A erradicação do trabalho infantil e o papel do cidadão

13 de março de 2015

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Daniela Gusmão de Santa Cruz ScaletskyNo Brasil, é ilegal o trabalho executado por crianças e adolescentes com menos de 16 anos de idade – salvo na condição de aprendiz, com registro em carteira como tal, a partir dos 14 anos –, no setor formal ou informal ou ainda em atividades ilícitas. É o que estabelece o artigo 60 e seguintes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). 

Referido artigo encontra base constitucional no artigo 227 da Constituição Federal segundo o qual “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. 

No âmbito internacional, a proibição brasileira do trabalho infantil encontra resguardo na Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata da proibição das piores formas de trabalho infantil e da ação imediata para sua eliminação. Esta convenção foi aprovada pela 87a Conferência Geral da OIT, realizada em Genebra em 1999 e internalizada em nosso País por meio do Decreto no 3.597, de 12 de setembro de 2000. Por seu turno, a Convenção 138 da OIT, que dispõe sobre a idade mínima para admissão a emprego, aprovada em 1973, estabelece que a idade mínima para o trabalho não será inferior à idade de conclusão da escolaridade obrigatória ou, em qualquer hipótese, não inferior a 15 anos. 

Interessa notar que a Convenção 182 utilizou a expressão “as piores formas de trabalho infantil” e, em seu artigo 3o, listou as situações que estariam compreendidas nessa definição, a saber: 

 1. todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão, como venda e tráfico de crianças, sujeição por dívida, servidão, trabalho forçado ou compulsório, inclusive recrutamento forçado ou obrigatório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados;

2. utilização, demanda e oferta de crianças para fins de prostituição, produção de pornografia ou atuações pornográficas;

3. utilização, recrutamento e oferta de crianças para atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de entorpecentes, conforme definidos nos tratados internacionais pertinentes;

4. trabalhos que, por sua natureza ou pelas circunstâncias em que são executados, são suscetíveis de prejudicar a saúde, a segurança e a moral da criança.

Por óbvio, as três primeiras hipóteses listadas trazem ao leitor a imediata certeza do acerto dessa proibição. Nossa legislação, contudo, foi além. Proibiu todo e qualquer trabalho infantil, como autoriza a “indeterminação” da quarta hipótese acima listada e optou por considerar trabalho infantil aquele realizado por crianças ou adolescentes com idade inferior a 16 anos, a não ser na condição de aprendiz, quando a idade mínima permitida passa a ser de 14 anos.

Nossa legislação proíbe expressa­mente o trabalho noturno antes de 18 anos de idade, bem como o trabalho insa­lubre, perigoso ou penoso. Também é vedado o trabalho que seja prejudicial à formação do adolescente, ao seu de­senvolvimento físico, psíquico, moral e social e em horários e locais que não permitam a frequência à escola.

No Brasil, são diversas as instituições públicas e organizações privadas empenhadas em monitorar e fiscalizar a correta aplicação das disposições legais que protegem a criança e o adolescente e são vários os programas governamentais com o objetivo de diminuir a pobreza e eliminar, como prioridade, o trabalho infantil. Esse enfrentamento tem como diretrizes as estratégicas pactuadas pela Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti), por meio do Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador (2011 e 2015), que envolve diversas ações governamentais.

O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) tem como objetivo, entre outros, a gestão integrada de benefícios e serviços destinados às famílias cujas crianças e adolescentes estejam em iminência ou retirados da situação de trabalho. Por seu turno, o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil iniciou, há alguns anos, o movimento de Caravanas contra o Trabalho Infantil, reavivando o Catavento de cinco pontas coloridas como símbolo da luta pela erradicação do trabalho infantil.

Diferentes segmentos governamentais e não governamentais trabalham no enfrentamento do trabalho infantil, entre eles as Superintendências Regionais do Trabalho, Ministério Público do Trabalho, Conselho Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente, Conselhos Tutelares, Conselho Municipal de Assistência Social, Órgãos responsáveis pelas políticas públicas setoriais e demais instituições de controle do Sistema de Garantias de Direito.

Em 2014, o Prêmio Nobel da Paz foi concedido a Kailash Sathyarti por seu trabalho no combate ao trabalho infantil no mundo, em clara evidência de que o assunto continua sendo considerado fundamental para a humanidade, sendo claros os efeitos perversos do trabalho precoce de crianças e adolescentes. Crianças que trabalham ficam expostas a riscos de lesões, deformidades físicas e doenças, muitas vezes superiores às possibilidades de defesa de seus corpos, podem apresentar dificuldades para estabelecer vínculos afetivos em razão das condições de exploração a que estiveram expostas, são afastadas do convívio social com pessoas de sua idade e acabam sofrendo com múltiplas repetências e sendo levadas ao abandono da escola.

O combate ao trabalho infantil no Brasil tem alcançado avanços nas últimas duas décadas, sendo certo que o número de crianças e adolescentes que trabalham vem declinando continuamente. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) divulgada em 2014 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foi registrada queda de 12,3% no número de trabalhadores entre 5 e 17 anos de idade entre 2012 e 2013, restando 3,1 milhões de trabalhadores nesta faixa etária, após a saída de 438 mil crianças e adolescentes dessa condição.

