Edição

Linguagem e justiça

11 de janeiro de 2013

Compartilhe:

Ao discursar em sua posse como presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Joaquim Barbosa defendeu um Poder Judiciário “sem firulas, sem floreios, sem rapapés” (“Folha de São Paulo”, 23.11.2012):

O juiz é produto do seu meio e do seu tempo. Nada mais ultrapassado e indesejável que aquele modelo de juiz isolado, fechado, como se estivesse encerrado numa torre de marfim.

No livro “O Direito Administrativo e o Poder Judiciário” (Ed. Del Rey, 2. ed., 2005), escrevi sobre a “cultura da prolixidade” como óbice à prestação jurisdicional ágil.

Prolixo, define o “Dicionário Aurélio” (2. ed., p. 1.400), é “muito longo ou difuso, superabundante, excessivo, demasiado”. Na oratória ou na escrita, atribui-se tal adjetivação a quem fala ou escreve em demasia e, muitas vezes, sem nexo.

A “cultura da prolixidade” talvez não seja tão proeminente em outras atividades como é nos meios jurídicos: criou-se, entre os operadores do Direito, o mito de que escrever bem é escrever muito, exaustivamente.

A decisão judicial sintética e objetiva poderá ser objeto de recurso à instância superior, sob alegação de nulidade por “falta de fundamentação”. Felizmente, os tribunais brasileiros entendem que boa sentença não é necessariamente sentença longa ou difusamente redigida. Boa sentença é sentença justa.

O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, já decidiu que “o juiz não fica obrigado a manifestar-se sobre todas as alegações das partes, nem a ater-se aos fundamentos indicados por elas, ou a responder, um a um, a todos os seus argumentos, quando já encontrou motivo suficiente para fundamentar a decisão, o que de fato ocorreu” (EDcl no AgRg no AREsp nº83.578-PE, min. Humberto Martins, Dje 14.6.2012).

Igualmente assentou que “a fundamentação sucinta, que exponha os motivos que ensejaram a conclusão alcançada, não inquina a decisão de nulidade, ao contrário do que sucede com a decisão desmotivada” (STJ, REsp nº 316.490-RJ, min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJU 26.9.2005).

Sobretudo após os progressos da informática, os textos processuais tornaram-se alentados e abundantes. Com as facilidades tecnológicas, são transcritas exaustivas citações doutrinárias e jurisprudenciais. A leitura de volumosas peças processuais torna-se uma maçada contraproducente para juízes, promotores e advogados das partes em litígio.

Em outras atividades onde se produzem textos, a concisão e a clareza já são dogmas. Aos jornalistas, exemplificativamente, prescreve-se:

Seja claro, preciso, direto, objetivo e conciso. Use frases curtas e evite intercalações excessivas ou ordens inversas desnecessárias. Não é justo exigir que o leitor faça complicados exercícios mentais para compreender a matéria” (“Manual de redação e estilo”, jornal “O Estado de S. Paulo”, 1990, p. 16).

Semelhantemente, aconselhava o poeta Carlos Drummond de Andrade: “escrever é cortar palavras.

Magistrados vanguardeiros, como o ministro Sidnei Beneti, do Superior Tribunal de Justiça, recomendam aos julgadores decidir de maneira justa, sem preocupações com ornamentos literários (“O juiz e o serviço judiciário”, TJMG, 1988):

O juiz não é profissional incumbido de tecer brilhantes considerações literárias, doutrinárias ou de erudição. Pode ele ter também conhecimento que o alce à condição de doutrinador, mas, para isso, em princípio, deverá procurar outros campos de atividade, que não o jurisdicional. Fará concursos, defenderá teses, exercerá atividade docente permitida. No processo, entretanto, não haverá lugar para esse lado da atividade.

Qual a importância dessas considerações? Verificar que a cultura da prolixidade é mais um fator de morosidade nas decisões judiciais e no andamento dos processos. Ao economizar palavras, os operadores do Direito propiciam um processo mais sintético e célere.

