Estado Democrático de Direito

5 de novembro de 2020

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Ministro Celso de Mello e Ministro Marco Aurélio durante sessão do STF. 

Contribuição do Ministro Celso de Mello

A Revista Justiça & Cidadania honrou-me com convite para participar de edição em homenagem ao Ministro do Supremo José Celso de Mello Filho, por 31 anos de judicatura.

Jurista de prestígio, atuou, na arte de interpretar o texto da Lei Maior, em benefício do protagonismo do Tribunal no progresso da sociedade.

Humanista, esteve na vanguarda da óptica progressista dos direitos fundamentais, demonstrando preocupação com as questões sociais do Brasil. Sensível à envergadura do cargo, manteve coerência de pensamento ao longo da trajetória.

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu valores e normas a encerrarem, como cláusula pétrea, sistema de direitos fundamentais que se consolidou como estrutura de sustentação do Estado de Direito.

Eis os elementos essenciais da engenharia abrangente e compromissória da Lei Maior da República: (i) previsão de amplo catálogo de direitos fundamentais, versados mediante princípios e regras; (ii) distribuição de poderes considerados os diferentes níveis da Federação; e (iii) separação de poderes, presentes o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, com mecanismos de controle judicial e amplo acesso dos atores políticos e da sociedade civil organizada.

Os dispositivos são normativamente densos, fixadas balizas a orientarem e limitarem decisões políticas. São direitos positivos e negativos, de matrizes liberal e social, individuais e coletivos, a exigirem compromisso do Estado com o desenvolvimento, em bases livres e igualitárias, da pessoa humana.

O Supremo tem concorrido para a máxima realização do sistema constitucional. É inegável o desafio, considerados institutos, expressões e vocábulos de natureza polissêmica e contornos imprecisos. O Tribunal não se furta a enfrentar temas sensíveis, procurando expandir o sentido dos preceitos fundamentais.

O Ministro Celso de Mello exerceu o ofício judicante buscando o melhor resultado. Formalizou pronunciamentos a levarem em conta, a par de elementos textuais, conexões semânticas entre valores e enunciados envolvidos. Em muitas decisões, comparou contextos históricos para superar desigualdades, afastar discriminação, afirmar mudanças sociais e promover avanços na observância dos direitos fundamentais, sem ignorar omissões legislativas.

Nos governos democráticos, a nenhuma maioria, independentemente de ideário ou finalidade, é dado restringir a liberdade de grupos minoritários, considerado o direito de se organizarem, expressarem e fazerem representar, participando da vida em sociedade. Espera-se que resguardem prerrogativas e identidade dos em desvantagem.

Conforme ressaltado pelo Ministro Celso de Mello no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade por omissão nº 26, da qual foi relator, com acórdão publicado no Diário da Justiça de 6 de outubro de 2020, há de buscar-se a concretude, a eficácia maior, dos ditames constitucionais. Com a propriedade decorrente da formação profissional e humanística possuída, Sua Excelência fez ver:

“Muito mais importante, no entanto, do que atitudes preconceituosas e discriminatórias, tão lesivas quão atentatórias aos direitos e liberdades fundamentais de qualquer pessoa, independentemente de suas convicções, orientação sexual e percepção em torno de sua identidade de gênero, é a função contramajoritária do Supremo Tribunal Federal, a quem incumbe fazer prevalecer, sempre, no exercício irrenunciável da jurisdição constitucional, a autoridade e a supremacia da Constituição e das leis da República”.

Assentou inadmissível a persistência de quadro de violência dirigida a homossexuais e transgêneros, de todo incompatível com a tradição de tolerância do povo brasileiro no tocante, por exemplo, à diversidade cultural e religiosa.

A pluralidade deve ser entendida não como ameaça, e sim fator de desenvolvimento de qualquer comunidade. O desafio do Estado moderno, de organização das mais complexas, não é elidir as minorias, mas reconhecê-las e viabilizar meios para assegurar-lhes os direitos.

Paradoxal é não admitir nem acolher a faculdade de ser diferente, sob pena de revelar-se a face despótica da inflexibilidade, da intransigência, características afetas a regimes autoritários e que acabam conduzindo à subjugação da minoria pela maioria.

No mesmo sentido a óptica observada no exame da arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 187, cujo acórdão foi publicado no Diário da Justiça de 28 de maio de 2014, relativamente ao afastamento da glosa penal, presente a denominada “marcha da maconha”.

O Ministro Celso de Mello assentou o espaço singular ocupado pela liberdade de expressão na ordem constitucional. O princípio repudia a instauração, pelo Poder Público, de órgãos censórios e a adoção de políticas discriminatórias. É mecanismo voltado ao desenvolvimento da personalidade. Mesmo quando a adesão coletiva se revela improvável, a possibilidade de proclamar publicamente ideias corresponde a ideal de realização pessoal e demarcação do campo da individualidade, considerado o direito à autodeterminação, atributo da dignidade da pessoa humana.

O Estado Democrático de Direito é instrumento de defesa dos grupos minoritários. Esse foi o entendimento adotado no julgamento do mandado de segurança nº 24.831-9/DF, relator o Ministro Celso de Mello, com acórdão veiculado no Diário da Justiça de 4 de agosto de 2006, no qual garantida a criação de Comissão Parlamentar de Inquérito, ante a vontade de um terço dos parlamentares.

O Direito sofre influência da realidade, devendo a ela se ajustar e, a um só tempo, conformá-la, em relação de reciprocidade, apesar de assimétrica, a depender da matéria e valores versados.

Lembrando as palavras de Vieira, no Sermão da Primeira Dominga do Advento, “o tempo e as coisas não param”, “inconcebível, no campo do pensar, é a estagnação […], o misoneísmo, ou seja, a aversão, sem justificativa, ao que é novo”.

O Ministro Celso de Mello desempenhou papel de grande importância ao robustecimento da confiança na força normativa da Constituição Federal, atuando com temperança, humanidade, solidariedade, fomentando cultura de respeito ao arcabouço legal e aos pactos firmados.

Em tempos de crise, impõe-se observar as lições de Sua Excelência.

Nota____________________________________

1 Na ocasião, consignei: “O voto proferido pelo Ministro Celso de Mello, mente aberta, a quem acompanho há 21 anos – completei esse tempo há dois dias – não me surpreendeu. Sua Excelência é um arauto das liberdades públicas. E, por isso mesmo, é merecedor do reconhecimento dos concidadãos”.