Fera acuada

31 de dezembro de 2008

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NOTA DO EDITOR
Rodolfo Konder, companheiro no Conselho Deliberativo da ABI, escritor e poeta, tem 19 livros publicados, o último “As Areias de Ontem”. Foi contemporâneo de Wladimir Herzog no DOI-Codi, prisioneiro do indigitado torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Membro do Conselho Municipal de Educação de São Paulo, da Academia Paulista de Educação, Conselheiro do MASP e do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. É Diretor Cultural da FMU. Exilado de 1964 a 1978, no México, Uruguai, Canadá e Estados Unidos.
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Uma convenção, aprovada por consenso pela Assembléia Geral da ONU a 10 de dezembro de 1984, consagra o princípio de jurisdição universal obrigatória sobre os torturadores. Isso quer dizer que um torturador, a menos que seja extraditado para sofrer processo em outro país, será processado em qualquer nação onde se encontre. Além disso, a convenção impede o repatriamento forçado ou a extradição de pessoas que corram o risco de ser torturadas. Mais: exclui a “obediência a ordens superiores” como defesa contra uma acusação de tortura. Obriga ainda os Estados a investigar quaisquer informações sobre a prática de tortura e de outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. E cria um Comitê contra a tortura, que examina informes, investiga denúncias, busca esclarecimentos, acolhe informações.
Para as inúmeras vítimas de tortura, que vivem num campo minado pela memória de horrores muitas vezes indescritíveis, a convenção representa um certo alívio. Digo “certo alívio” porque há aqui outra questão envolvida. Há cura para a tortura? Podemos, e devemos, punir duramente os torturadores. Mas, e os torturados?
No mundo inteiro, jornalistas como eu têm sido detidos e torturados por defenderem pacificamente suas opiniões. Eles são vítimas da opressão oficial, como milhares de dissidentes políticos, artistas, intelectuais, menores e mulheres.
Na Turquia, nas Filipinas, em El Salvador, na Síria, na Índia, na Etiópia, no Marrocos, temos inúmeros registros de mulheres torturadas, sexualmente humilhadas pelos agentes da lei e da ordem. Mesmo enfrentando graves dificuldades para denunciar as violações dos seus direitos, enfermeiras, professoras, advogadas, juízas, assistentes sociais, estudantes, jornalistas, religiosas, militantes e parentes de pessoas perseguidas têm revelado os abusos estarrecedores cometidos contra elas pelas autoridades. Os governos – cumpre lembrar – são responsáveis pelo respeito às normas internacionais de proteção aos Direitos Humanos. São os governos, portanto, que as vêm estuprando, em dezenas de países.
Diante do torturador, olhamo-nos num implacável espelho. Nossa própria imagem se parte, fragmenta-se em mil pedaços. Isso não nos deixa mais espaço, por exemplo, para qualquer crença ingênua na bondade intrínseca dos seres humanos. A experiência da tortura torna as pessoas mais solitárias, deixa seqüelas quase insuperáveis. Sugere inclusive uma “síndrome do torturado”, semelhante à “síndrome do prisioneiro da guerra”.
O Canadian Center for Investigation and Prevention of Tortura (Centro Canadense para Investigação e Combate à Tortura), em Toronto, e o Rehabilitation Center for Torture Victims (Centro de Reabilitação das Vítimas da Tortura), em Copenhague, são as únicas instituições que se dedicam à questão da tortura e suas seqüelas, como objeto precípuo de suas atividades. A organização canadense funciona desde 1984; a dinamarquesa, desde 1982. Em ambos os casos, há estudos perturbadores, conclusões chocantes, que envolvem inclusive a configuração de uma “síndrome do torturado”. A vítima carrega pesada carga do passado, sofre uma espécie de inversão moral (vê nas outras pessoas propósitos perversos, intuitos cruéis e posturas mentirosas), convive com um atormentador sentimento de culpa, sofre de depressões freqüentes, sente-se perdida, desorientada, perde o sono ou tem insistentes pesadelos. Sua crença mais profunda no ser humano lhe foi retirada, ou, no mínimo, rudemente golpeada.
Relatório recente da Anistia Internacional revela que a tortura ainda é praticada com regularidade em “mais de noventa países”. Irã, Paquistão, Turquia e Líbia encabeçam a longa lista.
Em 1975, nos subterrâneos da Ditadura Militar, conheci a tortura – talvez a pior das fraturas da alma humana. Naqueles tempos, multiplicavam-se os regimes autoritários na América Latina. Hoje, felizmente, conquistamos a democracia e vivemos em liberdade. Embora a prática da tortura persista em muitos países, crescem as pressões da opinião pública mundial em defesa dos Direitos Humanos, como parte de uma nova cultura planetária que está surgindo.