Edição 118
Meios alternativos de solução de conflitos na previdência complementar
31 de maio de 2010
Rosalía Agati Camello Economista e Advogada
Sandro Gomes da Silva Advogado
No mês de abril deste ano assumiu a Presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) o Ministro Cezar Peluso. No seu discurso de posse, o Ministro destacou que o STF, desde a vigência da atual Constituição Federal, vem exercendo dois papéis fundamentais no processo de aprendizado e aprimoramento democráticos: tutela dos direitos individuais e coletivos e garantia de estabilidade social, reafirmada e assegurada pelas decisões judiciais na interpretação e aplicação do ordenamento jurídico.
Enalteceu o serviço da Justiça, destacando o ordenamento jurídico democrático como sendo o “único ambiente em que vicejam a liberdade e a convivência civilizada”, e prosseguiu qualificando o Poder Judiciário como “refúgio extremo da cidadania ameaçada”.
Trouxe ao conhecimento alguns dados estatísticos, os quais apontam que 43% dos brasileiros procuram suas próprias soluções ao terem seus direitos desrespeitados; apenas 10% buscam a Justiça. Os demais utilizam a mediação de advogados, do poder policial, por vezes renunciam aos direitos e outras vezes fazem uso da força. Dos que recorrem ao Judiciário, 46% se declaram satisfeitos e 23% inconformados.
O Ministro Cezar Peluso relatou ainda que “as rápidas transformações por que vem passando, sobretudo nas últimas décadas, a sociedade brasileira, têm agravado esse quadro lastimável, em virtude da simultânea e natural expansão da conflituosidade de interesses que, desaguando no Poder Judiciário, o confronta com sobrecarga insuportável de processos, em todas as latitudes do seu aparato burocrático”, sublinhando que uma das causas proeminentes desse fenômeno está na falta de uma política pública menos ortodoxa do Poder Judiciário em relação ao tratamento dos conflitos de interesses.
Discorrendo, ainda sobre as características indesejáveis de nosso atual mecanismo judicial, afirmou que é tempo de incorporar ao sistema os chamados meios alternativos de resolução de conflitos, que, com o instrumental próprio, sob rigorosa disciplina, direção e controle do Poder Judiciário, sejam oferecidos aos cidadãos como mecanismos facultativos de exercício da função constitucional de resolver conflitos. “Noutras palavras, é preciso institucionalizar, no plano nacional, esses meios como remédios jurisdicionais facultativos, postos alternativamente à disposição dos jurisdicionados, e de cuja adoção o desafogo dos órgãos judicantes e a maior celeridade dos processos, que já serão avanços muito por festejar, representarão mero subproduto de uma transformação social ainda mais importante, a qual está na mudança de mentalidade em decorrência da participação decisiva das próprias partes na construção de resultado que, pacificando, satisfaça seus interesses”.
É, de fato, entusiasmante essa manifestação, que gera a expectativa altamente positiva de que em um ambiente democrático, com estabilidade institucional, os próprios cidadãos possam construir a solução para os seus conflitos.
Esforços nesse sentido, ainda que não atingindo ou envolvendo diretamente o cidadão, estão sendo aplicados pela Advocacia Geral da União – AGU, por meio da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal – CCAF.
Criada em 2007, sediada em Brasília, a CCAF tem como atuação principal solucionar amigavelmente os conflitos entre os órgãos da União e as entidades da Administração Federal Indireta.
A partir de julho de 2008, a CCAF passou também a conciliar as controvérsias entre os Estados e o Distrito Federal e a União, visando propiciar maior celeridade na implementação das políticas públicas, através da diminuição das demandas judiciais e administrativas envolvendo aqueles entes da Federação e a União.
São questões como repasses de recursos federais e execução de convênios sobre impostos, exemplos de conflitos que podem ser submetidos à composição no âmbito da CCAF.
Os órgãos, entidades públicas e entes políticos interessados na conciliação encaminham suas questões por meio de manifestações escritas, identificando as partes que devem compor as reuniões conciliatórias. Uma vez alcançado o acordo, os efeitos se aplicarão com a homologação do Advogado-Geral da União.
