Edição 290
Inteligência Artificial, Julgamento e Inovação: Perspectivas e Desafios no Contexto Judiciário
4 de outubro de 2024
David Diniz Dantas Desembargador Federal no Tribunal Regional Federal da 3a Região

A ascensão da Inteligência Artificial (IA) tem provocado revolução em inúmeras áreas e o campo
jurídico não é exceção. De tarefas administrativas rotineiras à previsão de desfechos em litígios, o impacto da IA nas práticas judiciais é inegável. Contudo, surge uma questão profunda e multifacetada: em que medida essa tecnologia pode auxiliar sem limitar a criatividade e a capacidade de inovação, tão necessárias nas decisões judiciais?
Quando falamos de inovação, referimo-nos à necessidade de adaptar antigas normas a novas realidades, criando precedentes e soluções únicas para situações antes não contempladas. Isso não ocorre apenas nas ciências exatas ou naturais. Como já bem apontado por grandes pensadores, a inovação também é força motriz no direito. A IA, com análises baseadas em padrões históricos e dados preexistentes, pode representar tanto ferramenta poderosa quanto obstáculo ao frescor criativo que caracteriza as decisões judiciais.
Vamos explorar os benefícios, limitações e desafios da aplicação da IA no Judiciário, ampliando a discussão com exemplos práticos de como essa tecnologia já está moldando, e pode continuar a moldar, o futuro da justiça.
Entre a eficácia e a estagnação – Decisões judiciais não são meros atos de aplicação automática de normas: elas envolvem interpretação, ponderação e adaptação de princípios jurídicos às circunstâncias únicas de cada caso. Em muitos contextos, a inovação é necessária. Um exemplo são os julgamentos envolvendo novas tecnologias, como questões de privacidade e segurança de dados em tempos de internet e redes sociais. Juízes não podem simplesmente aplicar a mesma lógica usada em casos tradicionais, pois as implicações de uma decisão mal orientada podem impactar profundamente a sociedade digital.
Pensemos em um caso em que a privacidade de dados em plataformas de redes sociais esteja em questão. A legislação existente, embora ofereça proteção, exige que o juiz esteja pronto para inovar ao interpretar o conceito de privacidade em uma era dominada pela digitalização e pelo compartilhamento de informações pessoais. Aqui, a decisão do juiz, embora deva se valer de precedentes dos tribunais superiores, deve estar aberta à realidade que tem mudado velozmente. O juiz precisa ser criativo ao construir raciocínio que leve em conta essa nova realidade.
Limitações da IA em casos complexos – A IA é uma ferramenta de análise baseada em dados históricos. Os algoritmos, ainda que sofisticados, dependem de decisões passadas para prever resultados futuros. Thomas Kuhn, em obra sobre paradigmas científicos, já apontava que a ciência avança a partir de rupturas, que muitas vezes desafiam os padrões estabelecidos. Isso também se aplica ao direito.
Um exemplo é encontrado em casos que envolvam biotecnologia, como direitos de patente em pesquisas com células-tronco. A IA pode analisar casos anteriores e oferecer insights baseados em precedentes. No entanto, em um caso inédito, em que novas descobertas científicas não têm precedentes legais, a IA ficaria limitada. O juiz precisaria decidir com manejo inovador de princípios éticos, jurídicos e científicos, elementos que não podem ser completamente compreendidos por um algoritmo treinado apenas com dados do passado.
O perigo da uniformização – Outro ponto importante a ser considerado é o risco da uniformização das decisões judiciais. Ao padronizar decisões com base em modelos de dados anteriores, surge o risco de se perder a flexibilidade necessária para adaptar a Justiça às nuances dos casos concretos. Por exemplo, nos tribunais trabalhistas, decisões sobre rescisão de contratos muitas vezes envolvem fatores únicos, como a relação pessoal entre empregados e empregadores, o contexto econômico regional e as circunstâncias específicas de cada trabalho.
Um caso ilustrativo é o de uma rescisão contratual que envolva trabalhador com limitações físicas em uma pequena empresa familiar. A IA, ao analisar casos anteriores de rescisão, poderia recomendar uma solução padrão baseada em normas gerais. Porém, o juiz humano poderia perceber que a relação de trabalho envolve nuances emocionais e sociais não consideradas pela IA. O julgamento inovador exigiria sensibilidade especial para adequar a decisão à realidade daquele caso, o que apenas o olhar humano pode captar.
