Estado Paralelo: Uma ajuda ao crime organizado?

5 de setembro de 2002

Cármine Antônio Savino Filho Desembargador do TJERJ

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A ousadia e a desfaçatez de associações de delinqüentes, em progressivas ações criminosas, levou boa parte da população a aceitar a tese de que nos encontramos diante de um “Estado paralelo” criado e mantido pelo crime organizado. o exercício ilegítimo de algumas funções de estado, a imposição de regras coercitivas, o fechamento de comercio e escolas, o julgamento e execução de “réus”, a administração de benéfica sociais para as populações carentes, tudo isto veio fortalecer a convicção da existência de um Estado paralelo. Esta idéia, entretanto, deve ser formalmente recusada.

Primeiro, por conferir, para uma mera organização criminosa, prestígio perigoso e status imerecido que a condição de Estado lhe daria. Segundo, porque não existem na natureza e na ação do crime organizado as características estruturais daquilo que se entende historicamente como Estado. Vejamos.

A historia da formação do Estado transcorre por milênios e começa há 5.000 anos, na Alta antigüidade, quando se deu a unificação política da primeira das trinta e cinco dinastias do Egito. Evolui durante séculos, até chegar ao atual Estado Democrático, que consagra a universalização do direito de participação política e alternância de poder.

Na Idade Média a fragmentação de reinos fragilizou a concepção de Estado, enquanto no século XVII as monarquias absolutistas da Europa, em pleno apogeu, confundem o Estado com a pessoa do governante. “L’État c’est moi” disse Luís XIV ao entrar no parlamento em 1695, em trajes de caçador, chibata na mão.

Já no século XVIII, os filósofos iluministas, a Revolução Francesa e as cortes britânicas formariam a gênese dos direitos civis que no século seguinte seriam incorporados nas Constituições de todos os Estados civilizados. Os efeitos da Revolução Industrial viriam , no século XIX, não só a cobrar do Estado a proteção das incipientes massas urbanas, como também das forças produtivas. É nessa gradativa ampliação do papel do Estado como agente interativo e controlador que se da a passagem do Estado liberal para o Estado social, semente do Estado Moderno.

O conceito de Estado, através dos tempos, sofreu profundas modificações e permanece ainda hoje como um campo onde se tem de caminhar com cuidado e prudência. David Wiston menciona o fato de C. H. Titus haver coligido cerca de 150 definições de Estado, diferentes na abordagem das diversas áreas de conhecimento, como o0 Direito, a Ciência Política, a Sociologia, a Economia etc.

Embora não haja um conceito universal de Estado que contemple a todas as tendências das ciências comportamentais, dois deles se afiguram como fundamentais. Primeiro, o que considera a existência do Estado vinculada a supremacia dos objetivos éticos e sociais, em razão dos interesses dos indivíduos que o compõem e para cujo atendimento o Estado deve buscar a consecução dos fins gerais. Segundo, o que vê o Estado como uma realidade normativa e lhe atribui uma natureza jurídica formal.

A conjunção de Soberania, Povo e Território é fundamental a noção de Estado. A Soberania – cujo conceito somente se firmou no século XVI, no cicio das Grandes Navegações – é uma ordem jurídica que se coloca acima das demais e sobre a qual não prevalecem outras ordens jurídicas. Nada disto o crime organizado logrou conquistar, mesmo nas centenárias sociedades criminosas européias e asiáticas, muito mais estruturadas e experientes que as facções criminosas brasileiras.

O crime, por mais organizado que seja, não dispõe dos elementos constitutivos do Estado. Como situar, então, estes movimentos de delinqüência? Cremos que a resposta está no confronto das duas correntes básicas sobre a natureza do Estado: a histórico-indutiva, que tem origem em Aristóteles, passa por Santo Antonio, Hegel, Marx e Engels e sustenta que o Estado e um poder expresso numa estrutura organizacional e política, que surge pela crescente complexidade da sociedade e sua conseqüente divisão em classes. Esta estrutura visa a garantir a ordem dentro da sociedade e manter o sistema de classes vigente.

A outra corrente e a lógico-dedutiva e esta apoiada no contratualismo de Hobbes e seguido por todos os jusnaturalistas até Rousseau e Kant. Para ela o Estado é o resultado político-institucional de um contrato social, através do qual os indivíduos cedem parte de sua liberdade ao próprio Estado, para que este possa manter a ordem e garantir os direitos legais e contratuais. O Estado seria, então, a conseqüência lógica e natural da necessidade de manutenção da ordem.

O crime organizado que assola atualmente as áreas urbanas mais desenvolvidas do País nada mais é que o resultado do rompimento armado de alguns grupos com o pacto social, provavelmente impulsionados, em pane, pela ausência do Estado legítimo. Uma resposta ao fracasso ou a tibieza do Estado, talvez, mas nunca um Estado em si mesmo, pois lhe faltam todas as inúmeras características descritas.

Bastante oportuno é o pensamento de Engels: “O Estado não é, de modo algum, um poder que se impõe à sociedade de fora para dentro. É um produto da sociedade quando esta chega a determinado grau de desenvolvimento, e a confissão de que esta sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade em uma luta estéril, faz-se necessário um poder colocado acima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da ordem. Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela, e dela se distanciando cada vez mais, é o Estado”.

Alçar uma societas sceleris à condição de Estado Paralelo e contribuir, ainda que involuntariamente, para um retrocesso do Estado de Direito. E ajudar uma sociedade de criminosos a adquirir status e cidadania, e chamar de estadistas a meros delinqüentes que afrontam a Lei.