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Embargos de Declaração e Fundamentação das Decisões no Novo CPC

22 de setembro de 2016

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Desembargador Otávio de Abreu Portes entre os assessores judiciários Rubens Augusto e Bruna Fernandes

Desembargador Otávio de Abreu Portes entre os assessores judiciários Rubens Augusto e Bruna Fernandes

Como se sabe, os Embargos de Declaração constituem recurso de âmbito discursivo restrito à expurgação de erro material, omissão, obscuridade ou contradição na decisão, conforme artigos 1.022 e 1.023 do CPC/15.

A despeito da alteração da norma de regência, o espírito dos Embargos de Declaração ainda nos permanece o mesmo que se verificava na sistemática anterior, vale dizer, não se trata de remédio processual destinado à reapreciação das questões controvertidas, mascaradas sob a pecha de suposta omissão, obscuridade ou contradição ou erro material.

Os Embargos de Declaração constituem, a toda evidência, o recurso mais historicamente deturpado e desvirtuado do seu verdadeiro propósito processual, vale dizer, as partes sempre encontram uma maneira de correlacionar um pronunciamento, puro e simples, com uma das hipóteses acima indicadas, intentando assim reapreciação da matéria discutida.

Referida deturpação histórica ganhou novos contornos e matizes com a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, fato que nos levou a escrever este breve ensaio.

Impõe-se, inicialmente, breve incursão sobre os aspectos conceituais das principais hipóteses de cabimento/acolhimento dos embargos – contradição e omissão das decisões judiciais.

De início, com relação à contradição que estaria a impor o acolhimento, de se esclarecer que trata da hipótese de inconsistência entre as premissas lógicas internas do próprio decisório.

A contradição hipoteticamente imaginada, tal como atualmente prevista no artigo 1.022, inciso I, do CPC/15, não é pois, entre a decisão e a prova dos autos; não é entre a decisão e regra que o embargante julga mais aplicável ou mais jurídica ao caso; não é entre a decisão e a jurisprudência que eventualmente venha em socorro da tese sustentada pelo embargante, enfim, não é entre a decisão e o interesse defendido pelo recorrente, assim considerado de uma forma ampla – prova, regra ou jurisprudência.

Nesse cenário, ainda que a premissa legal adotada esteja juridicamente incorreta (questão de índole eminentemente interpretativa e que, portanto, careceria de nova valoração pelo(s) julgador(es), ou que a premissa fática resulte de interpretação ineficiente/ruim da prova dos autos (também questão de natureza interpretativa), tais hipóteses refletiriam eventual error in judicando, hipótese discursiva não comportada na restrita sede dos embargos declaratórios.

De semelhante forma, pertinente à omissão, justificadora do acolhimento dos embargos, não é aquela decorrente da inobservância de prova, regra ou jurisprudência tendentes à concretização do interesse da parte embargante, mas sim aquela que decorre da sonegação de parte ou todo da prestação jurisdicional vindicada ao julgador competente.

Nesse quadrante, talvez o mais amplo deles, o CPC/15 trouxe importante inovação ao consignar que a omissão também se verifica quando incorre o julgador em quaisquer das condutas estampadas no seu artigo 489, § 1o, trazendo exigências quanto à fundamentação exposta, senão vejamos:

Art. 489. São elementos essenciais da sentença: […]

§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.”

De ver que o legislador visou minimizar a ocorrência da chamada jurisprudência defensiva, conceito associado à hipótese onde o julgador emprega fundamentação genérica e por vezes até desconexa dos aspectos controvertidos para justificar suas conclusões, não cuidando de fazer uma correlação direta e objetiva com os fatos da causa.

Trata-se de inovação processual elogiável a toda evidência, evitando que sejam as demandas encerradas e resolvidas as questões incidentes sem justificativas suficientes – de ordem racional, fática e principalmente lógica.

Ocorre todavia que, como qualquer norma, o Novo CPC também carece de ser interpretado, em grau mais profundo que o literal. E uma interpretação mais substancial da referida regra impõe concluir acerca da necessidade de se ponderar, de um lado, a exigência de uma fundamentação efetiva dos atos judiciais (garantia constitucionalmente prevista no artigo 93, inciso IX da Constituição Federal), mas de outro, também a necessidade de solução dos litígios em tempo hábil (também prevista no texto magno, artigo 5o, inciso LXXVIII).