Adaptação da justiça ao caso concreto e a singularidade humana – A flexibilidade do sistema judicial humano é uma de suas maiores forças. Desde Aristóteles, na “Ética a Nicômaco”, a Justiça é concebida como algo que deve ser moldado ao caso concreto, considerando fatores humanos e circunstanciais.
As emoções, motivações e particularidades de cada indivíduo são variáveis que um algoritmo tem enorme dificuldade de captar. No direito de família, por exemplo, muitas decisões são fortemente influenciadas por fatores emocionais e contextuais. Casos de guarda compartilhada, adoção ou conflitos de filiação socioafetiva são repletos de particularidades que exigem interpretação empática e intuitiva.
Em decisão sobre a guarda de uma criança, a IA pode recomendar modelo de guarda compartilhada com base em dados de outros casos semelhantes. Contudo, se um dos pais tiver histórico de abuso psicológico, o juiz humano precisa usar a sensibilidade para perceber que o bem-estar da criança estaria em risco em um cenário como o sugerido. Esse tipo de intuição não pode ser captado pela IA, que se baseia apenas em precedentes e padrões.
Inovação jurisprudencial e a criação de novos precedentes – Juízes, frequentemente, são chamados a criar novos precedentes, sobretudo em áreas emergentes, como biotecnologia, meio ambiente e direitos digitais. Um exemplo recente ocorreu no Brasil com a regulamentação dos direitos autorais de criadores de conteúdo digital pois a lei ainda carece de parâmetros claros para lidar com questões de monetização em plataformas de streaming e redes sociais.
Um juiz, ao lidar com casos envolvendo a remuneração de criadores de conteúdo, pode precisar inovar, interpretando o conceito de direitos autorais em contexto não previsto quando da criação de leis de direitos autorais. A IA pode oferecer insights com base em casos similares, mas não seria capaz de adaptar os princípios jurídicos de forma a criar precedente que responda à realidade tecnológica.
Auxílio, não substituição – É fundamental entender que a IA deve ser utilizada como ferramenta auxiliar no Judiciário, e não como substituto do julgamento humano. Seu valor reside na automação de tarefas repetitivas e na capacidade de processar grandes volumes de dados com rapidez e precisão. Entretanto, o ato de julgar envolve mais do que seguir padrões: exige considerar a humanidade em todas as suas nuances.
Exemplo prático do uso eficaz da IA é sua aplicação em tarefas administrativas, como a triagem de processos ou a organização de documentos. Segundo o CNJ, até 2023, 62 tribunais brasileiros – entre os quais se destacam pela quantidade de projetos, o TJRS e o STJ – já utilizavam IA. No TJSP, está em implementação projeto voltado à utilização de IA para classificação automática de petições e agilização do andamento processual. Isso libera juízes, servidores e advogados para se concentrarem em aspectos mais críticos e inovadores dos casos, onde a interpretação humana seja essencial.
Garantindo inovação e ética no uso da IA – Para que a IA impulsione a inovação, ao invés de obstrui-la, é crucial implementar princípios claros de transparência, supervisão e ética em seu desenvolvimento e utilização. Os algoritmos de IA devem ser transparentes, e suas decisões sempre passíveis de revisão por juízes. Isso garante que as recomendações feitas por IA possam ser escrutinadas, corrigidas e, se necessário, ajustadas para evitar distorções.
Um exemplo seria a supervisão humana em casos de indenização por danos pessoais. A IA poderia sugerir indenização padrão baseada em decisões passadas. No entanto, se o juiz perceber que há particularidades no caso – como a vulnerabilidade social da pessoa, seu grande sofrimento físico e moral – ele pode ajustar a decisão para que a justiça seja feita.
Conclusão – A IA tem enorme potencial para transformar o sistema judiciário, melhorando a eficiência, reduzindo custos e proporcionando análises detalhadas que auxiliem na tomada de decisões informadas. Esse caminho tem sido frutuosamente seguido pelos órgãos de cúpula na gestão do Judiciário, notadamente o CNJ e o CJF. No entanto, o uso da IA deve ser sempre complementado pelo julgamento humano, que traz consigo a empatia, a criatividade e a capacidade de inovar. Somente assim garantir-se-á que a justiça seja adaptada às particularidades de cada caso, preservando o que há de mais essencial no ato de julgar: a sensibilidade humana.
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