Notas sobre a moral no juspositivismo

30 de agosto de 2022

João Batista do Rêgo Júnior Procurador do Estado do Tocantins

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Algumas decisões do Poder Judiciário inquietam a pessoa comum (e mesmo os experts) em razão de, aparentemente, estarem divorciadas da previsão do texto legal. Em boa medida, esse descompasso entre a previsão do texto escrito e o decidido pode ser explicado pela forma de raciocínio desenvolvido pelo aplicador. Outras vezes, decorre do grau de vagueza ou abertura que o texto normativo permite por suas próprias características. Mas um ensaio de resposta que mais causa palpitação é a relativa a utilização de argumentos ou critérios morais como parâmetro de validade para determinada conduta.

Essa hipótese atrai uma discussão que ocupa o espaço jusfilosófico de há muito no tocante à necessidade ou não da inclusão da moralidade como um elemento inerente ao reconhecimento do Direito válido. O presente artigo visa esboçar brevemente a respeito da celeuma relativa à inclusão de critérios ou argumentos morais na regra de reconhecimento do Direito.

Positivistas, antipositivistas e leis injustas – As teorias conceituais do Direito podem ser reunidas em duas grandes categorias: positivistas e antipositivistas. Os positivistas asseguram que o conteúdo do Direito é um artefato que é inteiramente manufaturado através de certas atividades sociais (Himma, 2019, p. 9). Assim, o conteúdo do critério de validade é determinado inteiramente pelas atividades sociais daqueles que fazem, julgam, e aplicam o que eles caracterizam como Direito.

Por sua vez, os antipositivistas são tradicionalmente interpretados por negar que o conteúdo do critério de validade é determinado por nossas práticas (Himma, 2019, p. 10). Para esta perspectiva, é condição conceitualmente necessária para uma norma contar como um Direito válido que o conteúdo dela se conforme com algum padrão moral objetivo estabelecido.

No grupo antipositivista, destaca-se a teoria clássica do Direito natural que afirma que uma “lei injusta não é lei”. Numa intepretação possível, Himma sugere que a alegação será de que uma norma positivada injusta não é “moralmente” vinculativa, e não que uma norma positivada injusta não é “legalmente” vinculativa. Himma cita Brian Bix, para quem a afirmação “uma lei injusta não é uma lei” “no sentido mais completo” do termo. Isto é, ela não carrega a mesma força moral ou oferece as mesmas razões para ação que vem de leis consistentes com o Direito no mais alto sentido.

A aparente convergência no tocante a resolução afirmativa da questão se leis injustas são leis, não diminui a relevância da visão antipositivista (Direito natural e intepretativismo dworkiano), indicativa da necessidade de considerá-la como uma verdade conceitual que uma lei injusta não pode ser lei.

Positivismo inclusivo e exclusivo Há diferentes formas de se traduzir o que rotulado por positivismo jurídico; mas, por óbvio, radicadas na tentativa de afastar as formas do Direito de fundamentos morais. Devendo-se destacar três teses núcleos (Himma, 2019, p. 15).

A tese da separabilidade, que postula ser possível conceber um sistema jurídico no qual o critério de validade não inclui restrições morais no conteúdo da lei. A tese do artefato, que aduz que o Direito é, por natureza, um artefato no sentido que o conteúdo de toda norma que conta como Direito é inteiramente determinado por certas atividades sociais. E, por fim, a tese da convencionalidade, que informa que em todo sistema jurídico conceitualmente possível, o conteúdo do critério de validade é determinado plenamente por uma regra de reconhecimento que é convencional no caráter. Expressa a visão de Hart (2009, p. 132) para quem a regra de reconhecimento é uma regra convencional do sistema na medida em que os funcionários tem o ponto de vista interno em direção a ela e geralmente conformam seus atos legislativos e judiciais para seus requerimentos.

Essas teses são agnósticas com respeito a questionar se é possível conceitualmente para um sistema jurídico ter critério moral de validade. Emergindo, dessa questão, duas posições principais. A primeira posição é ocupada pelo positivismo inclusivo que admite ser possível conceitualmente para um sistema jurídico incorporar critério de validade moral. Outra posição, mais radical, é rotulada de positivismo exclusivo, na qual o critério de validade é esgotado pelo critério baseado na fonte que tem a ver com a maneira pela qual uma norma é promulgada como Direito.

Em geral, as discursões a respeito da inclusão ou não de razões ou argumentos de cunho moral no critério de validade jurídica podem ser agrupadas nas duas posições inclusiva e exclusiva, vistas acima.

