Indenização por morte e a figura do núcleo familiar – Limites da legitimidade

30 de abril de 2012

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A crescente busca ao Poder Judiciário para o ajuizamento de demandas a perquirir dano moral por pessoas que se sentem lesadas pela morte de outras, chama a atenção. O cenário natural, em que apenas os entes mais próximos da vítima buscavam indenização, modificou-se, levando a demandar também pessoas sem qualquer vínculo de parentesco ou com liame distante, sob a simples justificativa de que a perda gerou sofrimento.

Esta situação traz questionamentos que devem ser enfrentados: Quem seriam os reais legitimados a buscar indenização moral nestes casos? A lei traz algum critério limitativo? A indenização aos parentes mais próximos excluiria a obrigação relativa aos mais distantes? O núcleo familiar pode ser representado em juízo para buscar uma indenização coletiva e única?

A matéria é controvertida. Quando se trata de parentes, a doutrina divide-se para estabelecer os possíveis legitimados. Corrente tradicionalista adota a regra de direito sucessório, entendendo que apenas parentes até o quarto grau, na linha hereditária, possuem legitimidade para requerer compensação moral, excluindo o direito dos demais. Outra parte da doutrina entende aplicar-se analogicamente a regra do artigo 948, II, do Código Civil, limitando-se a indenização aos dependentes da vítima, tese reforçada pelo parágrafo único do artigo 20 do mesmo diploma legal.  Por fim, o entendimento que a jurisprudência vem adotando amplamente, afirma que o direito a ser indenizado por morte de outrem é de qualquer pessoa que se sinta ofendida, possuindo ou não vínculo de parentesco.

Tais posicionamentos são díspares e parecem não ter dado a solução mais justa ao impasse, merecendo críticas. Os dois primeiros afrontariam diretamente o direito ao acesso à Justiça garantido constitucionalmente, até porque a relação não é de cunho sucessório, mas obrigacional. Já o terceiro, por sua amplitude, permitiria que um número infindável de pessoas acionasse o Poder Judiciário, diante da subjetividade, bastando sentir-se lesado para pleitear reparação.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), pela lavra do Ministro João Otávio Noronha, reformou acórdão do Tribunal do Estado do Rio de Janeiro (TJ/RJ), concluindo que a indenização por dano moral paga aos familiares mais próximos de uma vítima fatal de acidente, não exclui, automaticamente, a possibilidade de que outros parentes venham a ser indenizados, sob a justificativa de não haver solidariedade entre estes, no que diz respeito ao pedido indenizatório, pois cada um possui direito autônomo, oriundo da relação afetiva e de parentesco.[1]

Tal posicionamento vem sendo adotado reiteradamente pelo STJ, afirmando que a compensação decorre de dano individual, personalíssimo, sofrido por cada membro da família ligado imediatamente à vítima, em gradações diversas, o que deve ser levado em conta para fins de arbitramento da indenização[2].

No entanto, tratando-se de dano moral puro, a questão da legitimidade torna-se complexa, haja vista a inexistência de ordenamento jurídico específico disciplinando a amplitude desse direito, não havendo, portanto, previsão legal estabelecendo quem possa pleitear indenização. Preconiza-se que, nesses casos, a característica principal é a relação de afetividade presumida apenas em relação aos parentes próximos, entenda-se, cônjuge/companheiro, descendentes e ascendentes[3].

Ora, quando terceiros se julgam reflexamente ofendidos pela lesão imposta a outra pessoa, torna-se imperioso limitar o campo da repercussão da responsabilidade civil, visto que se poderia criar uma cadeia infinita ou indeterminada de possíveis pretendentes à reparação da dor moral[4]. Portanto, caberia aqui refletir se a indenização paga aos parentes mais próximos excluiria a obrigação relativa aos mais distantes e a terceiros, pois, se assim não o fosse, estar-se-ia diante de verdadeira indústria da indenização, tornando-a, muita das vezes, fonte de enriquecimento sem causa àqueles que desejam se valer do infortúnio de um terceiro.

Com vistas a tentar solucionar o dilema, ao menos com relação aos parentes, a doutrina, modernamente, vem aceitando a figura do “núcleo familiar” como legitimada a buscar indenização.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) ampliou a proteção à família para além das formadas pelo casamento, reconhecendo os mesmos direitos e as mesmas garantias à união estável entre o homem e a mulher, e à comunidade monoparental formada por qualquer dos pais, independentemente de existência de vínculo conjugal, e seus descendentes.[5]

Atualmente, o que se entende por elo familiar é a ligação duradoura de afeto, mútua assistência e solidariedade entre duas ou mais pessoas, tenham elas ou não vínculos de parentesco[6] e sejam ou não do mesmo sexo, eis que o Supremo Tribunal Federal (STF), em recente julgado, estabeleceu ser possível o reconhecimento da união homoafetiva[7], o que já está evoluindo ao reconhecimento judicial do direito ao próprio casamento entre pessoas do mesmo sexo, também conforme precedentes.

Em termos práticos, a atribuição de legitimidade ao núcleo familiar, para se pleitear indenização por dano moral, foi uma solução encontrada pela doutrina atenta ao ajuizamento indiscriminado, malicioso, de múltiplas ações ou “ações em cascata”, muitas das vezes, pelo mesmo advogado, relacionadas ao mesmo fato, beirando o locupletamento.