Com efeito, a exigência de pressupostos mínimos da fundamentação não pode corresponder a um esforço abstrato sobre-humano do julgador para demonstrar as razões do seu convencimento, ou mesmo sua escravização à capacidade criativa dos advogados para protelarem os pronunciamentos desfavoráveis aos interesses dos seus constituintes.

A uma porque, por tratar a função jurisdicional diretamente com interesses subjetivos em litígio, é bastante evidente que a parte derrotada na lide jamais estará plena ou mesmo minimamente satisfeita com as razões de decidir lançadas em seu desfavor, existindo aí um evidente inconformismo natural com tudo que nós é prejudicial.

A duas porque, a se entender de forma diversa, exigindo do julgador o completo exaurimento de absolutamente todas as proposições suscitadas pelos sujeitos do processo – ainda que não tenham o mínimo condão de influir no seu convencimento, e mais, impondo também que explicite não apenas porque adota um determinado argumento ou razão de decidir, mas também porque deixa de aplicar outro(a)(s), transformar-se-ia a jurisdição numa função destinada mais ao desenvolvimento de teses jurídicas que propriamente à solução de conflitos intersubjetivos, não nos parecendo ser este o objetivo do Novo Código de Processo Civil, por óbvio.

Ainda inserto no contexto, chama-nos a atenção o disposto no inciso IV acima ementado, donde se considera não fundamentada a decisão que “não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador.”

Proeminentes juristas e processualistas, do escol de Lênio Streck, Freddie Didier Júnior e Dierle Nunes vem propugnando que referida alteração extinguiu o princípio do convencimento livre do magistrado, impondo ao julgador que se manifeste sobre absolutamente todos os argumentos que foram suscitados pela parte para influir na conclusão.

Em que pese o profundo respeito que nutrimos pelos doutrinadores destacados, dentre outros não menos brilhantes que também adotam tal posicionamento diante das inovações trazidas pelo Novo CPC nesse quadrante, não podemos concordar incondicionalmente com tal idéia.

Ora, não enfrentar todos os argumentos deduzidos, capazes de, em tese, desconstruir a conclusão alcançada, é diferente de enfrentar toda e qualquer argumentação aduzida pelas partes; destarte, o julgador está sim compelido a enfrentar os argumentos, mas desde que possam vir a modificar seu entendimento, afigurando-se possível desprezar aqueles que nem mesmo abstratamente têm ou teriam qualquer influxo sobre seu convencimento, sem que isso viole o disposto na regra em tela.

E quem realiza este juízo de valor, por óbvio, deve ser o próprio julgador, e não a parte embargante, pois em última análise somente ele é quem está apto a se convencer que determinada construção argumentativa é ou não apta a modificar o que concluiu. Assim é que, confrontado com argumento que pode vir a derruir sua conclusão, deverá enfrentá-lo. Do contrário, não nos parece necessário esmiuçá-lo com esforço racional e jurídico inócuo, já que em última análise, imagina-se que referido argumento (omitido), não era e nem é suscetível de desconstruir a conclusão erigida.

É dizer que a parte embargante não tem o poder processual de escolher qual argumento supostamente não enfrentado poderia, em tese, mudar o que foi decidido; ora, se o convencimento (íntimo, pessoal, enfim, qualquer nome que se queira atribuir) é o do julgador, é evidente que somente ele pode valorar se o argumento omitido possui ou não aptidão em abstrato para desconstruir uma primeira conclusão alcançada.

Já há jurisprudência do c. STJ sustentando a subsistência do princípio da persuação racional ou livre convencimento motivado no CPC/15, nos termos em que ora consagramos, senão vejamos:

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA ORIGINÁRIO.   INDEFERIMENTO   DA   INICIAL.   OMISSÃO, CONTRADIÇÃO, OBSCURIDADE, ERRO MATERIAL. AUSÊNCIA. 1. Os Embargos de Declaração, conforme dispõe o art. 1.022 do CPC, destinam-se   a   suprir   omissão, afastar obscuridade, eliminar contradição ou corrigir erro material existente no julgado, o que não ocorre na hipótese em apreço. 2. O julgador não está obrigado a responder a todas as questões suscitadas   pelas   partes,   quando já tenha encontrado motivo suficiente para proferir a decisão. A prescrição trazida pelo art. 489 do CPC/2015 veio confirmar a jurisprudência já sedimentada pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, sendo dever do julgador apenas enfrentar as questões capazes de infirmar a conclusão adotada na decisão recorrida. […] 4.   Percebe-se,   pois,   que o embargante maneja os presentes aclaratórios em virtude, tão somente, de seu inconformismo com a decisão ora atacada, não se divisando, na hipótese, quaisquer dos vícios previstos no art. 1.022 do Código de Processo Civil, a inquinar tal decisum. 5. Embargos de Declaração rejeitados.(EDcl no MS 21.315/DF, Rel. Ministra DIVA MALERBI (DESEMBARGADORA CONVOCADA TRF 3a REGIÃO), PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 08/06/2016, DJe 15/06/2016)