 A maior queda percentual ocorreu entre pessoas de 5 a 9 anos de idade, faixa da qual 24 mil crianças deixaram de trabalhar. A maior queda de contingente, contudo, ocorreu no grupo de 14 a 17 anos de idade, cerca de 362 mil pessoas, sendo 225 mil delas nas regiões Nordeste e Sudeste. Os adolescentes de 14 a 17 anos de idade eram maioria (2,6 milhões) dos empregados menores. Cerca de 486 mil crianças de 5 a 13 anos de idade estavam em situação de trabalho infantil, 15,5% dos ocupados de 5 a 17 anos de idade. Desse total, 58 mil tinham de 5 a 9 anos de idade, e 428 mil de 10 a 13 anos de idade.

A maioria dos casos de trabalho infantil foi encontrada nas regiões Norte e Nordeste, onde chegavam a 24,9% e 21,4% da força de trabalho, respectivamente. O Norte foi a região em que houve maior saída de crianças e adolescentes (de 9,6% para 8,2%), acompanhado do Sul (de 10,4% para 9,1%).

O índice da ocupação das pessoas de 5 a 17 anos de idade no Brasil foi 7,4% em 2013, ante 8,4% em 2012. O rendimento mensal domiciliar per capita real dos trabalhadores de 5 a 17 anos de idade foi estimado em R$ 557,00.

Ainda assim, dificilmente será alcançada a meta brasileira de erradicação do trabalho infantil em suas piores formas até 2015 e toda e qualquer forma de trabalho infantil até 2020.

Com o intuito de entender a dificuldade de erradicar o trabalho infantil, no Brasil e no mundo, e representar a sociedade civil nessa legítima luta, o Conselho Federal da Ordem do Advogados do Brasil criou a Comissão para Erradicação do Trabalho Infantil em outubro de 2014. Nesse curto tempo de trabalho, já foi possível perceber um dos principais óbices à total erradicação do trabalho de crianças e adolescentes: a falta de informação, sensibilização e mobilização da sociedade civil.

A falta de convencimento dos cidadãos de que toda criança deve ser protegida e ter garantido o seu desenvolvimento pleno torna o problema complexo e quase invencível. Não haverá erradicação enquanto não houver real interesse da sociedade, e não apenas do governo, na formulação de políticas intersetoriais de redução de pobreza, com a proteção da família e das classes mais vulneráveis, aliadas a políticas educacionais, de saúde, cultura e esporte.

Ainda que haja exemplos de trabalho infantil onde podem ser encontradas crianças com padrão familiar financeiro elevado, a grande massa de trabalhadores infantis advém das classes sociais mais pobres. E isso dificulta a luta pela erradicação do trabalho infantil, pois quem é atingido não tem voz e quem tem voz não tem interesse na mudança do quadro atual. Pelo contrário, muitas vezes luta pela sua manutenção.

A mobilização contra o trabalho infantil fica facilitada quando crianças são utilizadas como mão de obra nas chamadas cadeias produtivas formais, ou seja, todo e qualquer ser humano entende a gravidade de uma criança operar um equipamento industrial. Contudo, muitos não consideram grave contratar uma menina de 13 anos de idade como babá ou empregada doméstica. Não atentam para o fato de que trabalho doméstico também é trabalho infantil a ser fortemente combatido, uma vez que acarreta não somente consequências físicas danosas em razão de esforços físicos intensos e prejudiciais ao desenvolvimento, mas também danos psicológicos, sociais e educacionais.

Aliás, o trabalho doméstico foi incluído na Lista TIP (das piores formas de trabalho infantil) por submeter o trabalhador a riscos ocupacionais como esforços físicos intensos, isolamento, abuso físico, psicológico e sexual; longas jornadas de trabalho, trabalho noturno, calor, exposição ao fogo, posições antiergonômicas e movimentos repetitivos; tracionamento da coluna vertebral, e sobrecarga muscular. Tais riscos trazem, como possíveis consequências à saúde, afecções musculoesqueléticas (bursites, tendinites, dorsalgias, sinovites, tenossinovites), contusões, fraturas, ferimentos, queimaduras, ansiedade, alterações na vida familiar, transtornos do ciclo vigília-sono, DORT/LER, deformidades da coluna vertebral (lombalgias, lombociatalgias, escolioses, cifoses, lordoses), síndrome do esgotamento profissional e neurose profissional; traumatismos, tonturas e fobias.

Os casos de trabalho infantil estão concentrados no mercado informal, nas zonas rurais e nos lares brasileiros, o que faz crescer o desafio das organizações sociais de defesa dos direitos da criança e do adolescente. Uma criança ajudante de pedreiro, o filho que trabalha com o pai na lavoura e o boleiro de quadras de tênis são exemplos de trabalho infantil totalmente tolerados em nossa sociedade, o que torna ainda mais difícil a sua identificação e a inspeção dos órgãos fiscalizadores.

