de mobilização pública voltadas a desestimular os atos ilegais ou de abusividade.

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, afinado à legalidade constitucional, declarou a inconsti­tucionalidade da parte final do § 1º, do artigo 1.361, do Código Civil, tendo o STF admitido o Recurso Extraordinário ao crivo da repercussão geral. Da proteção e defesa do consumidor, especialmente o de crédito, decorrem obrigações e deveres, na forma dos artigos 6º e 7º da Lei 8.078/1990, a cumprir mediante políticas focadas na prevenção, informação e conscientização pública.

Afinal, ter a propriedade de um automóvel é um desejo legítimo, sendo ainda condição e pressuposto da liberdade de locomoção e lazer, dois direitos sociais seriamente afetados ante a precariedade dos transportes públicos. Impossível alcançar o ideal imerso no real das coisas. Mas há que lutar, sabendo que o poder econômico real sempre desafiará o ideal para subjugá-lo aos seus próprios propósitos e, nessa via escura, vulnerar o registro público centrado no interesse geral da sociedade, com destaque à defesa dos consumidores de crédito bancário.