“Não é dado a nenhum governante o poder de desprezar a vida”

16 de abril de 2020

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Entrevista com a Presidente reeleita do Instituto dos Advogados Brasileiros, Rita Cortez

No final de março, Rita Cortez foi reeleita presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), a mais antiga entidade jurídica das Américas. A não apresentação de chapa concorrente indicaria, segundo a dirigente, que “independentemente do pluralismo de ideias, os advogados querem manter o IAB no caminho da defesa dos valores democráticos e do aprimoramento do ordenamento jurídico”. Nessa entrevista concedida à distância, durante a quarentena do novo coronavírus, ela apresenta sua visão sobre como o Instituto deve cumprir estes objetivos, bem como se posicionar contra as fake news e em defesa da educação, da cultura e das prerrogativas dos advogados.

Revista Justiça & Cidadania – Quais são as metas da nova gestão?

Rita Cortez – Manter o IAB como referência jurídica no País e somar esforços com outras respeitáveis instituições e entidades de representação, para atuar na defesa da soberania e da legalidade constitucional e democrática do Brasil. Queremos também executar alguns poucos pontos da plataforma eleitoral de 2018 que não foram implementados. São eles: a ampliação de benefícios sociais; a revisão do estatuto e regimento interno; a legitimação ativa do IAB para atuação judicial direta calcada nos pareceres técnicos das comissões temáticas; a efetivação dos cursos de extensão e pós-graduação através da Escola Superior do IAB, e a participação ativa na Conferência Nacional da Advocacia.

RJC – Qual papel o IAB pode cumprir na crise do novo coronavírus?

RC – Como instituição jurídica com 176 anos de existência, que nunca deixou de atuar historicamente ao lado do povo brasileiro nos momentos mais difíceis e sofridos, é nosso dever colaborar para que haja a superação da crise sanitária e social trazida pelo avanço do covid-19 com o menor número de vítimas. A mensagem do IAB é a de que precisamos, prioritariamente, salvar vidas, endossando e difundindo todas as recomendações e orientações dos órgãos mundiais de saúde e autoridades sanitárias competentes. Nossas comissões temáticas já estão trabalhando nas Medidas Provisórias 927 e 936, que versam sobre alterações e restrições trabalhistas. Apreciaremos também a MP 928, que suspende os prazos para atendimento aos pedidos feitos via Lei de Acesso à Informação. O IAB, por meio da Comissão de Direito Penal também subscreveu, com outras entidades, carta aberta ao STF conclamando uma série de providências diante do alastramento do covid-19 no sistema prisional. Mais recentemente, elaboramos, em tempo recorde, parecer sobre o PLS nº 1.179/2020, do Senador Antonio Anastasia, que cria, para funcionamento no período da pandemia, o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET).

RJC – Como têm se saído os governantes brasileiros na resposta à epidemia?

RC – Não é dado a nenhum governante o poder de desprezar a vida humana. Um chefe de Estado não pode, sob pena de imputação da responsabilidade civil, administrativa e criminal, desorientar a população com falsas notícias ou dados inverídicos, em um momento tão grave e agudo de alastramento da pandemia, indo de encontro às orientações dos órgãos mundiais de saúde. Na opinião de especialistas da área penal, chega a ser criminosa a letargia do Governo em sancionar medidas paliativas à crise já aprovadas pelo Congresso.

RJC – Considera factível a proposta de isolamento vertical defendida pelo Presidente da República, dadas as condições demográficas e de saneamento básico da população brasileira?

RC – O isolamento horizontal é a recomendação dos cientistas, médicos e profissionais de saúde que lidam com a pandemia. O presidente parece querer defender o indefensável ao propor o isolamento vertical. Para além da desigualdade social absurda, a pandemia, infelizmente, expõe os graves problemas existentes no Brasil, notadamente aqueles verificados no sistema de saúde e no saneamento básico.

RJC – Quais aspectos jurídicos devem ser observados para equilibrar medidas de apoio ao empresariado com a garantia dos direitos dos trabalhadores? Enxerga a possibilidade de extrema precarização do trabalho ou de explosão da miséria em consequência da pandemia?

RC – Do ponto de vista jurídico, a Constituição Federal continua sendo o farol, e os tratados internacionais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), subscritos pelo Brasil, os balizadores nas relações de trabalho. Com 40% dos trabalhadores na informalidade, sem direitos e sem renda, se os efeitos econômicos do isolamento da população não forem contidos, não teremos apenas a precarização do trabalho, mas a explosão da miséria, com graves consequências sociais. A maneira mais adequada de enfrentar os problemas com equilíbrio é promover o entendimento e o diálogo entre trabalhadores e empresários, através da negociação coletiva, método de autocomposição previsto na Constituição e na legislação do trabalho para resolução dos conflitos trabalhistas.