Outra interessante reflexão ligada ao nosso tema refere-se à histórica sacralização da função jurisdicional. Com efeito, a função de julgar é tão antiga quanto a própria sociedade. Em todo aglomerado humano, por mais primitivo que seja, o choque de paixões e interesses provoca desavenças cuja solução é submetida a um juiz. Discorria o ministro Mário Guimarães, do Supremo Tribunal Federal (“O juiz e a função jurisdicional”, 1958, pp. 19-20):

Na família – forma rudimentar da coletividade, juiz é o pai. No clã, é o chefe, em cujas mãos se concentram habitualmente, todos os poderes: é o rei, o general, o sacerdote, o legislador, o juiz. (…) Quando os povos começam a penetrar na História, possuem já delineada a estrutura de juízes e tribunais, posto ainda se confundam atribuições judicantes, administrativas e religiosas.

Essa sacralização respinga na figura do juiz, assim visto por Piero Calamandrei (“Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados”, 7ª ed. portuguesa, p. 30):

O juiz é o direito tornado homem. Na vida prática, só desse homem posso esperar a proteção prometida pela lei sob uma forma abstrata. Só se esse homem souber pronunciar a meu favor a palavra da justiça, poderei certificar-me de que o direito não é uma sobra vã.

No conto “Da majestade das leis” (ed. brasileira, 1978:11), Anatole France descreveu a agonia de um acusado perante o tribunal:

Toda a majestade da justiça está contida em cada sentença proferida pelo magistrado em nome do povo soberano. Jérôme Crainquebille, vendedor ambulante, ficou sabendo o quanto a lei é augusta quando foi conduzido à corte correcional por desacato a um agente de polícia. No salão soturno e portentoso, tomando assento no banco dos réus, viu ele os juízes, os escrivães, os advogados em suas togas, o meirinho com sua corrente, os gendarmes, e, por trás de uma balaustrada, as cabeças descobertas de espectadores silenciosos. E viu-se a si mesmo empoleirado numa cadeira elevada, como se ao comparecer perante a autoridade o próprio acusado fizesse jus a uma funesta honraria. Ao fundo da sala, entre os dois assessores, sentava-se o Senhor Presidente Bourriche, ostentando no peito as palmas de oficial da Academia. Um busto da República e um Cristo crucificado encimavam o pretório, de sorte que todas as leis divinas e humanas estavam suspensas sobre a cabeça de Crainquebille. Aquilo lhe infundia um justificado assombro.

O magistrado francês Antoine Garapon publicou o substancioso livro “Bem julgar – ensaio sobre o ritual judiciário” (edição portuguesa, 1999), onde registra a impressão que os rituais da Justiça suscitam nos cidadãos. Impressiona-os mais o espetáculo do que a discussão jurídica de fundo. Com efeito, antes de existirem leis, juízes e palácios de justiça, já existia um ritual. A obra descreve, por exemplo, como o espaço da sala de audiências é arranjado para incriminar e inibir o acusado e o submeter à ordem judicial:

O simbolismo judiciário foi buscar muitos dos seus elementos à mitologia, à Bíblia, à história, entre outros domínios. (…)

“Eram dispostos símbolos religiosos – crucifixos ou relicários – defronte dos olhos do juiz, de forma a relembrar-lhe a ética da sua função. Seguidamente, a imagem de Cristo emergiu por detrás do seu assento, criando um eixo de simetria com a pessoa do juiz que orientou progressivamente o espaço judiciário. Mas a ideia mantinha-se: recordar a todos – a começar pelo juiz – que os fundamentos da justiça são exteriores ao mundo terrestre e que Deus, ao reservar para Si o julgamento final das coisas e das pessoas, garante o seu bom funcionamento.

O mundo do debate judiciário, como assinala Robert Jacob, permanecia profundamente humano e terrestre. ‘O teatro da audiência é construído em função de uma representação da delegação divina que se manifesta pela sobreposição do corpo do juiz e da imagem de Cristo. A distribuição do espaço, dos papéis e das funções e os gestos do debate judiciário ganham sentido quando relacionados com esse eixo primordial’ (R. Jacob, ‘Images de la justice’).

Garapon citou Jean Carbonnier:

Entre nós jacobinos, a noção permanece centralizada: é à justiça do Estado que solicitamos que se liberte dos ritos, de modo a tornar-se mais íntima e menos intimidante. Uma justiça acessível e familiar, é esse o desejo eterno.