A separação positivista entre Direito e moral: um mito? – Gardner (2001, p. 34-35) questiona e chama de mito a crença de que o positivismo jurídico endossa a afirmação de que não haveria nenhuma conexão necessária entre o direito e a moralidade. 

O autor considera a tese absurda e esclarece que o mito da desconexão parece que surgiu da obra inicial de Hart. Em uma muito citada nota de rodapé, Hart confundiu o aval de Bentham e Austin do positivismo jurídico – notadamente a observação de Austin de que “a existência da lei é uma coisa; seu mérito ou demérito é outra” – como um endosso de que não há conexão necessária entre Direito e moralidade. No entanto, páginas depois Hart esclarece que não queria endossar a tese do “nenhuma conexão necessária” ao falar que toda lei exibe necessariamente um mérito moral redentor, um traço de justiça que vem do mero fato de que a lei é uma norma geral que deve tratar os casos de forma parecida. Assim, para Hart, este traço de mérito moral embutido em toda lei claramente forja uma necessária conexão entre Direito e moralidade.

Apesar desse esclarecimento e da negativa de Gardner quanto à tese do “nenhuma conexão necessária”, é importante pontuar a tese da separação sob a perspectiva do positivismo jurídico exclusivo, visto que sob tal ótica a tese refutada ganharia fôlego e reforço.

A tese da separação sob o ângulo do positivismo jurídico exclusivo preconiza que não há uma relação necessária entre o direito e a moralidade. Mas essa afirmação deve ser vista com temperamentos, pois levada a extremo se tornaria a tese do “nenhuma conexão necessária”.

O Direito, no positivismo jurídico exclusivo, é separado da moral num nível específico. Ele é autônomo em relação a moral no nível da validade jurídica, não existindo a afirmação que o Direito é separado da moral no nível do conteúdo ou da aplicação do Direito. Portanto, não se está dizendo no positivismo jurídico exclusivo que nenhuma norma jurídica jamais coincide com uma norma moral. Isso seria um absurdo, como disse Gardner, e claramente falso.

Conclusão – Na tentativa de compreensão da aparente imprevisibilidade do Direito, percebe-se, na verdade, que a inquietação dos leigos, e até de alguns profissionais, diz respeito à segurança jurídica, previsibilidade, que o Direito (positivo) aparentemente prometeu e, na prática, não fornece.

O compromisso do positivismo jurídico é primordialmente com a identificação do Direito válido e não necessariamente com a defesa da segurança jurídica. Ainda mais quando ela, segurança jurídica, é apontada como um valor em si mesmo, cuja carga de subjetividade e a falta de uma positivação geral não permitem sua prevalência em relação a outros valores igualmente garantidos pelo sistema jurídico.

Devemos admitir, ainda, que o Direito positivo prima por evitar um fundo de desacordo e incerteza moral (Alexander; Schauer, 2007, p. 1583) que visam evitar o prolongamento das controvérsias. Por isso, Alexander e Schauer advogam (2007, pp. 1583-1584) que uma das principais funções do Direito, senão a única principal, é função resolução (liquidação). Sendo logicamente razoável que o Direito consulte um domínio (campo) limitado de razões.

Nesse contexto, concordamos com a análise e conclusão de Alexander e Schauer (2007, p. 1586) que a conexão do Direito com a moralidade é por isso uma relação complexa, cuja complexidade é diretamente uma função do papel que o Direito serve em uma sociedade não ideal na qual a incerteza e o desacordo são penetrantes. Por isso, determinação jurídica é certo núcleo da função moral, e o Direito serve à função moral de reduzir custos morais do erro, do conflito, da falta de coordenação e de tomada de decisões que consomem tempo e recursos, alegando autoridade prática para seus comandos mais determinados.

REFERÊNCIAS_______________________

ALEXANDER, Larry; SCHAUER, Frederick. “Law’s limited domain confronts morality’s universal empire”, 48 Wm. & Mary L. Rev. 1579 (2007). Disponível em: https://scholarship.law.wm.edu/wmlr/vol48/iss5/4 

GARDNER, John. “Legal positivism: 5 ½ myths”. University of Oxford, 2001.

HART, H. L. A. “O conceito de Direito. 1ª edição. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

HIMMA, Kenneth Einar. “Morality and the nature of law”. Oxford: Oxford University Press, 2019.

SHECAIRA, Fábio P. & STRUCHINER, Noel. “Teoria da argumentação jurídica”. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Contraponto, 2016.