Edição 295
Mulheres: pensamento, coragem e ação
1 de março de 2025
Leila Bittencourt Membra do Conselho Superior do IAB

No mês das mulheres, trazemos a rol exemplificativo de algumas que se destacam na carpintaria da palavra diante do desafio dos preconceitos na história da filosofia, na literatura, nas artes plásticas no Brasil e no Supremo Tribunal Federal (STF), sendo, nele, apenas três.
A pesquisa de Ruth Hagengruber, filósofa de Paderborn, Alemanha, diretora e fundadora do Centro de História de Mulheres Filósofas e Cientistas, que esteve no Rio de Janeiro na I Conferência Internacional de Mulheres na Filosofia Moderna, afirma que não é fato que mulheres filósofas não existiram, apenas não são conhecidas, apesar de seus escritos desde a Antiguidade. Esse centro reúne cerca de três mil manuscritos de filósofas, digitalizados para estudos, em contraponto ao discurso de que haveria um apagamento delas.Notou-se que o domínio na filosofia não é filosófico, é o poder cultural e o poder religioso. O maior exemplo é a expressão de Deus nas igrejas: oh, pai amado!
A transformação cultural expõe essas mulheres em outro olhar distorcido: por exemplo, Aspásia, em cortesã; Hannah Arendt, reduzida à amante de Heidegger, embora consultada por ele e tendo ajudado-o nas publicações; Émilie du Châtelet, reduzida à amante de Voltaire, mesmo que a relação fosse outra: ela, a professora, e ele, o estudante.
A história da Filosofia apresentada por Ruth inicia com as duas mulheres que ensinaram Sócrates: Diotima e Aspásia ganharam relevo pelas posições sociais como fantásticas mulheres na Filosofia.
Outras: Temistocléia teria sido a primeira mulher filósofa do Ocidente, matemática, alta profetisa de Delfos, no século VI a.C. e, segundo relatos, grande mestra de Pitágoras; Hipátia, filósofa neoplatônica, primeira mulher matemática da humanidade, no filme Alexandria, em 2009, com a atriz Rachel Weisz; Enheduana, XXIII a.C., primeira a assinar as próprias obras, primeira pensadora da história, talvez sacerdotisa do templo da Deusa Lua, em atividades, arte e comércio, ensinava ciências, matemática e o movimento das estrelas e dos planetas. Escreveu hinos à deusa Inana, uma das principais fontes da mitologia suméria.
Simone Weil (1909-1943), francesa, nascida de família judia, mística, não viveu para ver a queda do nazismo que combateu, lutou na guerra da Espanhola junto dos republicanos, trabalhou na Renault para escrever como, nas fábricas, direitos eram negados.
Louise Labé nasceu em 1524, francesa erudita, literata e musicista, publicou várias obras e, em um dos livros, a dedicatória é um manifesto de reivindicações: o direito das mulheres à ciência e a outros conhecimentos.
Oliva Sabuco, filósofa, médica espanhola, escreveu sobre a ligação entre a filosofia e a medicina, pioneira na medicina psicossomática com obra holística publicada em 1587 em sete tratados.
Filósofas desconhecidas na mídia: Vandana Shiva, Ph.D. em filosofia desde 1980, física, pacifista, uma das pioneiras do ecofeminismo, diretora da Fundação para a Pesquisa em Ciência e Tecnologia em Nova Délhi; Nawal El Saadawi, no século XX, egípcia, ativista feminista, médica psiquiatra, escritora com diversos livros de não ficção publicados, na consecução de pautas feministas no Egito e no mundo árabe, lutou pelo estatuto das mulheres e meninas no interior das leis de família egípcias. Aos seis anos de idade, submetida à mutilação genital feminina difundida na sociedade egípcia, independentemente da classe social ou origem rural e urbana, chamou a atenção quanto ao uso da religião para a submissão das mulheres na sociedade árabe, em matéria de proteção e reconhecimento de seus direitos sociais, familiares, econômicos e políticos.
Maria Gaetana Agnesi, nascida por volta de 1718, linguista, matemática e filósofa italiana, escreveu o primeiro livro sobre o cálculo diferencial e integral, também a obra Proposições Filosóficas; Mary Wollstonecraft (1759-1797) filósofa inglesa e escritora popular; Marguerite Yourcenar (1914-1996) conhecida pelo pseudônimo de Marguerite Donnadieu, nasceu em Gia Dinh, no Vietnã, e morreu em Paris onde se formou em direito público pela Faculté de Droit de Paris.
A Olímpia de Gouges, francesa, que escreveu quatro mil páginas de manifestos revolucionários, peças de teatro, sátiras, panfletos, novelas e, filósofa, questionou a escravidão dos negros, defendeu os direitos da mulher, como maternidade, divórcio, liberdade religiosa e educação, defendeu os oprimidos e humilhados, foi presa e condenada à guilhotina. Em 1791, demonstrou que a declaração francesa dos direitos do homem era tendenciosa ao publicar a própria Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, dizendo no preâmbulo que “a ignorância, o esquecimento ou o desprezo pelos direitos da mulher são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos governantes”.
