Tenho um amigo na Suíça, advogado em Zurique, que adora o Brasil. Nasceu e vive na zona alemã, mas, depois de várias viagens para cá, conseguiu falar um pouco de português, com pesado sotaque, mas fala. Incapaz de falar alemão, invejo o português do meu amigo e acho deliciosos alguns termos que ele usa para elogiar nosso País. É verdade. Ele gosta mesmo de nós. É verdade e incrível, porque vive em Zurique, a cidade considerada melhor do mundo, onde tudo funciona, violência zero, comércio fantástico, museus, civilização em todos os níveis e nos mínimos detalhes, políticos honestos. Até a Fifa tem sede naquela cidade, não digo maravilhosa porque o título é do Rio de Janeiro. Um dia perguntei ao meu amigo suíço porque ele gostava tanto do Brasil. A resposta foi surpreendente:
Pelo esculhambaçon! Adorro o esculhambaçom brrasileirro.
Quando o Congresso aprovou o fim da verticalização lembrei-me do amigo suíço, que irá enriquecer a coletânea de casos do Brasil e que ele conta, com ênfase, no seu clube, nas reuniões sociais e, de vez em quando, em entrevistas para a televisão.
Por causa disso, entrevista para a TV suíça, ele me telefonou perguntando o que era verticalização, expliquei: é uma exigência que obriga os partidos políticos a repetir nos estados a mesma coligação que fizerem para as eleições presidenciais. Assim, se um partido qualquer apóia um candidato a presidente da República, não poderá apoiar, nos estados, candidato a governador que não seja do mesmo partido ou da mesma coligação partidária na esfera federal.
Depois de concordarmos que essa disciplina seria, ao menos nas aparências, uma forma de prestigiar os programas dos partidos políticos, que presumivelmente se coligam em função de idéias e projetos. E concluímos que outras ligações nos estados, diferentes, demonstrariam a inexistência de programas nas propostas partidárias, ou, no mínimo, ausência de seriedade em seus discursos programáticos.
Obrigatoriedade
A obrigatoriedade de verticalização surgiu de interpretação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em fevereiro de 2002, sobre a Lei 9504/97, que disciplina as eleições. O TSE considerou inconstitucional artigo da lei que tratava do tema e a medida continua em vigor, pois o Supremo Tribunal Federal (STF) não admitiu uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), apresentada contra a interpretação. O Governo da época, Fernando Henrique, tinha interesse na verticalização e o TSE, presidido pelo ministro Nelson Jobim, interpretou a lei de acordo com a vontade política do então detentor do poder. Em fevereiro de 2002, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), baixou norma estabelecendo que os partidos não podiam fazer, nos estados, coligação diferente da realizada em nível federal.
Por uma emenda constitucional (PEC 548/02), votada agora em dezembro do ano passado, o Congresso acabou com a verticalização, isto é, passou a permitir coligações livres nos estados, independentemente da coligação federal. Difícil é explicar o porquê de uma alteração constitucional para anular uma interpretação judicial de lei ordinária. Bastaria uma nova lei permitindo a liberdade dos acertos e pronto. Ocorre que a Constituição tem um artigo, o 16, que dispõe: “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até 1(um) ano da data de sua vigência.”
A turma da esperteza política, para atender à vontade do atual dono do poder, o presidente Lula, que não quer saber da verticalização, inventou essa forma marota. Constituição proíbe a alteração através de lei, a lei eleitoral, ordinária. Mas no próprio texto da Constituição a alteração pode ser feita, porque a norma constitucional não está sujeita à vedação de disposição da mesma hierarquia. Enfim, no entender deles, Constituição não é lei, embora seja chamada de Lei Magna.
A Ordem dos Advogados do Brasil parece que irá ao Supremo Tribunal Federal propor uma ação de inconstitucionalidade contra a Constituição. Vai invocar Otto Bachoff, um jurista alemão, que criou a doutrina das nulidades constitucionais pela inconstitucionalidade na própria Constituição ou contra seus princípios fundamentais, inclusive a alma da nacionalidade. Por exemplo: seriam inconstitucionais emendas que autorizassem a pena de morte, a discriminação de qualquer espécie, ou que, se coragem houvesse, proibisse no Brasil o carnaval e o futebol. Seriam contra os princípios fundantes do Estado de Direito e do povo brasileiro. Contra a alma da Constituição.
Fábio Comparato
Fábio Konder Comparato, eterno sonhador e petista de carteirinha, vai além e afirma que, aos olhos do povo, essa questão das coligações partidárias não tem qualquer sentido. “As coligações são feitas pelos partidos sem consulta ao povo e obedecem unicamente a interesses próprios, o que mostra que os partidos políticos não têm qualquer conteúdo ideológico programático.”
Os congressistas, espertíssimos, resolveram aprovar uma lei de cosméticos para maquiar as próximas eleições, proibindo showmícios, duplas sertanejas, filmes em cenários externos, para desviar a atenção do respeitável público do principal: o fim da verticalização.
No ano passado, sob a trombeta de Roberto Jefferson, o País ficou sabendo que correu muito dinheiro para pagar deputados, seus votos, seus apoios ao governo, tudo explicado como dívidas de campanha eleitoral pagas pelo caixa 2, o que, na moralidade desses políticos, seria legítimo e ético, a despeito de ser “coisa de bandido” como disse o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, contrariando seu chefe, o presidente Lula, que declarou tratar-se de coisa comum a todos os partidos políticos.
Com esse caldo de cultura, a emenda constitucional remete esses políticos e esses partidos (e alguns bandidos) para o vale-tudo nas próximas eleições, com casamentos duvidosos, concubinatos adulterinos, amigação passageira, uma ficação geral. Vamos ver o que resolverá o Supremo Tribunal Federal sobre a anuidade da alteração no sistema eleitoral. Se não vale quando efetuada por lei e vale quando feita por emenda constitucional, ou se não vale de jeito algum. A OAB ingressando com a ação direta de inconstitucionalidade deverá pensar bem na efervescência política que borbulha no Supremo. O julgamento seria mais tranqüilo depois da anunciada saída de Nelson Jobim, co-responsável pela verticalização. No seu modo de pensar, se ele fez tem o direito de desfazer. É bom esperar. Ou cantar o samba de Vinícius: “se era para desfazer, por que é que fez?”
Ou, ainda, lembrar do meu amigo, advogado suíço: Adorro o esculhambaçon brrasileiro.