É comum a afirmação de que o trabalho dignifica e que o trabalho infantil seria uma forma de evitar a ociosidade e a marginalidade encontrada nas ruas. Esse é um argumento incorreto, por simplista. Por óbvio, existem alternativas muito melhores para a formação das crianças e que não provocam danos à saúde física e mental. Crianças, estejam onde estiverem, em todo e qualquer estrato social, devem estar na escola, brincando ou aprendendo atividades culturais e esportivas. Isso e somente isso. De igual modo, não justifica o trabalho infantil a necessidade de a criança ter senso de responsabilidade, disciplina e socialização, uma vez que estes atributos devem ser adquiridos no convívio escolar e familiar.

Não, o trabalho não enobrece a criança. Ao contrário, retira de seu conjunto de direitos fundamentais a possibilidade de viver de forma saudável, de estudar, brincar e aprender. Diminui ainda mais suas oportunidades e possibilidades e perpetua sua baixa instrução e pobreza. Mesmo as crianças que já têm baixo rendimento escolar não podem ser privadas do direito de frequentar uma instituição de ensino, cabendo à escola dar suporte diferenciado à criança e evitar que sua família veja o trabalho como substituto da educação formal.

De todos os argumentos utilizados pela sociedade para justificar o trabalho infantil, o pior é o que o considera forma legítima de garantir a sobrevivência familiar. Pior porque se utiliza da luta diária pela subsistência para forçar crianças a assumir responsabilidades que deveriam ser exclusivas da idade adulta, sendo certo que:

[…] aceitar o trabalho infantil como uma forma para garantir a sobrevivência da família é um argumento que resolve o problema apenas no curto prazo, pois no longo prazo o trabalho impedirá que a criança incremente seu capital humano ou até mesmo tenha sua saúde debilitada, restringindo suas possibilidades de ascensão profissional, e consequentemente de maiores ganhos. Ou seja, apesar de o trabalho infantil amenizar as dificuldades das famílias no curto prazo, não significa dizer que esses problemas irão estar resolvidos por completo. Pelo contrário, no longo prazo podem se repetir ou até mesmo se agravar. (André Luiz Pires Muniz; Tiago Farias Sobel, em Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP)

Quem tem a obrigação de cuidar da criança é a família, não o contrário. Uma sociedade séria e comprometida com a dignidade da pessoa humana não pode privar crianças de seus direitos, criando pequenos “arrimos de família”, que ao final do processo estarão alijados do desenvolvimento social, econômico e político do País, por falta absoluta de preparação para a vida social e profissional. Desenha-se, assim, o cruel ciclo vicioso de uma sociedade de castas, em que a ascensão social é expressão natimorta.

De modo geral, as últimas informações da Pnad permitiram constatar que, mesmo ganhando menos que meio salário mínimo, as crianças que desenvolvem algum tipo de atividade laborativa têm participação fundamental na renda familiar total, colocando em evidência que, para se reduzir o trabalho infantil sem elevar os níveis de pobreza no País, é necessário a criação e a aplicação de políticas econômicas e sociais que tenham a capacidade de gerar renda à população adulta menos abastada, de uma forma que compense a perda do rendimento infantil, sendo um dos exemplos o Bolsa Família.

Sensibilização e mobilização de cada cidadão brasileiro: esse deve ser o objetivo. De fato, o sentimento de que o trabalho pode ser bom para uma criança pobre está profundamente arraigado entre nós e, para ser efetiva, a erradicação do trabalho infantil exige ainda sensibilização profunda de cada indivíduo para a importância do tema. Os pais precisam entender suas responsabilidades na educação e no desenvolvimento da criança e o Estado deve continuar garantindo o estabelecimento de instituições, instalações e serviços de assistência à infância. Deve também aperfeiçoar continuamente as medidas legislativas administrativas, sociais e educativas adequadas à proteção da criança.

Além disso, na medida em que diminuíram os casos de trabalho infantil no setor empresarial formal, cabe exigir que as empresas fiscalizem sua cadeia produtiva, seus fornecedores de serviços e insumos, e conscientizem seus colaboradores sobre a importância da fiscalização, sendo fundamental tornar partícipes da luta as organizações de empregadores e de trabalhadores e as organizações civis.

O País vive hoje um momento muito especial em relação às políticas sociais. É tempo de romper padrões de conduta centenários e criar novo cenário, em que crianças não podem ser vistas como mão de obra passível de contratação com módica remuneração. Cada cidadão, convencido da gravidade dessa situação, precisa ser agente de mudança e fiscal da lei. É possível desenhar nova realidade em que a criança e o adolescente tenham seus direitos básicos integralmente protegidos, a partir da atitude diária de cada cidadão mobilizado para a luta contra o trabalho infantil.

Referências bibliográficas
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). PNAD, 2006. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2006/suplementos/afazeres/publicacao_afazeres.pdf>.
BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social. Programa de erradicação do trabalho infantil (Peti): manual de orientações. Brasília: MPAS, maio de 2002.
BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil – Português.
MUNIZ, André Luiz Pires; SOBEL, Tiago Farias. Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP. CAXAMBU – MG, 29 de setembro a 03 de outubro de 2008.