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Novos tempos, novo Código Civil

5 de janeiro de 2003

Membro do Conselho Editorial / Professor Titular Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UniRio)

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A sociedade brasileira inicia uma nova etapa na proteção dos direitos civis com a vigência do novo Código Civil, promulgado noventa anos depois do famoso Código de Clóvis Bevilácqua. Este Código de Bevilácqua sofreu profundas críticas dos juristas e advogados brasileiros porque seria pouco expressivo da nossa realidade. Rui Barbosa, dentre eles, alegava que sua estrutura lingüística dificultava os efeitos modernizadores do documento que nascia atrasado no tempo. À época, afirmava-se e, mesmo, posteriormente, que o Código fora promulgado com cem anos de atraso, principalmente considerando os anteriores e frustrados esforços do jurista Teixeira de Freitas.

O novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 11 de janeiro de 2002), na mesma linha, vem recebendo diversas críticas da comunidade jurídica, pelas suas disposições de mérito e, também, por sua retração temporal. Estas observações permitem questionar, por um lado, a atualidade do velho Código e, ao mesmo tempo, uma presumível defasagem cronológica do novo Código. A questão, em si, demonstra a necessidade de reavaliação dos regulamentos da vida civil, fortalecendo as decisões interpretativas dos tribunais sobre o velho Código ou adaptando a legislação à realidade atual. Qualquer das posições indicam que os novos tempos exigem novas disposições sobre a vida civil.

Neste sentido, através da imprensa, e dos debates acadêmicos, duas grandes vertentes têm presidido os pronunciamentos sobre o novo Código: aqueles que presumem-no intempestivo e aqueles que admitem a sua posição inovadora. Os primeiros, sem considerar que o velho Código nascera desatualizado, entendem que a legislação subsequente e a jurisprudência dos tribunais o têm modernizado, tornando-o um documento aplicável à vida social moderna. Os segundos, entendem que o novo Código sintoniza a ordem jurídica à vida social, corrigindo uma defasagem centenaria, o que mostra as profundas dificuldades de conexão entre as relações sociais e as proposições normativas de regulamentação.

O novo Código Civil, todavia, em que pese os posicionamentos críticos, e as resistências à sua realização conceitual, é um significativo esforço de adaptação das regras da vida civil à Constituição brasileira de 1988. Este novo Código absorve os parâmetros constitucionais diretivos, permitindo, pela primeira vez na história do Direito civil brasileiro, que a Constituição seja reconhecida como o pressuposto da compreensão da ordem civil, evitando a tendência interpretativa tradicional de reduzir os textos constitucionais às regras civis. Por outro lado, duas novas orientações devem complementar esta perspectiva interpretativa: o novo Código consolida as inovações legislativas anteriores sobre a mesma matéria projetando-as para o futuro e, ao mesmo tempo, absorve os novos padrões referenciais da moderna legislação brasileira sobre o Direito do consumidor, o Direito comercial e o Direito de concorrência.

Esse novo quadro combina, como se verifica, dimensões abertas da nova ordem jurídica brasileira, que ampliam os fundamentos jurídicos dos direitos civis, com significativos efeitos sobre os padrões de cidadania. Dentre estes efeitos podemos classificar a redefinição das funções sociais do contrato e da propriedade, os pressupostos da boa-fé contratual, a introdução da responsabilidade objetiva e da inversão do ônus da prova, uma firme postura sobre as cláusulas de natureza abusiva e, um visível partilhamento da responsabilidade dos cônjuges nas relações de família e, ainda, a redução da capacidade civil para dezoito anos, redefinindo o papel dos jovens no mercado de trabalho e nos diferentes patamares de obrigações civis.

Esta especial situação fortalecerá o papel dos juízes e, conseqüentemente, do Poder Judiciário, na redefinição conceitual dos institutos jurídicos civis e na sua aplicação. O Poder Judiciário renasce forte para a vida civil, abrindo aos advogados amplos espaços de argumentação interdisciplinar, fugindo a sua formação dogmática tradicional, e fortalecendo as possibilidades decisórias dos juízes. Ampliando os seus poderes de aplicação hermenêutica. Finalmente, mesmo que o novo Código exija uma interpretação extensiva para alcançar as novas dimensões da vida social, suscetíveis de influência ética, científica e tecnológica, estamos diante de um documento que abre as concepções do Direito civil brasileiro para novas perspectivas da modernidade social.