A modernização do STJ: Criação da Constituição de 1988

19 de maio de 2014

Membro do Conselho Editorial/ Ministro aposentado do STJ

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Sidnei-BenetiO Superior Tribunal de Justiça foi criado pela Constituição Federal de 1988, destinado à interpretação do Direito Federal Infraconstitucional.

Na Sessão Solene do Senado Federal do dia 8 de abril de 2014, em que se celebraram os 25 anos do Tribunal, o Presidente Felix Fischer noticiou a assombrosa produção de julgamento de quase quatro milhões de processos. Imagine-se se não houvesse o Superior Tribunal de Justiça!

O Tribunal franqueou acesso efetivo à justiça recursal de caráter nacional, outrora inacessível ao Supremo Tribunal Federal. Liberou via de conhecimento da ampla variedade de litígios fundados nas milhares de leis infraconstitucionais, de interesse para o dia a dia civil e criminal das pessoas físicas e jurídicas do país. Assumindo o ingente lavor do exame e julgamento da carga imensa de recursos relativos a todos os ramos do Direito, o Superior Tribunal de Justiça enseja que o Supremo Tribunal Federal reserve forças à definição de temas constitucionais, reservado o multifário da ordem jurídica ao Superior Tribunal de Justiça.

Comparado com os congêneres europeus – especial­mente a Cour de Cassation francesa, a Corte di Cassazione italiana e o Bundesgerichtshof alemão, o Superior Tribunal de Justiça julga em dobro, pois não só julga o tema jurídico, mantendo ou reformando a tese submetida, mas, ainda, revê o caso concreto, em dupla tarefa. Bem mais simples seria a tarefa de apenas julgar a tese e devolver a complexidade da justiça do caso concreto ao tribunal de origem, algo à moda de simplesmente anular, genericamente, grande quantidade de processos sem examinar os detalhes concretos em que se controvertem as partes, obrigadas a prosseguir no litígio na origem!

Para atender às necessidades do seu gigantesco campo jurisdicional, o Superior Tribunal de Justiça vê-se constantemente às voltas com a alteração do instrumental operacional, que são as leis processuais a ele pertinentes e os recursos materiais e humanos necessários à movimentação do maquinismo de prestação da Justiça.

Quem repete o fácil refrão falso do imobilismo do aparelhamento judiciário não terá tido olhos para ver o que se passa no Superior Tribunal de Justiça. Tribunal modelar, bem instalado, com servidores de alto nível profissional e humano, em imensa maioria vencedores dos pesados concursos públicos de Brasília.

O problema é a astronômica quantidade de recursos, gerada por sistema processual fragmentário, que transforma cada decisão mínima em cada um dos milhões de processos do país em recurso para os tribunais, com direito a obter dose dupla, via embargos de declaração e grande quantidade de recursos internos, para julgar de novo o já antes muitas vezes julgado! Para ficar nos números do ano passado, 2013, o Superior Tribunal de Justiça recebeu 366.488 recursos novos e julgou mais que esse número, ou seja, 384.182 recursos.

Inimaginável proibir recursos, garantia de acesso à Justiça, mas, sim, de racionalizar o sistema processual, para evitar múltiplas decisões em um mesmo processo, que provocam verdadeira tautologia recursal e decisória, a qual, por sua vez, leva à opacidade da compreensão do processo, fazendo perder de vista a razão de ser da vinda a juízo, mediante a transformação do litígio em sibilino exercício de incidentes e ciladas, como se o processo, e não o direito das partes, estivesse em julgamento.

O Tribunal Superior de Justiça, modelar na organização administrativa, já aprofunda úteis experiências visando à redução da massa recursal sem recorrer à ilusória tentativa de cancelamento de hipóteses de processos ou à criação de obstáculos miúdos, que geram mais hipóteses recursais.

Profissionais experientes e independentes no observar, certamente poderão detectar consequências da mudança em marcha. Por ora, nas aperturas deste escrito, produzido em breve tempo retirado do dever de julgar, destaquem-se três instrumentos, já implantados e a produzir bons frutos, quais sejam:  a) a informatização;  b) o recurso representativo de controvérsias e c) o núcleo de recursos repetitivos – NURER.

a) Informatização – A informatização dos processos representa revolução judiciária única no mundo. Seria inacreditável, não fosse a evidência dos fatos, mas os processos são já informatizados. Em programa pioneiro implantado sob a presidência do Ministro Cesar Rocha, definitivizado pelas gestões dos Ministros Ari Pargendler e Felix Fischer, digitalizaram-se de início, um a um, folha a folha, mais de 350.000 processos existentes, seguindo-se a digitalização de cada processo novo, em experiência justamente vencedora do Prêmio Innovaree, ressalte-se por Justiça, trabalho realizado mediante inserção social de admirável equipe de funcionários deficientes auditivos, aos quais o Tribunal e todo o meio jurídico nunca encontrarão suficientes palavras para agradecer e homenagear.