Na literatura: Gilka Machado, pobre e negra, em 1907, aos 14 anos de idade, vence o Prêmio Imprensa, como primeira mulher a publicar poesia erótica no Brasil. A liberação do corpo feminino como um dos caminhos de construção da identidade e de afirmação social da mulher foi aclamada por Lima Barreto, Olavo Bilac, Nelson Rodrigues e Jorge Amado, e contrariou Nietzsche, para quem “o homem serve para guerrear e a mulher para distrair os guerreiros”. Cecília Meireles traduziu Rilke, Virginia Woolf, Garcia Lorca, Tagore, Maeterlinck, Ibsen, Pushkin , Anouilh, antologias da literatura hebraica e poetas de Israel, e foi exemplo de força, superou, com três filhas para criar, o suicídio do marido, e, no poema Prisão, denuncia o aprisionamento de mulheres. Cora Coralina, falecida em 1985, poetisa, engajada, solidária com os deserdados da sociedade, enfrenta imposições sociais, defende as lavadeiras, as mulheres obscuras e as prostitutas. Clarice Lispector não submetida à beleza física, voz das mulheres silentes, angústia de existir, de íntimos desejos reprimidos, diante do imponderável, sugere que decidam de modo libertário e não como mero indivíduo, optar por novo rumo ou agir como lhes é esperado é decisão heroica; Nélida Piñon, primeira presidente mulher da Academia Brasileira de Letras, mostra a violência doméstica a atos crônicos de manutenção da supremacia e da ordem masculina, em Vozes do deserto. Scherezade questiona o espaço patriarcal e República dos Sonhos é obra relevante da história da corrupção no Brasil, em que afirma: “A fome, onde quer que se instale, é sempre um ato político.”.
Nas artes plásticas, além de Tarcila do Amaral, Djanira e Anita Malfati, Lygia Clark, Tomie Ohtake, Beatriz Milhazes, Adriana Varejão e Abgail Andrade, pesquisadora do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, Ana Paula Simioni trata das mulheres esquecidas pela historiografia na arte.
Destacamos Rosmary Corrêa, primeira titular da Delegacia da Mulher para Proteção contra a Violência, cuja ideia se espalhou pelo Brasil, dedica a vida na defesa dos direitos da mulher, nos cargos que ocupa e em palestras e ONGs.
As únicas ministras e presidentes do STF, apesar dos 130 anos da Corte, são elas: Ellen Gracie; Rosa Weber, que enfrentou as tentativas de golpe de Estado, ataques à sede do tribunal depredada – ambas aposentadas –; e Cármem Lúcia Antunes Rocha, única na função, que, após Presidência da Corte, ocupa, pela segunda vez, a Presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
A ministra Cármem Lúcia, professora de Direito, mineira bem-humorada, mostra ser a simplicidade nela um indício de sofisticação. Destemida e de personalidade independente, é capaz de enfrentar as eleições no país do ódio, da mentira e das tentativas de destruição das conquistas da democracia em construção.
Em Direito para Todos, ela diz que, “às vezes, já se vislumbra um céu mais claro a guiar o homem para novas possibilidades. Essa estrela guia pode não ser seguida, mas segue o homem, mostrando-lhe direitos que podem clarear, em muito, o seu trajeto com o outro”. Em tom poético e com leveza, ela fala dos desafios em busca de Justiça e esperança no Direito vencendo o ódio, reafirma em entrevistas ser realista, mas segura e confiante na força do bem superando o mal, tal qual Hannah Arendt, que foi mulher de pensamento e ação, que defendeu a existência de um Estado palestino, dizendo que, quando se é atacado como judeus, “temos de nos defender como judeus”, contra totalitarismos, opressão e o terror no nazismo.
De Cármem Lúcia publicista destacamos, na Revista Jurisprudência Catarinense (Florianópolis, v. 35, n. 117, 2009), artigo em que esbanja humanidade que se reflete em julgados, e reafirma o perfil sensível a todas as pessoas e a fraternidade que todos devemos ter. Ela ressalta o artigo 3o da Constituição Federal, amalgamado ao princípio da dignidade humana, que o complementa. Esse artigo 3o é pouco utilizado, apesar de orientador da interpretação constitucional na construção de políticas públicas, parâmetro de aplicação do Direito. Não é letra morta, mas é ferramenta a que se socorra na distribuição da Justiça e alarga o alcance que a Constituição arquitetou ao fundar um Estado de promoção à cidadania plena, pois, sem igualdade, não há liberdade, deixando a liberdade como privilégio e, não, como real expressão do direito.
A ministra Cármen Lúcia tem de ser refletida em sua palavra, reverenciada em sua coragem e respeitada em sua ação.
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