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Estabilização da jurisprudência e segurança jurídica

22 de setembro de 2016

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Fernando Quadros da Silva1. Respeito aos precedentes como fator de racionalidade e logicidade

O senso comum prevalente no cotidiano forense brasileiro aceita sem ressalvas que os precedentes jurisprudenciais devam ser seguidos nos julgamentos proferidos pelo Poder Judiciário. Praticamente em todos os arrazoados trazidos aos autos e nas decisões judiciais sempre há menção aos julgados anteriores em reforço à tese jurídica que se está perfilhando.

Constitui uma tendência natural da mente humana a adoção de um padrão de comportamento em situações similares ou análogas: é a racionalidade a exigir que os casos semelhantes sejam decididos da mesma forma.

Não apenas por uma questão de hierarquia mas sobretudo pela reiteração das decisões por diversos órgãos julgadores é que os precedentes judiciais vão afirmando teses, solidificando entendimentos e auferindo respeitabilidade. A demonstração de que a mesma interpretação foi adotada por outras mentes em situações idênticas ou análogas reforça a argumentação.

Apenas num segundo momento do discurso argumentativo é que se costuma lançar mão à opinião de um mestre reverenciado, à logicidade, à justiça, à aceitação pela maioria da comunidade acadêmica ou ao maior benefício da comunidade em geral.

Assim, o respeito aos precedentes constitui um fator de racionalidade na formação de uma decisão judicial, e, nesse sentido, o novo CPC, no seu art. 926, reconhece a importância da jurisprudência ao exigir que os tribunais a uniformizem e a mantenham estável, íntegra e coerente.

A preocupação com a justiça do caso concreto deve ser o principal foco da atuação dos juízes e dos demais operadores do direito.[1]Como é esperado e exigível, os sujeitos processuais atuam balizados pelo princípio da demanda (apresentada pelo autor na petição inicial) e pela resposta a ela manifestada. A preocupação com o sistema jurídico processual como um todo, com a sistematização da jurisprudência e com coerência nos julgados é preocupação lateral, em especial quanto ao destinatário da decisão judicial que tem sua pretensão acolhida.

Em muitos casos, a celeridade na solução dos litígios vem contrastada com a natural e justificada queixa de que as razões sequer foram consideradas. Nessa medida, a aplicação automática e desatenta dos precedentes se mostra nociva e indesejável, principalmente quando o julgador não identificou cuidadosamente o substrato fático da causa e a ratio decidendi do precedente aplicado.

A necessidade de coerência lógica do sistema e do estabelecimento de uma jurisprudência estável já foi reconhecida há algum tempo. Deve ser lembrado que as amplas discussões que antecederam a chamada Reforma do Judiciário, concretizada na Emenda Constitucional 45/2005, podem ser sintetizadas em dois grandes vetores: o controle do Judiciário e a adoção da súmula vinculante. Dois temas inegavelmente relacionados com a independência do julgador e sua liberdade para adoção da decisão justa no caso concreto.

2. O novo CPC e a hierarquização da jurisprudência

Além do respeito aos precedentes formados pela reiteração de julgados no mesmo sentido, o direito brasileiro há algum tempo vem convivendo também com a ideia crescente da adoção de precedentes baseados na autoridade superior e vinculante de uma corte situada no nível mais elevado da hierarquia judiciária. Os entendimentos adotados pelas cortes superiores deveriam ser observados não apenas pela reiteração mas pela razão de advirem de uma corte com “maior autoridade” no sistema judicial.

A adoção da súmula vinculante pela Emenda 45/2005 constituiu um momento importante na mudança do paradigma do respeito “pela reiteração dos pronunciamentos judiciais” para a vinculação a partir da “autoridade” superior da corte que a profere. As antigas súmulas da jurisprudência predominante tinham apenas um caráter persuasivo, mas não vinculante.

A par das compreensíveis reações à ideia de autoridade, inerente às sociedades com recente passado autoritário, há que se reconhecer que a vinculação aos precedentes das cortes superiores é medida salutar à vista da necessidade de compatibilização e harmonização entre as diversas instâncias judiciais. Não faz sentido lógico deixar de adotar um entendimento oriundo de cortes superiores que têm justamente a missão constitucional de zelar pela inteireza e uniformidade interpretativa do ordenamento jurídico, constitucional ou legal.

Tal desiderato foi externado pela Comissão de Revisão do Código de Processo Civil, ao apresentar o projeto de novo código em 2010: “A Força da Jurisprudência adquiriu notável relevo em todos os graus de jurisdição, viabilizando a criação de filtros em relação às demandas ab origine, autorizando o juiz a julgar a causa de plano, consoante a jurisprudência sumulada e oriunda das teses resultantes dos recursos repetitivos, sem prejuízo de tornar obrigatório para os tribunais das unidades estaduais e federais, a adoção das teses firmadas nos recursos representativos das controvérsias, previstos no artigo 543-C do CPC, evitando a desnecessária duplicação de julgamentos, além de fortalecer uma das funções dos Tribunais Superiores, que é a de uniformizar a jurisprudência do país.”[2]

Além da vinculação aos precedentes superiores, o novo CPC continua reconhecendo a importância de identificar a jurisprudência predominante, formada a partir da reiteração dos julgados. Recomenda o art. 926, §1o, que os tribunais em geral editem “enunciados de súmulas correspondentes à sua jurisprudência dominante”.