RJC – Além dos impactos na saúde e na economia, a senhora enxerga o risco de que aventuras autoritárias possam tentar se aproveitar da situação?

RC – Temo que a urgência demandada na adoção de medidas que efetivamente ajudem a combater o contágio pelo vírus resulte no patrocínio de condutas e atos autoritários. É inaceitável assistir manifestações de descaso aos métodos científicos na composição e na sustentação de políticas e programas de governo, como também as restrições à Lei de Acesso à Informação. O risco existe. Norberto Bobbio dizia que a regra da democracia é a publicidade, e não o segredo.

RJC – A senhora afirmou que cresce a importância do IAB em um momento marcado “por atitudes fascistas do chefe do Poder Executivo”. Qual é o papel que o IAB espera cumprir nesse cenário?

RC – O fascismo é um regime autoritário no qual a concentração total do poder fica nas mãos de um único chefe de governo. O discurso de que o Brasil deve aceitar a morte de seres humanos, na sua maioria pobres e idosos, porque a economia não pode parar durante a pandemia, revela a existência de ideias e atitudes que se assemelham a uma espécie de limpeza étnica social necessária, tal como defendiam os nazifascistas. O IAB está pronto para enfrentar tais atitudes.

RJC – Liberdades democráticas e prerrogativas dos advogados estão em risco?

RC – A imposição da defesa das liberdades democráticas nesta quadra da política nacional, diante de atitudes tipicamente autoritárias que menosprezam princípios, garantias e direitos fundamentais assegurados na Constituição Federal, é motivo de preocupação. Os advogados e advogadas são a voz do cidadão e os guardiões da ordem constitucional democrática. Por isso, precisam atuar de forma independente. Impõe-se defender as prerrogativas não só como direitos da advocacia, enquanto pilares do Estado Democrático de Direito.

RJC – Apenas duas mulheres foram presidentes do IAB em 176 anos. Ainda falta muito para que as mulheres ocupem em pé de igualdade com os homens as posições de mais poder e prestígio na sociedade? 

RC – Inicialmente, devo dizer que estou orgulhosa por ser a segunda mulher a presidir o IAB e a primeira a ser reconduzida ao cargo para um segundo mandato consecutivo. Tive a oportunidade de publicar na Revista Justiça & Cidadania, editada em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, um artigo sobre a nossa participação política e a expressiva desigualdade entre homens e mulheres. Nós ainda temos um longo caminho a percorrer, mas precisamos reconhecer as conquistas alcançadas em vários campos.

RJC – Já há perspectiva histórica para avaliar os efeitos da reforma trabalhista para a advocacia brasileira?

RC – A Lei nº 13.467/2017, que instituiu a reforma trabalhista, provocou a maior mudança no ordenamento das relações de trabalho no Brasil desde 1930. Ocorreram profundos retrocessos, como o afastamento da jurisdição estatal, ou seja, a criação de óbices ao acesso, que foi o que mais afetou a advocacia trabalhista. As novas alterações trabalhistas oferecidas pelo Governo para o enfrentamento da crise econômica em razão da pandemia promoverão um novo impacto na Justiça do Trabalho. Serão centenas de milhares de reclamações trabalhistas questionando tais medidas. O crescimento dessas ações na Justiça do Trabalho será proporcional ao reconhecimento da importância deste ramo especializado do judiciário enquanto pacificador de conflitos sociais que terão de ser dirimidos contando com a advocacia trabalhista.

RJC – O que pode ser feito pelos advogados brasileiros e suas entidades de classe para se contrapor às fake news?

RC – As fake news têm, invariavelmente, o objetivo de legitimar um ponto de vista ou prejudicar uma pessoa, geralmente personalidade de destaque. Nas eleições de 2018 foram largamente utilizadas, a ponto de influenciar decisivamente na eleição do atual presidente. Ainda que o Tribunal Superior Eleitoral tenha se disposto a apurar tais ocorrências, não se tem notícia, até hoje, de qualquer providência tomada com efetividade. Daí a necessidade de uma atuação firme da advocacia, no sentido de cobrar providências, de forma a reduzir os seus danosos efeitos.

RJC – O que dizer a esse respeito sobre os ataques à educação pública e à pesquisa científica?

RC – Um país sem cultura é um país sem alma. Darcy Ribeiro dirigiu-se ao governo dos militares para, em razão da censura à liberdade de expressão e de pensamento, preveni-los “do muito que se poderia fazer com apoio no saber científico, e do descalabro e da pequenez do que se estava fazendo no País”.   Os ataques desfechados pelo Governo contra a pesquisa, a educação e a cultura são vergonhosos. O IAB, sempre lastreado no Direito e na Constituição, continuará a fazer história mantendo-se na vanguarda do Direito, ao sair em defesa da educação e da cultura.