Adotando um exemplo alegórico para mostrar o que acabamos de afirmar, a aplicação do artigo 489 inciso IV do NCPC tal como vem sendo imaginada por uma determinada classe de juristas, conduziria à absurda hipótese onde, ainda que a parte suscite, meio à sua argumentação, uma receita de bolo de laranja, teria o julgador que explicitar expressamente porque referida receita não tem qualquer repercussão na sua conclusão a fim de que seu decisório tivesse fundamentação válida.

Venia concessa, pensamos não ser este o objetivo da norma. Acreditamos que o objetivo do legislador foi tornar mais bem delineada, mediante interposição de embargos, a hipótese onde o julgador não se atenta para algo que, se tivesse atentado, lhe imporia à conclusão diversa.

Ademais se é exigência do Novo CPC que o julgador enfrente tais questões omitidas, pensamos que também deve ser ônus do embargante demonstrar, de forma lógica, como e de que forma o argumento sonegado impõe influxo desconstrutivo sobre a premissa adotada pelo julgador; não basta apenas argüir a omissão quanto a argumento que torna a conclusão favorável ao seu interesse, mas sim evidenciar que o argumento omitido derrui, por completo, a premissa adotada pelo magistrado.

Dworkin já preceituava que os casos judiciais, mormente os complexos (“hard cases”), deveriam ser decididos não por discricionariedade do julgador, e sim pela análise dos princípios da comunidade aonde o caso difícil esta em debate, e pela diferenciação dos princípios das regras (2007, p.43).

Não é injurídica a adoção de uma solução em detrimento das demais. E não é injurídico desprezar outras soluções jurídicas, desde que demonstrada de forma racional o porque da adoção da que foi preferida no caso concreto, ponderando-se as normas incidentes.

Neste ponto regressamos à premissa posta nas primeiras linhas deste modesto artigo: o espírito dos Embargos de Declaração segue o mesmo, e ele não se presta à reapreciação da causa; acrescentando-se que não nos parece que a transposição dos Códigos tenha ido muito além da supressão do vocábulo “livremente” quando da transformação do artigo 131 do CPC/73 no artigo 371 do CPC/15.

A otimização da prestação jurisdicional que perpassa pela necessidade de adequada fundamentação dos pronunciamentos judiciais não pode encontrar óbice na isquemia e completo assoreamento do ofício judicante que se avisa caso esteja o julgador compelido ao completo exaurimento de tudo quanto for suscetível de argüição pelas partes beligerantes.

Entendemos que o magistrado segue sim, livre, para julgar a demanda dentro dos seus limites de conformidade com o Direito posto. Livre para escolher uma solução e não outras, e que não tem que dizer por que deixou de escolher outra, porque esta explanação já se encontra a princípio implícita na escolha feita, de tal sorte que cabe também às partes demonstrar, pela via dos Embargos de Declaração, que o argumento sonegado é capaz de influir no resultado e impor conclusão diversa.

Em remate e resumo, pensamos que o novo CPC, ao dar novos contornos ao recurso de Embargos de Declaração e instituir pressupostos de validade da fundamentação judicial, não quis exigir do julgador uma técnica negativa de decisão.

É dizer, observados os novos preceitos contidos no artigo 489, § 1o do CPC/15, o dever de fundamentação não pode impor ao magistrado demonstração de razões que conduzam ao completo esgotamento de absolutamente todas as teses jurídicas suscitadas pelas partes, mas tão somente daquelas que, de alguma forma, se relacionem com a conclusão alcançada, de tal sorte que o não enfrentamento de argumento nem mesmo minimamente capaz de infirmar o decidido, não há de ser capaz de invalidar o pronunciamento ou exigir-lhe integração, sob pena de inviabilização da atividade judicante e eternização dos litígios, mormente nos casos complexos.

Referência bibliográfica________________

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 2a edição. São Paulo: Martins Fontes, 2007.