No mesmo compasso, Mauro Cappelletti e Bryanth Garth (“Acesso à Justiça”, ed. brasileira, 1988, pp. 22-24) identificaram barreiras a ser superadas para os indivíduos, sobretudo os hipossuficientes, terem efetivo acesso à justiça: 1) necessidade de reconhecer a existência de um direito juridicamente exigível, 2) aquisição de conhecimentos a respeito da maneira de ajuizar uma demanda e 3) disposição psicológica das pessoas para recorrer a processos judiciais. E acrescentaram:

Mesmo aqueles que sabem como encontrar aconselhamento jurídico qualificado podem não buscá-lo. (Um) estudo inglês, por exemplo, fez a descoberta surpreendente de que ‘até 11% dos nossos entrevistados disseram que jamais iriam a um advogado’. Além dessa declarada desconfiança nos advogados, especialmente comum nas classes menos favorecidas, existem outras razões óbvias por que os litígios formais são considerados tão pouco atraentes. Procedimentos complicados, formalismo, ambientes que intimidam, como o dos tribunais, juízes e advogados, figuras tidas como opressoras, fazem com que o litigante se sinta perdido, um prisioneiro num mundo estranho.

(…)

Nosso Direito é frequentemente complicado e, se não em todas, pelo menos na maior parte das áreas, ainda permanecerá assim. Precisamos reconhecer, porém, que ainda subsistem amplos setores nos quais a simplificação é tanto desejável quanto possível. Se a lei é mais compreensível, ela se torna mais acessível às pessoas comuns. No contexto do movimento de acesso à justiça, a simplificação também diz respeito à tentativa de tornar mais fácil que as pessoas satisfaçam as exigências para a utilização de determinado remédio jurídico.

O ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior (“Responsa­bilidade política e social dos juízes nas democracias modernas”, 1998) destaca que os juízes não desenvolvem atividade discricionária e neutra. Devem atuar inspirados pelas regras e princípios adotados, implícita ou explicitamente, pelo sistema jurídico do Estado Democrático de Direito. A Constituição de 1988 espera dos julgadores, aos quais garante independência institucional e funcional, a utilização da liberdade de julgar para a realização dos valores por ela abraçados. Por isso, todo magistrado tem responsabilidade social.

José Renato Nalini (“Ética Geral e Profissional” e “A Pós-Modernidade e a Profissão do Juiz”, ambos de 1997) apregoa a “insurreição ética dos juízes”, com mudança de consciência:

O destino do Juiz no milênio próximo é liberar-se dos contornos de um agente estatal escravizado à letra da lei, para imbuir-se da consciência de seu papel social. Um solucionador de conflitos, um harmonizador da sociedade, um pacificador. A trabalhar com categorias abertas, mais próximo à equidade do que à legalidade, mais sensível ao sofrimento das partes, apto a ouvi-las e a encaminhar o drama para uma resposta consensual. Enfim, um agente desperto para o valor solidariedade, a utilizar-se do processo como instrumento de realização da dignidade humana e não como um rito perpetuador de injustiças (grifo do autor).

Jürgen Habermas, filósofo alemão, elaborou teoria sobre a sociedade democrática contemporânea, a qual deve se pautar pela “ação discursiva”. Em outras palavras, o Estado, por seus órgãos de poder, deve dialogar de forma compreensível e transparente com a sociedade civil:

A comunicação pública perde vitalidade discursiva quando lhe falta informação fundamentada ou discussão vivaz. (…) Vivemos em sociedades pluralistas. O processo de decisão democrático só pode ultrapassar as cisões profundas entre visões de mundo opostas se houver algum vínculo legitimador aos olhos de todos os cidadãos. O processo de decisão deve conjugar inclusão (isto é, a participação universal em pé de igualdade) e condução discursiva do conflito de opiniões (Habermas, “O valor da notícia”, versão traduzida, 2007).

Deveras oportuna, pois, a reflexão do ministro Joaquim Barbosa em sua posse na presidência da mais alta Corte da Nação. Os magistrados brasileiros devem estar imbuídos da urgência em lhe conferir realidade. Já assinalei no livro “Aplicação do Código de Defesa do Consumidor” (Editora RT, 2003):

A magistratura deverá apressar-se, porque o Brasil clama por mudanças. Não podemos mais viver com velhas estruturas. Não podemos mais estar presos a soluções que nada têm a ver com o povo. Como na canção de Milton Nascimento, a Justiça tem de ir aonde o povo está.