Certamente, nem todos os casos podem ser submetidos a essa modalidade de resolução de conflitos, em face da natureza das demandas, sobretudo quando se está diante de questões que devam considerar o princípio da autonomia dos entes federativos.
A Previc. A Lei nº 12.154 e a nova competência. Foro de solução de conflitos
Observa-se que, nesse mesmo diapasão, recentemente, em dezembro de 2009, ao criar a Superintendência Nacional de Previdência Complementar – Previc, a Lei 12.154 (e também o Decreto Presidencial nº 7.075 e a Portaria nº 183, de 26 de abril de 2010, do Ministério da Previdência Social) trouxe, dentre as competências da nova Superintendência, a de “promover a mediação e a conciliação entre entidades fechadas de previdência complementar e entre estas e seus participantes, assistidos, patrocinadores ou instituidores, e também a de dirimir os litígios que lhe forem submetidos na forma da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996”.
Apesar de desejável a solução de conflitos por meios alternativos, em verdade a consecução dessa competência, especialmente no âmbito da Previdência Complementar, não se configura como tarefa simples.
Primeiramente, deve-se interpretar, com cautela, o referido dispositivo legal. Ao definir “promover a mediação e a conciliação”, teria o legislador objetivado que a Previc se estruturasse para executar ações de mediação e conciliação ou, por outro lado, que agisse como fomentador desses mecanismos de resolução de conflitos entre os agentes do segmento de previdência complementar?
É importante observar que, ao final da redação dessa competência, a expressão utilizada é “bem como dirimir os litígios que lhe forem submetidos na forma da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996.”
Neste caso, o verbo dirimir contém o significado de fazer cessar; decidir, resolver. Efetivamente, quem resolve tem a competência de decidir e quem decide, arbitra.
Tem-se, assim, que ao definir a competência para “promover a mediação e a conciliação entre entidades fechadas de Previdência Complementar e entre estas e seus participantes, assistidos, patrocinadores ou instituidores”, intencionou o legislador que a Previc atuasse como fomentador de adoção de meios alternativos de resolução de conflitos, enquanto que, ao dispor sobre a competência para dirimir os litígios que lhe forem submetidos na forma da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, o legislador lhe atribuiu poderes para arbitrar, na medida e nos critérios indicados na lei ali referida, que dispõe sobre a arbitragem.
A Previdência Complementar. Fundamentos e especificidades operacionais. Sistema aberto e sistema fechado
A Previdência Social no Brasil, em breve síntese, está estruturada sobre três pilares: o regime geral de Previdência Social, os regimes próprios de Previdência Social e a Previdência Complementar.
A Previdência Complementar, por sua vez, pode ser desenvolvida por meio do sistema aberto e do sistema fechado.
O sistema aberto prevê que os planos de benefícios sejam instituídos por entidades abertas de previdência complementar, os quais podem ser oferecidos, na forma individual, a quaisquer pessoas físicas e, em sua concepção coletiva, quando tenha por objetivo garantir benefícios previdenciários a pessoas físicas vinculadas, direta ou indiretamente, a uma pessoa jurídica contratante.
Atualmente, o órgão fiscalizador dessas atividades é a Susep – Superintendência de Seguros Privados.
No outro pólo, se desenvolve o sistema fechado, onde se prevê que os planos de benefícios podem ser criados por patrocinadores ou por instituidores.
As entidades fechadas de Previdência Complementar são acessíveis aos empregados de uma empresa ou grupo de empresas e aos servidores da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, quando os planos de benefícios forem concebidos no âmbito desses patrocinadores.
Essas entidades serão acessíveis a associados ou membros de pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial, quando os planos de benefícios forem de iniciativa desses entes denominados instituidores.
É neste segmento, o das Entidades Fechadas de Previdência Complementar, que a Previc, órgão fiscalizador, poderá atuar, promovendo a mediação e conciliação de conflitos, originados nas relações entre essas entidades e seus participantes, assistidos, patrocinadores e instituidores ou dirimindo conflitos que lhe forem submetidos.