Tal solução, apesar de extremamente razoável, esbarra no pressuposto processual da legitimidade, eis que o rol de legitimados não contempla o “núcleo familiar”, por não ser este dotado de personalidade jurídica ou ser reconhecido como ente despersonalizado, apto a figurar em demanda judicial.

A CRFB/88 conferiu, a cada indivíduo, autonomia plena para a propositura de ação de indenização quando restar configurado o dano, assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem, não excluindo da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito[8].

Não obstante, razoável a asserção de que o reconhecimento do dano moral por lesão ou ofensa deve ser analisado individualmente, segundo as circunstâncias e as condições da pessoa ofendida, não havendo como estabelecer, previamente, critérios padronizados, indenizações tarifadas ou não havendo como fixar posição única, pois a equação que se apresenta não é de apenas aceitar ou repudiar a tese, mas de examinar sua aplicação quando preenchidos os pressupostos objetivos e subjetivos que informam o instituto e quantificam a extensão do sofrimento.

Assim, tendo em vista que o acesso à justiça é livre e indiscriminado, para minorar a situação não eventual de busca do amparo jurisdicional de forma temerária e ímproba, o Poder Judiciário, quando instado a se pronunciar, deve ser firme no propósito de desestimular a indústria do dano moral, devendo estar atento ao conjunto probatório dos autos, eis que para a fixação de indenização, nestes casos, imprescindível se faz a demonstração cabal da dor, da lesão suportada com o evento “morte de outrem” originada por ato ilícito, não sendo razoável a imputação de produção de prova negativa pelo alegado ofensor.
Sob este enfoque, impende destacar que, em casos de indenização por morte oriundas de acidente de trânsito, o instituto da responsabilidade objetiva, previsto no art. 37, § 6o, da CRFB/88, cria uma situação desfavorável às prestadoras de serviço público, ao exigir destas a prova da inexistência do liame afetivo, pois isto extrapola a sua capacidade probatória. Não raro, protegido pelo manto da hipossuficiência técnico-probatória, é deferida a inversão do ônus da prova ao demandante, o que sequer deveria ocorrer nestes casos, em que as partes não se enquadram na condição de consumidor (direto ou por equiparação) e prestador de serviços, causando uma situação injusta ao demandado.

A evolução do direito rígido ao mais humano, lastreado em princípios com força de lei, aliado à prevalência dos valores individuais sob os materiais, atribuiu ao Poder Judiciário uma responsabilidade que jamais se viu no direito brasileiro, qual seja: a de entregar a prestação jurisdicional da forma mais justa, mediante a solução de conflitos baseada não somente em leis, mas na sensibilidade do julgador.

Não se pode deixar, no entanto, que a proteção ao hipossuficiente, frente aos demandados em geral, imponha a estes uma situação injusta, consistente no dever de compensar uma dor moral a um terceiro que se beneficia dos preceitos da responsabilidade objetiva, sem que este sequer realize a prova de seu direito, mediante a demonstração do liame afetivo e do sofrimento da perda.

A subjetividade intrínseca no dano moral não pode permitir que o suposto ofensor esteja condenado a ficar ad eternum refém de novas demandas, limitadas apenas ao instituto temporal da prescrição e decadência, sob pena de gerar uma situação de insegurança jurídica.

O presente não tem a pretensão de esgotar a discussão emergente acerca da legitimidade do núcleo familiar de ser parte em uma demanda judicial, mas apenas a de levar o leitor a refletir que o Poder Judiciário deve agir para evitar o descrédito do instituto do dano moral – o qual necessitou de fortes embates jurídicos para ser conquistado e assegurado pela Carta Magna, através da repressão, ao atuar temerário da busca por indenização a qualquer custo e do estabelecimento de limites a se evitar que a legitimidade processual de demandar seja ilimitada.

Caberá à jurisprudência a sedimentação de conceitos e o estabelecimento das diretrizes, e, em especial, às instâncias extraordinárias a fixação de padrões, evitando precedentes, injustiças e prestigiando a isonomia substancial, haja vista que a possível desconformidade dos julgados concorre para a instabilidade e insegurança jurídica.



[1] (AgRg no REsp no 1.236.987 – RJ, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, julgado em 2/8/11)

[2] (REsp no 1101213/RJ, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 2/4/2009, DJe 27/4/2009); (AgRg no Ag 1.255.755/RJ, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 10/5/2011, DJe 13/5/2011); (REsp 1.139.612/PR, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 17/3/2011, DJe 23/3/2011)

[3] SEBASTIÃO, Jurandir. Responsabilidade Médica. 3. Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 79

[4] THEODORO JUNIOR, Humberto. A liquidação do Dano Moral. Ensaios jurídicos – O Direito em Revista. Rio de Janeiro: IBAJ – Instituto Brasileiro de Atualização Jurídica, 1996, v. 2, p. 513)

[5] Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§3o Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

[6] §4o Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

[7] ADI 4277 e ADPF 132

[8] Art. 5o, inciso II: Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
Art. 5o, inciso V: É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem.
Art. 5o, inciso XXXV: A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Art. 5o, inciso X: São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra, a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
Art. 186 do CC: Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 927 do CC: Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.