Miguel Cervantes e a utopia quixotesca

5 de fevereiro de 2000

Desembargador e 1º Vice-presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

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Miguel de Cervantes jamais nos revela, explicitamente, porque ALONSO QUIJANO viu-se conduzido, por si mesmo, à loucura pela leitura de romances de cavalaria, até que saísse estradas afora e se transmudar em DOM QUIXOTE O pobre Cavaleiro da Mancha, Alonso, só se atrela ao vício obsessivo da literatura vulgar de sua época, o que universaliza sua mente de realidades inexistentes.

O autor versa  ALONSO como um caso de uma vida irreal. Ele é celibatário, a roçar o qüinquagésimo ano, presumivelmente abstêmio aos impulsos lascivos, confinado à companhia de uma governanta em entrados quarenta anos; uma jovem sobrinha no verdor primaveril; um serviçal para o campo e seus dois amigos, o Cura da aldeia e Nicholas lorenzo, o barbeiro. Não distante reside uma camponesa, a robusta Aldonza Lorenzo, alvo inconsciente de suas fantasias, renomeada por ele como a “Grande Dama Dulcinéia de Toboso”.

Cervantes diz-nos que seu herói tornou-se louco, mas não desce a detalhes clínicos dessa patologia. A observação de unamuno ostenta-se como melhor perfil sobre a quixotesca perda de senso; “Ele a perdeu para a nossa salvação, ele a perdeu para o nosso benefício, de maneira a nos levar a um eterno exemplo de espiritual generosidade”, no que equivale dizer, DOM QUIXOTE enlouqueceu como meio de expiar nossas limitações, estreitezas e deficiências de imaginação, algo quimérico.

SANCHO, o pobre camponês, mas sonhador, restou persuadido a seguir seus passos como escudeiro e uma segunda opção com que dispunha o Cavaleiro, no que ensejou o glorioso fato dos encantados “ moinhos de vento”. O estímulo sedutor ao bom e claramente limitado SANCHO foi o de que ele  seria Governador de uma ilha, talvez na sua imaginação paradisíaca, ou a isso se tornar, a ser para ele conquistada pelo Cavaleiro.

CERVANTES é inevitavelmente irônico quando nos exibe SANCHO, “ cuja inteligência é extraordinária e cujo verdadeiro desejo seria a fama como Governador mais do que a fortuna”. Fundamentalmente um elemento em SANCHO deseja a permissão “para brincar” em confronto com os demais aspectos de sua personalidade que lhe trazem desconforto como conseqüência da forma de agir quixotescamente. Como Dom, SANCHO procura  por um novo “ego”, uma concepção literária que se atribui a CERVANTES a primazia criadora.

Com maestria, MIGUEL DE CERVANTES partilha com SHAKESPEARE a universalidade do gênio, importando dizer que não se pode estar adiante deles,posto que se posicionam sempre adiante de todos.É considerado o único par possível para DANTE e SHAKESPEARE dentre os canônicos da literatura do Ocidente.

DOM QUIXOTE, em sua magistral  obra-prima, eleva o leitor ao enriquecimento, nunca apoucado. Novamente podemos invocar SHAKESPEARE como a mais próxima analogia comparativa com CERVANTES. Tal assertiva baseia-se na infinita capacidade do dramaturgo para o “estado de descomprometimento”.

Somente HAMLET incita a tantas variantes de interpretação como  DOM QUIXOTE. Do mesmo modo que ninguém dentre nós pode extirpar HAMLET de seus críticos românticos, enquanto DOM QUIXOTE tem inspirado participantes de uma numerosa e persistente Escola Romântica  de crítica e, tanto quanto livros e ensaios opõem-se a uma, assim considerada, “idealização” de um CERVANTES protagonista. Românticos vêem  QUIXOTE como herói, não um pacóvio, declinando ler o livro como essencialmente sátira e deparando na obra uma atitude metafísica ou visionária.

Por qualquer flanco, quando se predispõe à leitura de DOM QUIXOTE o coração do livro repousa na revelação e celebração da “heróica individualidade”, aí incluindo-se seu escudeiro SANCHO PANÇA. Todavia, nenhum outro autor estabeleceu uma relação mais íntima com seu protagonista como CERVANTES o fez. Seria de se indagar, se a tanto pudesse, o que SHAKESPEARE, ele próprio, pensava de HAMLET. O que sabemos bem é como DOM QUIXOTE afetou Cervantes mesmo que nossa perquirição seja de peregrinação indireta.