O fortalecimento das relações entre participantes e as EFPCs
Essa competência para a resolução de conflitos, no âmbito da Previdência Complementar, em particular no sistema fechado, foi definida muito recentemente, e até a publicação deste periódico, provavelmente ainda não terão sido estabelecidos os procedimentos para o seu desenvolvimento.
Tarefa de tal magnitude, de fato, não se afigura de fácil realização em razão da complexidade para se conceber planos de Previdência Complementar, assim como para instituir e gerir entidades de Previdência Complementar.
As atividades para a consecução dos contratos dos planos de Previdência Complementar, geridos pelas entidades fechadas de Previdência Complementar, envolvem matérias de grande complexidade.
Estudos demográficos e atuariais, definição de premissas mais adequadas à massa de participantes e sua expectativa de evolução no tempo, evolução salarial, são elementos basilares da constituição das obrigações de um plano de benefícios, que encontra ainda mais complicadores a depender do segmento da atividade econômica em que se situem os empregados desse plano, o grau de periculosidade e insalubridade, que afetam diretamente os benefícios de risco, oferecidos pelo plano, e outros tantos aspectos que devem ser considerados.
Por outro lado, relativamente à gestão dos ativos desses planos de benefícios, outras variáveis devem ser administradas. Definições sobre o percentual dos ativos, que devem ser alocados aos investimentos no segmento de renda variável e no segmento de renda fixa, são apenas duas das infinitas combinações com que um gestor de recursos pode se deparar.
Como resultado da gestão dos planos de benefícios por essas entidades, e de outras variáveis externas, produzidas, por exemplo, por alterações do cenário macroeconômico, os planos de benefícios, se concebidos na modalidade de benefício definido ou contribuição variável, poderão produzir déficits ou superávits.
As formas mais adequadas de equacionamento de déficits ou destinação de superávits, invariavelmente, são matérias que despertam grande conflituosidade.
Outras questões relativas à execução do plano de benefícios, como, por exemplo, a interpretação do Regulamento do Plano de Benefícios, de onde decorre, em grande parte, o cálculo dos benefícios a serem pagos, também são fontes de divergência.
Atualmente, a maioria das entidades fechadas de Previdência Complementar enfrenta essas questões no Poder Judiciário, por meio de ações ajuizadas pelos participantes e assistidos.
O Brasil possui, em grandes números, cerca de 400 entidades fechadas de Previdência Complementar, envolvendo uma população em torno de 2 milhões de participantes e 4 milhões de assistidos, administrando cerca de R$500 bilhões de ativos financeiros, configurando-se, em termos absolutos, no oitavo sistema de Previdência Complementar do mundo.
Com essas referências, pode-se compreender que a tarefa de solução de conflitos, seja por via judicial ou por meios alternativos, não se apresenta como uma das mais simples no âmbito da Previdência Complementar fechada.
Os meios alternativos de resolução de conflitos, como instrumentos definidos, claramente positivados, surgiram no ordenamento legal brasileiro em 1996. Portanto, pouco tempo se passou para a formação de um histórico consistente e passível de análise sistemática.
Como destacado no início deste texto, o Presidente do Supremo Tribunal Federal aponta a adoção desses meios como uma possibilidade que vai muito além do desafogo dos órgãos judicantes e da aplicação de maior agilidade no andamento dos processos judiciais.
Talvez estejamos vivenciando tempos jamais observados pela sociedade brasileira, em que o amadurecimento da democracia, também bastante recente em nossa história, tenha propiciado a oportunidade de manifestação da conflituosidade inerente às relações humanas, o que levou ao ajuizamento de milhões de ações, que atualmente tramitam pelo Judiciário.
Ao mesmo tempo, em um movimento reflexo, a sociedade parece buscar por uma oportunidade de agir, tendo um papel mais efetivo na solução de seus conflitos.
A Previc, neste momento, assume nova competência, podendo vir a se constituir em um ente fomentador de inovações no enfrentamento e na resolução de conflitos no segmento da Previdência Complementar fechada, propiciando aos seus diversos agentes uma nova perspectiva de gestão.