Federalismo de cooperação nas compras públicas destinadas ao enfrentamento da covid-19

14 de outubro de 2021

Compartilhe:

E a inexigibilidade de licitação para alienação de bens públicos no âmbito do SUS

É fato público e notório que a pandemia causada pela covid-19 tem impactado nas políticas públicas, tanto do Estado de Minas Gerais, quanto de tantos outros organismos nacionais e internacionais que, diariamente, publicam medidas que visam minimizar os impactos na saúde, bem como os impactos financeiros, dentre tantos outros que nascem diariamente em tempos de pandemia.

Surge, nesse contexto, a necessidade de criar políticas públicas para atendimento e auxílio aos pequenos municípios e hospitais filantrópicos para enfrentamento dos efeitos calamitosos da covid-19, uma vez que estes encontram dificuldades na aquisição de insumos, pois não conseguem escala suficiente para a aquisição do material que se tornou escasso no mercado. O que leva, de um lado, ao superdimensionamento do quantitativo para gerar o volume exigido pelos fornecedores para compra ou, de outro, o potencial desabastecimento dos materiais. Além do mais, essas entidades ficam sujeitas à prática de preços excessivos em comparação com a economia gerada pelo ganho em escala.

A Constituição Federal de 1988 instituiu expressamente o Federalismo Cooperativo, dispondo matérias de competência comum entre todos os entes federados, especialmente no que tange às ações e serviços públicos de saúde (art. 198, §1). Há necessidade de unidade no planejamento e direção das tarefas, com a finalidade de evitar choques e dispersão de recursos e esforços, coordenando-se as ações das pessoas políticas, com vistas à obtenção de resultados mais satisfatórios.

No que interessa ao exame em questão, verifica-se que o Estado de Minas Gerais, por meio do Programa “Protege Minas”, optou por adquirir diretamente equipamentos de proteção individual (EPIs), com o intuito de repassá-los, ao preço de custo de aquisição, aos municípios e eventualmente aos hospitais filantrópicos que atuem complementarmente ao Sistema Único de Saúde (SUS) – devidamente contratualizados. 

Diante desse cenário, resta demonstrar a viabilidade jurídica da alienação onerosa dos EPIs adquiridos em grande escala pelo estado aos municípios e hospitais filantrópicos integrantes da Rede SUS, a despeito da realização do procedimento licitatório.

Decorre diretamente da Constituição Federal o dever de licitar, nos termos do art. 37, XXI.  Outrossim, cumpre observar, considerando a previsão do art. 22, XXVII, que compete à União editar normas gerais sobre licitações e contratos administrativos. 

Pelo disposto na alínea “f” do inciso II do art. 17 da Lei nº 8.666/1993, ainda vigente, por força do art. 193, II da Lei nº 14.133/2021, autoriza-se a alienação onerosa de bens que componham o patrimônio da Administração Pública, independentemente de prévio procedimento licitatório, desde que tal negócio seja celebrado com outra entidade da Administração Pública. 

Segundo prevê a mencionada alínea “f” do inciso II do art. 17 do Diploma Federal Licitatório, caso uma unidade administrativa não possua mais previsão da utilização de determinado material ou equipamento, poderá aliená-lo a outro órgão ou entidade da Administração Pública, como forma de evitar-se que o mesmo se deteriore pela falta de uso.

A nosso sentir, a licitação dispensada, em referência, abrangeria toda a Administração Pública, conceituada na forma do art. 6º, XI, da Lei nº 8.666/1993, compreendida como “a Administração direta e indireta da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios…”.

A razão de inclusão deste permissivo legal está na tentativa de alcançar-se o interesse público, que é a finalidade precípua do Estado, independentemente de quem seja a pessoa estatal que o faça.

É por essa razão que as hipóteses previstas no art. 17 tratam da licitação dispensada, hipótese em que o legislador se antecipou à discricionariedade do gestor público para preestabelecer a inconveniência da licitação, cabendo ao agente administrativo, no caso de decidir pela contratação, apenas reconhecer a situação de dispensa.

Por outro lado, restaria indagar a respeito da exigência de licitação em relação às entidades privadas. Em princípio, apesar da alienação de bens móveis não exigir autorização legislativa, o art. 22, parágrafo 5º, da Lei nº 8.666/1993 impõe, via de regra, a licitação na modalidade leilão. 

Todavia, tal modalidade se aplica quando se trate da alienação de um bem móvel inservível, o que não é o caso, uma vez que os mesmos visam aparelhar as entidades integrantes do Sistema Único de Saúde.

Por essa razão, parece-nos presente a situação de inviabilidade de licitação, amparada no caput do art. 25 da Lei Federal nº 8.666/1993, considerando que no caso não se pretende propriamente a alienação de bens à um terceiro (art. 2º da Lei Federal nº 8.666/1993), mas, unicamente, a uma entidade privada que integra o SUS, ainda que complementarmente, conforme autoriza o art. 199, §1º da Constituição.

A inviabilidade de competição se configura não apenas quando a ausência de pluralidade de alternativas afasta a possibilidade de seleção. Para os fins do art. 25 da Lei nº 8.666/1993, pode configurar-se também nos casos em que houver impossibilidade de seleção entre as diversas alternativas, segundo um critério objetivo, ou quando o critério da vantajosidade for incompatível com a natureza da necessidade a ser atendida, tal como ocorre no presente caso, uma vez que os bens foram adquiridos para atender a demanda das entidades integrantes do SUS.

Além disso, no presente caso, a alienação de bens pretendida possui destinatários específicos, o que por si só afasta a possibilidade de competição. Isso porque, a razão da aquisição dos bens é para atender toda rede integrante do SUS de uma situação de calamidade pública e não para gerar receita para o Estado, de modo que não há que se perquirir a respeito de proposta mais vantajosa para a Administração “fornecedora” e nem haverá ofensa ao princípio da isonomia.

A habilitação dos municípios e hospitais filantrópicos para participarem do programa deverá ser realizada de forma impessoal, obedecendo aos critérios objetivos definidos pela Secretaria Estadual de Saúde, o que assegura a isonomia e inviabiliza qualquer forma de competição, já que todos os beneficiários do programa serão atendidos, inserindo-se, portanto, no disposto no art. 25, caput, da Lei nº 8.666/1993.

Importante frisar que o referido programa governamental não se trata de atividade econômica em sentido estrito, uma vez que a alienação será feita a preço de custo de aquisição, mas mero instrumento para assegurar a manutenção da prestação do serviço público de saúde em virtude das restrições de oferta que acometeram o mercado fornecedor.

Saliente-se, notadamente do ponto de vista da aquisição dos equipamentos pelos municípios, além de abarcados pelo raciocínio exposto, estes estão expressamente dispensados de licitar, conforme autoriza a Lei nº 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus. E se o podem fazer junto a entes privados, com maior razão podem adquirir tais materiais junto a outro ente federativo que lhe é parceiro na gestão do SUS, mormente em razão da vantajosidade em relação aos preços que seriam praticados por particulares.

Diante do exposto, entendemos que o Federalismo Cooperativo impõe às maiores unidades políticas da Federação o dever de apoiar os entes menores, coordenando as ações públicas que lhes sejam comuns, com vistas à obtenção de resultados mais satisfatórios, principalmente no cenário de calamidade pública causado pela pandemia da covid-19.