A indisponibilidade dos direitos da personalidade e as redes sociais
21 de julho de 2014
Thiago Ferreira Cardoso Neves Professor da Emerj
A busca pela fama e notoriedade não é um fenômeno recente. Ao contrário, é inerente ao ser humano o desejo de ver os seus atos conhecidos e reconhecidos pelos demais indivíduos. Isso, hoje, é facilitado pelo assombroso crescimento dos veículos de comunicação, em que a Internet se insere como poderosa ferramenta de divulgação e informação. E, dentro desse mar em que navegam milhões de internautas, estão as redes sociais, as quais permitem às pessoas ampla divulgação e exposição da sua imagem, intimidade e privacidade.
A imagem, a intimidade e a privacidade estão compreendidas, sem sobra de dúvidas, no conjunto de atributos que compõem o rol dos direitos da personalidade, que nada mais são do que direitos inatos à pessoa, isto é, são direitos titularizados pelo sujeito pelo simples fato de ser ele uma pessoa, tendo como objetivo a realização da esfera íntima do indivíduo.
São os direitos da personalidade corolários da dignidade da pessoa humana, a qual consiste no reconhecimento de que todas as pessoas têm o direito a uma vida digna e ao mínimo essencial para a realização dos seus projetos. E para a realização da pessoa, especialmente na sua esfera íntima, é preciso se reconhecer a existência e a necessidade de proteção dos direitos da personalidade.
Por isso, não há outra conclusão do que aquela em que se reconhece que esses direitos possuem status constitucional, integrando verdadeiramente o bloco de constitucionalidade. Pelo bloco de constitucionalidade, integram a Constituição não apenas as normas formalmente inseridas em seu texto, mas também aquelas que tenham conteúdo de Constituição, chamadas de normas materialmente constitucionais, especialmente aquelas que dizem respeito aos direitos fundamentais.
Assim, amplia-se o conceito de Constituição para além das normas incluídas apenas em seu texto, de modo a compreender, dentro da noção de Constituição, também normas infraconstitucionais, “desde que vocacionadas a desenvolver, em toda a sua plenitude, a eficácia dos postulados e dos preceitos inscritos na Lei Fundamental, viabilizando, desse modo, e em função de perspectivas conceituais mais amplas, a concretização da ideia de ordem constitucional global”.1
No caso dos direitos da personalidade, a sua integração ao bloco de constitucionalidade se impõe por serem eles uma exteriorização da dignidade da pessoa humana, caracterizando-se, induvidosamente, como direitos fundamentais.
Como prova do que aqui se disse, basta simples leitura dos incisos V e X do art. 5o da Constituição Federal, os quais preveem expressamente tutela específica para esses direitos, de modo a assegurar a plena proteção e realização do indivíduo como pessoa humana. Além da Constituição, os direitos da personalidade também têm previsão infraconstitucional, mais especificamente no Código Civil em seus arts. 11 a 21.
Dada essa estatura constitucional e também os objetivos a que esses direitos visam, têm os direitos da personalidade algumas características marcantes. Entre elas estão a indisponibilidade e a irrenunciabilidade, que estão asseguradas no Código Civil especificamente em seu art. 11.
Por essas mencionadas características, não é possível à pessoa dispor livremente dos seus direitos inatos, e tampouco renunciar a eles e à sua tutela. Essa disposição do Código Civil é alvo de diversas críticas por parte da doutrina, e quase já se chegou ao consenso de que essa indisponibilidade e irrenunciabilidade não são absolutas, ou seja, há um limite para elas, pois caso contrário haveria violação à autonomia privada, que nada mais é que o direito da pessoa de se autodeterminar, de escolher os seus projetos de vida e tomar as decisões sobre os rumos que ela deverá tomar.
Então, a indisponibilidade e irrenunciabilidade têm limites. Mas, essa limitação à indisponibilidade e irrenunciabilidade decorrente da autonomia privada é absoluta? Por conta da autonomia privada, qualquer um pode fazer o que quiser da sua vida, do seu corpo, da sua intimidade e privacidade? Há um limite do limite? Aqui a resposta também nos parece ser positiva, e isso porque a liberdade ampla e total do indivíduo pode levá-lo à violação e à degradação da sua própria dignidade. A dificuldade aqui, entretanto, parece ser a definição da exata medida desse limite.