CERVANTES criou infinitos meios de indeterminar sua própria narrativa para compelir o leitor a transmitir a história em lugar de seu cauteloso autor. Os habilidosos e nefandos “mistificadores”, os quais, presumivelmente, trabalham sem cessar para frustrar o magnificamente DOM QUIXOTE, estão igualmente dedicados em nos converter em “leitores especiais”. QUIXOTE supõe a existência de bruxos, e CERVANTES, pragmaticamente, os considera “partes cruciais” de sua linguagem. Tudo se  transforma através do encantamento, este quixotesco lamento e demoníaco feiticeiro é CERVANTES, ele mesmo. Seus personagens leram as histórias uns dos outros e na quase totalidade da segunda parte das obras volvem-se na permanente preocupação com suas reações sobre o que leram na primeira.

Efetivamente, o leitor é conduzido para uma reação mais “sofisticada”, mesmo quando DOM QUIXOTE, teimosamente, “se recusa a aprender”, à evidência que essa recusa tem mais pendência com a própria loucura do personagem do que com as fantasias condicionantes dos romances de cavalaria que o inspiraram e ensandeceram.

DOM QUIXOTE, obviamente, não é um louco, nem um tolo, mas alguém que se compraz em ser um “cavaleiro errante”. Desempenhar um papel é uma atividade e tem cinco características destacáveis: liberdade, desinteresse, exclusão, limitação e ordem. Todas podem ser testadas pela forma errante com que se comporta o Cavaleiro Dom, mas nem sempre com relação ao fiel serviço de seu  escudeiro SANCHO, mais lento em partilhar dessa ilusão.

DOM QUIXOTE eleva-se na procura de um local ideal, num tempo imaginário e é fiel à sua própria liberdade, ao seu “descompromisso”, solidão e limites até que seja  derrotado e abandone o jogo, retorne à  sanidade cristã e, finalmente,opera-se seu decesso como epílogo dos seus sonhos.

UNAMUNO pontifica que QUIXOTE se lançou à procura da verdadeira terra-pátria e só a achou no exílio. Ele, QUIXOTE, como os judeus e os mouros de sua época, convivem no domicílio expatriado, mas como os convertidos e os mouriscos, um desterro interior. Ele deixa sua pequena Aldeia para procurar o seu degredo, o “espírito do seu lar”, convencido de que somente exilado pode ser livre.

O que significa a loucura quando seu sofredor não pode ser ludibriado por outros homens e mulheres? Ninguém explora DOM QUIXOTE, nem mesmo ele mesmo. Ele toma moinhos de vento por gigantes e bonecos por pessoas, mas ele não está para ser ridicularizado, até porque, afinal, ludibriará e encantará todos os mortais. Sua loucura é um delírio-literário; ele quer vencer, não importa quantas vezes seja totalmente derrotado. Sua alucinação, como ele mesmo deixa claro,é uma estratégia poética usada por outros  antes dele e ele é nada mais que um tradicionalista.

O objetivo fundamental de DOM é a fama eterna interpretada como uma expansão da personalidade no espaço e no tempo. Generosidade e simples bondade são as elevadas virtudes de QUIXOTE. Seu vício, se existe, forra-se na convicção hispânica da idade de ouro em que a vitória através das armas é tudo; porém, considerando-se que ele é tão freqüentemente derrotado, sua falha é fugaz.

Positivamente, DOM QUIXOTE é um ator metafísico, pronto para arriscar-se ao ridículo para manter a chama do seu idealismo. Torna-se o precursor do lema que nos dirige neste Terceiro Milênio: o pessimismo da Inteligência, o otimismo da Vontade.

O contínuo “bufanismo” que permeia o livro é freqüentemente melancólico, até mesmo doloroso, e QUIXOTE, ao mesmo tempo, é um indomável defensor do afeto humano e um homem profundamente angustiado, nele se encarnando um virtuoso sentimento de justiça.

Os dois heróis de CERVANTES são simplesmente os maiores personagens literários de toda a literatura ocidental. A fusão de sensatez, sabedoria e liberdade só pode ser comparada aos mais memoráveis homens e mulheres de SHAKESPEARE. CERVANTES os simplificou, tornando-os parte da natureza. Não podemos definir o que faz de DOM QUIXOTE tão permanentemente original, trabalho tão pungentemente extraordinário.

Inquestionavelmente, se o drama do mundo pode ainda ser revelado através da mais excelente literatura, então , aqui, ele encontra a doçura de excelente pouso no jogo da vida…