Edição 290
O caminho rumo à igualdade de gênero no Poder Judiciário
4 de outubro de 2024
Adriana Ramos de Mello Desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro / Professora do Mestrado Profissional da Enfam / Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Direitos Humanos e Acesso à justiça da Enfam

A Declaração e Plataforma de Ação de Pequim (1995) foi um documento adotado na IV Conferência da Mulher na China, considerada uma das mais importantes realizadas no âmbito das Nações Unidas. O evento, que contou com ativa participação do Brasil, reuniu mulheres de vários países com o objetivo de dialogar sobre os avanços obtidos até então nas conferências anteriores (Nairobi, 1985; Copenhague, 1980; e México, 1975), criar ambiente de conscientização sobre a situação de discriminação e inferioridade em que se encontram as mulheres em várias esferas e propor soluções para atingir a efetiva igualdade de gênero.
A plataforma identificou 12 áreas de preocupação prioritária, entre as quais a desigualdade de gênero em relação à participação no poder político e nas instâncias decisórias. O legado constante da declaração e da Plataforma de Ação de Pequim é enorme, mas ainda precisa ser efetivado no Brasil.
Dentre as medidas que os governos deveriam adotar, havia a de estabelecer meta de equilíbrio entre mulheres e homens, inclusive no Poder Judiciário, se necessário, mediante ação afirmativa em favor da mulher; monitorar e avaliar os progressos obtidos na representação das mulheres, mediante coleta, análise e divulgação regular de dados sobre sua presença em diversos cargos de tomada de decisões; criar ou fortalecer, conforme o caso, mecanismos para supervisionar seu acesso aos níveis superiores do processo de tomada de decisões; rever os critérios de seleção e nomeação para os órgãos consultivos e de tomadas de decisão, e de promoção a postos mais elevados, para assegurar que esses critérios sejam pertinentes e não discriminem a mulher (Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, 1995).
Observa-se, contudo, que a participação feminina no Poder Judiciário ainda é uma agenda pendente. Em 2019, o Conselho Nacional de Justiça realizou diagnóstico da participação feminina e apontou que o Poder Judiciário brasileiro é composto em sua maioria por magistrados do sexo masculino, com apenas 38,8% de magistradas em atividade. A participação feminina na magistratura é ainda menor se considerarmos o total de magistrados que atuaram nos últimos 10 anos, com 37,6% (CNJ, 2019). Nos tribunais superiores, o percentual de magistradas diminuiu de 23,6%, nos últimos 10 anos, para 19,6%, ao considerarmos somente as magistradas em atividade (CNJ, 2019).
Quando se analisa o percentual de magistradas ingressantes na carreira entre 2000 e 2022, observa-se que os valores nunca alcançaram 50%, apenas oscilaram entre 35% e 46% ao longo da série histórica. O percentual nacional de juízas no Poder Judiciário é de 38% – o mesmo registrado em 2019 (CNJ, 2023). A Justiça do Trabalho é o ramo com maior presença de magistradas: 49% do total.
No Conselho Nacional de Justiça, órgão responsável por criar políticas públicas judiciárias, a desigualdade de gênero na composição ainda é manifesta. Segundo relatório de pesquisa produzido pelo Núcleo de Estudos e Pesquisa em Gênero, Direitos Humanos e Acesso à Justiça do Programa de Pós-graduação Profissional em Direito da ENFAM, as mulheres sempre foram minoria na composição. Dos 124 ocupantes dos cargos de conselheiros até 2022, apenas 24 eram mulheres, para 96 homens (ENFAM, 2022).
Nas questões raciais, os dados demonstram a reduzida participação de pessoas negras no Poder Judiciário brasileiro. São apenas 12,8% do total de magistrados, mesmo com a instituição das cotas étnico-raciais desde 2016, revelando que as ações afirmativas ainda não têm sido suficientes para o efetivo ingresso da população negra no Poder Judiciário (CNJ, 2023).
Para incentivar a participação feminina no Poder Judiciário, o CNJ vem implementando resoluções e recomendações aos tribunais para dar efetividade à igualdade de gênero, a exemplo da Resolução 255/2018, que instituiu a Política Nacional de Incentivo à Participação Feminina no Poder Judiciário, e a Resolução no 525/2023, importante ação afirmativa de gênero, garantindo às juízas de 1o grau o acesso aos tribunais de 2o grau pelo critério de merecimento, com observância das políticas de cotas raciais instituídas pelo CNJ, dentre outras.
Vale destacar a importância do movimento nacional pela paridade de gênero no Judiciário, iniciado em 2023, após realização de evento pelo CNJ, que tem acompanhado de perto os avanços obtidos com a Resolução 525/2023 (CNJ), resultando em 12 magistradas promovidas pela ação afirmativa.
Outro avanço refere-se ao protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, lançado em 2021 pelo CNJ/ENFAM, importante ferramenta para auxiliar juízes/as de todos os ramos da justiça sobre como julgar com perspectiva de gênero, e a Resolução 492/2023 (CNJ), que estabeleceu a obrigatoriedade de adoção da perspectiva de gênero nos julgamentos em todo o Poder Judiciário além da necessidade de capacitação de magistrados e magistradas, relacionada a direitos humanos, gênero, raça e etnia, em perspectiva interseccional.
Os eventos anuais promovidos desde 2021 pelo CNJ – “As mulheres na justiça: novos rumos da Resolução 255/2018” – também têm sido relevante contribuição para a igualdade de gênero. Neles, magistradas de todos os ramos e rincões do país se reúnem para debater avanços obtidos e propor novas ações visando a efetividade da igualdade material e a participação das mulheres no Poder Judiciário brasileiro.
O grande desafio, portanto, é dar efetividade às ações afirmativas instituídas pelo CNJ e monitorar o cumprimento dessas resoluções por todos os tribunais do país para que se traduzam na real participação feminina no Poder Judiciário.
Sabe-se que as mulheres enfrentam barreiras e dificuldades no acesso aos espaços de poder, dentre elas, a divisão sexual do trabalho, uma vez que às mulheres sempre esteve designado o trabalho de cuidado doméstico-familiar, tão invisibilizado e não remunerado, somada aos estereótipos de gênero que as prejudicam tanto no acesso à justiça, quanto nos espaços de poder. Eliminá-las, portanto, é passo fundamental para a garantia do princípio da igualdade previsto na Constituição Federal de 1988 e nos compromissos internacionais de direitos humanos assumidos pelo Brasil.
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