E essa questão ganha contornos cada vez mais dramáticos quando falamos das redes sociais. Nas redes sociais há cada vez mais casos de renúncia e disposição quase irrestrita da intimidade, da imagem e da vida privada. Inúmeros são os exemplos de pessoas que tiveram a sua intimidade violada, exposta, sem qualquer restrição. E, em muitos desses casos, as consequências dessa superexposição são traumáticas, havendo, inclusive, algumas situações noticiadas na mídia de suicídio de meninas que tiveram momentos de grande intimidade expostos na rede e, por conta da imensa vergonha e constrangimento que sentiram pelo que foi divulgado, acabaram dando fim a própria vida.
E, isso é importante frisar, muitas dessas situações são provocadas pela própria vítima que, ou diretamente expõe as informações e fotografias nos ambientes virtuais, ou tão somente aguça a curiosidade de terceiros que, na busca para descobrir aquilo que foi insinuado, acabam descobrindo e expondo o que não deveriam.
Diante disso, questiona-se como fica a questão da proteção dos direitos da personalidade nesses casos, especialmente quando a própria lei prevê a indisponibilidade e irrenunciabilidade desses direitos. É possível impor restrições às redes sociais para a proteção das próprias pessoas? É legítimo ao Estado intervir na esfera íntima, na autonomia do indivíduo e impedir que ele veicule essas informações, ou publique determinadas fotos?
Imaginem se amanhã um usuário da rede receber um e-mail de um desses provedores de conteúdo solicitando que as suas fotos íntimas, publicadas pela própria pessoa, vestindo uma sunga ou um microbiquíni, ou simplesmente de roupas íntimas ou, ainda, completamente despida, sejam retiradas do ar por determinação das autoridades. Cremos que a maioria dos envolvidos, senão a unanimidade, não irá gostar, e buscará o Judiciário para ver o seu direito de liberdade, sua autonomia privada, resguardada.
Agora, imaginem se essas fotos publicadas pelo próprio usuário no provedor da rede social forem utilizadas indevidamente por um terceiro, que as coloque em sites de conteúdo pornográfico, induzindo, por exemplo, à prostituição. Aqui, temos a certeza de que ninguém irá gostar.
Como é possível perceber, essa situação não é simples, revelando-se como verdadeiro conflito de direitos fundamentais, especificamente a autonomia privada e a privacidade e intimidade. Dada a natureza dos direitos envolvidos, não é fácil resolver esse imbróglio e decidir por criar restrições ou manter a quase irrestrita liberdade dos usuários, não havendo resposta pronta no ordenamento para isso.
A solução, caso seja levada ao Judiciário, deverá ser construída pelo juiz, utilizando-se do critério da ponderação para decidir qual é a resposta adequada ao caso concreto.
Diante do que dissemos, é possível perceber que essas questões que envolvem os direitos da personalidade e as redes sociais devem ser examinadas com cautela. É certo que não é possível impor às pessoas uma censura, impedindo absolutamente a veiculação de dados, informações e fotografias, como já foi vivido nesse país um dia. Como costuma afirmar o Professor e Ministro Luís Roberto Barroso, só quem nunca viu a sombra não sabe reconhecer a luz. Esses são tempos que, se Deus quiser, jamais voltarão. Mas isso não significa que não se deva repensar o alcance da proteção aos direitos da personalidade, a fim de se evitar que essa liberdade que hoje existe não seja uma armadilha feita, por nós mesmos, para nós mesmos cairmos nela.
Nota _____________________________________________________________________
1 Trecho extraído do voto do eminente Ministro Celso de Mello, no julgamento da ADI 595/ES, divulgado no Informativo 258 do Supremo Tribunal Federal, e disponível em http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo258.htm. #ADIn: Bloco de Constitucionalidade (Transcrições). O Ministro Celso de Mello voltou a enfrentar a questão no julgamento da ADI 514/PI, divulgada no Informativo 499 do Supremo Tribunal Federal, e disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo499.htm#transcricao1.