É certo que, sob o ponto de vista econômico, a adoção de precedentes vinculantes pode representar uma externalidade contratual não prevista pelos destinatários da atuação jurisdicional, empresas, consumidores, agentes econômicos em geral.

Serve-se aqui do magistério de Fernando Araújo, para quem externalidade é “toda situação em que a conduta de uma pessoa afecta o bem-estar de outra por vias extra-mercado – seja prejudicando-o sem ter de pagar, seja beneficiando-o sem ter possibilidade de fazer-se pagar por isso, em ambos os casos por ausência de um mecanismo espontâneo de contrapartida de ‘internalização’ de custos ou benefícios”.[3]

As partes que celebram negócios jurídicos podem não estar cientes dos posicionamentos dos tribunais em vigor, revelando-se de suma importância a manutenção pelas cortes de um eficiente repositório de jurisprudência e implantação de serviços privados externos aos tribunais que a selecionem e sistematizem, subsidiando partes e advogados na tomada de decisões.

O estatuto processual não deixa dúvida, no entanto, que trilha o caminho da adoção dos precedentes pelo viés da vinculação hierarquizada ao criar o dever de observância aos precedentes (art.927, CPC): “os juízes e tribunais observarão”.

O legislador processual inova ao criar a vinculação às orientações dos plenários ou órgãos especiais dos tribunais, como também aos acórdãos proferidos nos “incidentes de assunção de competência e de resolução de demandas repetitivas”, além da já existente vinculação aos julgados do STF e do STJ no julgamento dos recursos especiais repetitivos.

3. Distinções necessárias entre precedente, jurisprudência e julgado

É necessário, contudo, explicitar as notáveis diferenças entre julgados, precedentes, súmulas da jurisprudência, súmulas vinculantes e acórdão em repercussão geral e recurso repetitivo.

Em muitos casos, notadamente nas demandas de massa, a formação de um “precedente” é alvo de especial preocupação dos sujeitos processuais. A parte interessada lembra ao magistrado o “risco” de se acolher a pretensão e formar um precedente que acarretará a massificação de demandas ou um elevado custo paras os cofres públicos.

Cabe lembrar, todavia, que não deve constituir preocupação central das instâncias ordinárias a formação de precedentes. A parte que procura o Poder Judiciário quer obter uma regra concreta que lhe dê certeza quanto a um direito, numa situação de conflitos já existente ou pelo de menos de potencial ocorrência.

Os juízes de primeiro grau e os tribunais de apelação são vocacionados à “justiça do caso concreto” controlando a interpretação dos fatos da causa, da prova produzida e do direito aplicável ao caso concreto.[4]

A criação de precedentes vinculantes constitui tarefa precípua dos tribunais superiores (STF, STJ, TSE, TST) aos quais o constituinte acometeu a missão de uniformizar a interpretação do direito e reformar decisões contraditórias.

Quanto ao tema, o oportuno magistério de Danilo Knijnik reconhece que diante da inexistência de critério seguro de distinção entre as cortes superiores e cortes de cassação, assume especial relevo a distinção entre questão de fato e questão de direito, necessária para delimitar a competência de tais cortes.[5]

Para as instâncias ordinárias remanesce a missão de concretizar o acesso ao Judiciário para evitar a lesão ou ameaça a direito e, portanto, o foco deve ser na jurisprudência formada a partir da reiteração de decisões, que devem, segundo o novo CPC, ser consolidadas em súmulas de jurisprudência predominante.

Portanto, cumpre lembrar que o novo Código de Processo Civil não pode significar uma preferência das instâncias ordinárias pela formação de precedentes com a simples renúncia ao cuidadoso exame dos fatos e das razões trazidas pelas partes. Ao revés, espera-se que a aplicação dos precedentes dos tribunais superiores diminua a quantidade de processos permitindo aos julgadores das instâncias ordinárias realizarem a desejável jurisdição que ouve com atenção o advogado, examina o material probatório com acuidade e profere o julgamento aplicando o direito ao caso concreto.

4. A vinculação dos precedentes pela autoridade e pela reiteração

Não pode ser olvidado que, em grande medida, no sistema da Common Law o prestígio dos precedentes vem da respeitabilidade dos juízes, que naquele sistema são recrutados dentre experientes advogados.[6]

A par disso, o elemento central da vinculação aos precedentes reside na autoridade e na anterioridade. A doutrina do precedente vinculante (binding precedent) ou stare decisis et quieta non movere estabelece que a norma fixada por uma corte superior numa decisão anterior deve ser seguida porque é prévia e não por outra razão. Como adverte David Vong, a regra é estabelecida pela autoridade vinculante em um único caso individual.[7]

Por outro lado, a doutrina deve estar atenta aos perigos da simples aplicação robotizada dos precedentes. Aproveitando a experiência de outros ordenamentos, já se tem generalizado o estudo dos institutos ligados à doutrina dos precedentes vinculantes como o ratio decidendi, distinguish, overrulling, obter dictam e per incuriam. São institutos que agora devem merecer maior desenvolvimento e adaptação ao cenário jurídico brasileiro, caracterizado pelo federalismo, intensa judicialiazação dos conflitos, morosidade crônica e uma certa cultura de proliferação de recursos.

