Edição 113
Miguel Torga
31 de dezembro de 2009
Bernardo Cabral Presidente de Honra do Conselho Editorial
Há alguns anos, Zuleide e eu, costumamos frequentar, quando possível, a cidade de Chaves, na fronteira de Portugal com a Espanha. Ali, no Balneário que compõe as chamadas Termas, deparei com personalidades ilustres do mundo literário e político de Portugal e Espanha.
Dentre elas, uma para mim tinha significado maior. Diversas vezes, cruzamos os nossos passos, mas nunca a interrompi para qualquer indagação, ou mesmo para satisfazer uma natural curiosidade, pois sabia de que ali se encontrava cuidando da saúde e, portanto, merecido o respeito a quem era considerado um homem de trato difícil e de quem se propalava que se afastara das elites intelectuais por considerá-las pedantes.
A minha intenção era dizer-lhe que sabia um pouco da sua vida, até mesmo porque, quando menino, ingressara ele no Seminário de Lamego, cidade onde ocorreu o nascimento de minha saudosa mãe, sete anos antes de vir ele ao mundo. E mais, ter eu conhecimento de que aos 13 anos de idade viera para o Brasil e, em Minas Gerais, trabalhado como capinador, apanhador de café, vaqueiro e até caçador de cobras, na fazenda de um tio que já se encontrava no Brasil há muito tempo.
Curiosamente, foi esse tio que identificou naquele garoto a vontade de estudar, o que o levou a custear os seus estudos no Liceu Leopoldina, onde, de imediato, se destacou como um dos alunos mais dotados.
Aos 18 anos regressou a Portugal e, em Coimbra, terminou o Liceu e frequentou a Faculdade de Medicina, onde concluiu o seu curso aos 24 anos e aos 34 a sua especialização em otorrinolaringologia.
Médico atuante, cultivou ao mesmo tempo a Literatura e se tornou colaborador da revista PROENÇA — importante órgão difusor da segunda fase do modernismo português — dela se afastando mais tarde, instante em que confirmou, com esse gesto, a sua tal forma intransigente que o manteve afastado, por toda a vida, de escolas literárias e até do convívio com os círculos culturais portugueses.
Tudo isso era reflexo da sua origem: proveniente de família humilde, nascido em 12 de agosto de 1907, em São Martinho da Anta, distinto transmontano de Vila Real, infância rural dura, viveu a realidade do campo, cercado de árduo trabalho contínuo, contato com as misérias e com a morte, o que lhe valeu tornar-se poeta do mundo rural.
No seu segundo livro, “O Outro livro de Job”, de poesia (o primeiro, “Ansiedade “, de 1928), o nome de batismo, Adolfo Correia Rocha, submerge pela força do pseudônimo MIGUEL TORGA, por ele escolhido de forma propositada. Foi o caminho encontrado para homenagear duas glórias da literatura espanhola, dois Miguéis — Cervantes e Unamuno — e a natureza rude e selvagem que tanto impactou a sua mocidade; TORGA é uma planta brava da montanha.
Sua criação literária foi intensa. Mais de 50 obras em prosa e poesia, além de peças de teatro e um DIÁRIO em 16 volumes, publicados entre 1941 e 1994. Vale colocar em relevo: Rampa (1930); Orpheu Rebelde (1958); Poemas Ibéricos (1965); Criação do Mundo (1931); Bichos (1940) e Novos Contos da Montanha (1944).
Indicado diversas vezes para o Prêmio Nobel de Literatura, conseguiu antever no “Réquiem por Mim”, último trecho do seu “Diário”, que o seu fim chegaria em breve. Morreu dois dias depois, em 1995, aos 88 anos de idade.
Nesse ano, perguntei ao Doutor Mário Carneiro — Diretor Clínico das Caldas de Chaves (e seu médico particular), como era, do alto dos seus 60 anos ininterruptos de exercício da Medicina, ter sido o profissional que cuidara do seu Colega Miguel Torga — ambos quase da mesma idade. A sua resposta, cautelosa — sempre se recusou a prestar declarações à imprensa sobre o seu Cliente —, trouxe-me uma revelação.
Ele, Miguel Torga, tinha um coração sensível, apesar da constante rudeza: — jamais cobrara consultas, na sua especialidade médica, aos menos afortunados. E concluiu a sua lacônica revelação: apesar de poucos amigos era um homem de conversa agradável.
Pena que dele não me tenha aproximado o suficiente para dizer-lhe o quanto admirava a sua postura cívica, sobretudo quando denunciou os crimes da guerra civil espanhola e do Ditador Franco, o que lhe valeu a prisão pela polícia portuguesa, além da apreensão de suas obras pela censura.
Lamento, profundamente, não lhe ter feito as perguntas que me inquietavam e deploro não ter dele podido ouvir as respectivas respostas.