O produto positivo principal da informatização no núcleo do serviço judiciário assombra. Permite ela a consulta a qualquer tempo, elimina o deslocamento de autos, petições e atos cartorários, afasta o risco de extravio de peças, permitindo a disponibilização de relatórios e projetos de votos a todos os julgadores, de modo a aprimorar a qualidade da análise colegiada, com redução de pedidos de vista, fornecimento de cópias integrais magnéticas a advogados. Permite a comunicação imediata aos tribunais e juízos, inclusive para aceleração de desfecho de conflitos de competência, reclamações e liminares, praticamente aniquilando a praga dos tempos mortos do aguardo das intimações judiciais, que tantos males já causou à efetividade da Justiça – e segue-se imensa gama de consequências que seria impossível exaurientemente pormenorizar.

O produto acessório da informatização, atingindo a capilaridade do sistema judiciário, é imenso. Extraordinárias e inimagináveis as consequências positivas, próximas e remotas, da informatização. Recuperação de informações, objetivização de dados da correcionalidade ante a deixa de vestígios de cada ato, inserção de pesquisas de bibliotecas e acervos informatizados, busca de informações complementares ao julgamento nos “sites” de tribunais envolvidos e de mananciais legislativos, doutrinários, jurisprudenciais ou informativos de setores da administração, das corporações, de valores e negócios envolvidos – e vai daí em diante, o caráter benfazejo da informatização.

b) Recursos Repetitivos – O enfrentamento dos temas repetitivos, dado o procedimento de recursos representativos de controvérsia (CPC, art. 543-C, com a redação da Lei 11.672, de 8.5.2008) abriu a esperança de que o Tribunal venha progressivamente a transformar-se naquilo a que a Constituição Federal o destinou, isto é, um Tribunal definidor da interpretação das grandes teses infraconstitucionais para toda a sociedade brasileira, forrando-se ao reexame por milhares, e, na sua história, milhões de vezes, da mesma tese surgida em diferentes processos – restando o desafio do que fazer com os processos suspensos na origem para o enfrentamento, no terrível “day after” da experiência nacional no trato dos processos repetitivos, o que será assunto para outra oportunidade, se houver!

Os processos individuais, muitas vezes tornam-se, no fundo,  simples, é certo, pelo repetir-se dos temas, mas são igualmente avassaladores, porque obrigam, sempre, a exame de processo a processo, inclusive para identificação de tese eventualmente idêntica – com a dificuldade especial do processo brasileiro, que sempre ajunta mais de um capítulo por julgar, nem que seja o referente a honorários advocatícios, que são autônomos e de delicada avaliação.

O instrumento recursal representativo de controvérsia permitirá exterminar essa verdadeira chaga nacional, que é o número tsunâmico de processos, que tanto mal faz à qualidade da prestação jurisdicional brasileira, levando, não raro, à dispersão de precedentes, incompreensível em um Tribunal Superior nacional, e impediente da detecção da tese firme, pelos juízos de instâncias inferiores e, mais, do claro aconselhamento dos advogados a seus clientes e, por fim, do agir seguro dos cidadãos e entidades na prática dos atos jurídicos da vida extrajudicial.

c) O Núcleo de Recursos Repetitivos – Relevante contribuição à efetividade do julgamento dos recursos repetitivos foi a criação, pela Presidência do Tribunal, do NURER – Núcleo de Repercussão Geral e Recursos Repetitivos (Resolução STJ n. 11/2013, do Presidente Min. Félix Fischer, aprofundando organização anteriormente implantada – Resolução STJ n. 2/2013, e Resolução STJ n. 3/2008, do Presidente Humberto Gomes de Barros), forte no exemplo dos Tribunais estrangeiros, que desenvolveram o conceito de irrecebilidade recursal, como consequência da permissão para recorrer (“leave to appeal”, “permission pour appeller”, “zulässigkeit” etc), para recursos sobre temas já pacificados ou recursos mal-formados que, por defectivos, não devem ser conhecidos, para que não venha a, com base em contraditório inepto, formar-se jurisprudência que impeça o conhecimento de aprofundado debate futuro, com fundamento em contraditório de fôlego, tão necessário aos Tribunais Superiores.

Ainda há muito que fazer, para alcançar a desejada celeridade, com qualidade, na prestação jurisdicional a cargo do Superior Tribunal de Justiça. Será preciso, por exemplo, enfrentar alguns desafios organizacionais da Corte, para a mais célere e segura formação de jurisprudência nacional – estabelecendo a função de cada engrenagem no grande maquinismo de julgamento que é o Tribunal.

Mas há renovação e, consequentemente, esperança. Em escrito que homenageia o Eminente Relator da Constituição Federal de 1988, BERNARDO CABRAL, Ex-Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, pareceu interessante ressaltar algo do que vem sendo feito pelo Superior Tribunal de Justiça. Deve-se incentivar a renovação e deve-se manter a esperança na solução dos problemas existentes. É o que se faz ao iniciar a busca da solução de um mal, por maior que seja. Afinal, é como há séculos Ésquilo fez Prometeu responder à angustiante pergunta do coro, representante, sempre, do povo no teatro grego:

Coro – Que remédio encontraste para esse mal?
Prometeu – Concedi-lhes imensa esperança no futuro” (“Ésquilo, Prometeu Acorrentado”).

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Escrito para a Revista Justiça & Cidadania, volume em homenagem a BERNARDO CABRAL, Eminente Relator da Constituição de 1988.