Apenas para exemplificar, no direito inglês se entende que as cortes não estão vinculadas ao precedente de uma corte superior quando demonstrado que este foi proferido per incuriam, ou seja, um tribunal inferior poderia deixar de considerar um precedente vinculante de corte superior quando considerar que este precedente teria violado outro precedente vinculante de uma corte mais elevada, ou ainda, quando tenha desconsiderado dispositivo legal.[8]

Preocupado com à vinculação dos precedentes e eventuais efeitos indesejáveis o legislador estabeleceu que “Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação” (art. 926, §2o).

Efetivamente os destinatários das decisões devem ter condições de identificar em quais circunstâncias o precedente é aplicável, sendo possível delimitar as hipóteses em que sua aplicação não é cabível.[9]

5. Algumas conclusões

Deve ser saudada com ênfase a opção do legislador processual em trazer para o CPC a vinculação e obrigatoriedade dos precedentes.

O amplo acesso a proteção judicial dado pelo constituinte de 1988 e a necessidade de racionalizar o sistema impõe que as cortes de justiça respeitem as decisões vinculantes de cortes superiores e sua própria jurisprudência.

Sobre o trato que deve ser dado aos precedentes dos tribunais superiores, sempre é importante o lembrete feito por Jon O. Newman, juiz da corte federal norte-americana, “para os juízes (da suprema corte) seus próprios precedentes são decisões prévias sujeitas a aperfeiçoamento, reconsideração e, em alguns casos, até rejeição. Para os demais, são precedentes a serem seguidos.[10]

Com tal simplicidade o experimentado juiz sumariza a nobre missão dos ministros das cortes superiores ao tempo em que enfatiza o papel dos demais membros do poder judiciário. Somente uma deferência respeitosa aos precedentes das cortes superiores permite a persistência de um sistema jurídico sadio e coerente.

Aos que objetam a vinculação obrigatória aos precedentes com a necessidade de criatividade e evolução da ciência jurídica vale sempre a advertência de Lord Justice Stephenson, da Corte inglesa: a certeza de como um tema será decidido por uma corte superior deve prevalecer sobre a individualidade ou criatividade pois é preferível à incerteza que seria inserida no sistema jurídico.[11]

A preocupação fundamental deve residir na segurança jurídica que o sistema judicial deve assegurar aos cidadãos. O que é salutar para o ser humano é a previsibilidade sobre como as cortes de justiça irão agir se forem chamadas a se manifestar num litígio, o que permite organizar sua vidas e seus negócios.

Numa era em que a conflituosidade e a intransigência tem conquistado espaço, a luta pelo reconhecimento de novos direitos não pode fragilizar os direitos já conquistados sob o fundamento de uma ampla liberdade jurídica e criatividade judicial. A segurança jurídica se constitui num valor maior a se preservado.

 

Notas_____________________

1 ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação de tutela. São Paulo: Saraiva, 2000, p.6

2 SENADO FEDERAL. Comissão de juristas encarregada de elaborar anteprojeto do novo código de processo civil, instituída pelo Ato no 379, do Presidente do Senado Federal, de 30 de setembro de 2009. Relatório do Min. Luiz Fux, Presidente da Comissão.

https://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/1a_e_2a_Reuniao_PARA_grafica.pdf (acesso em 08/08/2016, 11:29).

3 ARAUJO, Fernando. Introdução à Economia, Coimbra: Almedina, 2014, 3a ed., p. 56.

4 ARENHARDT, Sérgio Cruz Arenhardt; MITIDIERO, Daniel; MARINONI, Luiz Guilherme. Novo Código de processo Civil, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p.758.

5 KNIJNIK, Danilo. O Recurso Especial e a Revisão da Questão de Fato Pelo Superior Tribunal de Justiça, Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.142.

6 CROSS, Sir Rupert; HARRIS, J.W. Precedent in English Law, 4 ed., Oxford: Claredon Press Publication, 1991, p.58.

7 VONG, David. Binding precedent and English judicial Law-making. (https://www.law.kuleuven.be/jura/art/21n3/vong.pdf).

8Morelle Ltda v Wakeling [1955] 2 QB 379. http://www.uniset.ca/other/cs3/19552QB379.html

9MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 214.

10 NEWMAN, Jon o. Between Legal Realism and Neutral Principles: the legitimacy of institutional values. (United States Court of Appeals for the Second Circuit. B.A. 1953, Princeton University; LL.B. 1956, Yale Law Schoo.

11 Lord Justice Stephenson, QB 326, 345, Barrington v Lee 1972