Em busca da verdade_Entrevista com Margarida Pressburger

23 de novembro de 2012

Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional RJ

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Margarida Pressburger fez o curso de Direito nos primeiros anos da ditadura militar, de abril de 1964 a dezembro de 1968. “Entrei com a ‘gloriosa’ e saí com o AI-5”, brinca a carioca, que há anos integra o Subcomitê de Prevenção da Tortura (SPT), da Organização das Nações Unidas (ONU). Ela já esteve na Ucrânia, em Mali e espera uma chance de ir com uma comitiva da ONU ao Irã, inspecionar por lá presídios, alojamentos militares, campo de refugiados “e em todos os locais onde haja privação da liberdade”, completa, do alto de sua coragem e fibra.

É a primeira vez que o Brasil integra o subcomitê. Criado em 2002 para fiscalizar presídios e outras instituições suspeitas de práticas de tortura e maus tratos, ele também denuncia a aplicação de penas cruéis ou degradantes. Com a vitória de Felipe Santa Cruz à presidência da OAB/RJ é certo que Margarida Pressburger continuará à frente da Comissão de Direitos Humanos da entidade e poderá prosseguir com sua luta em defesa do ser humano e da igualdade social.

Em relação aos direitos humanos, Margarida Pressburger é categórica: “O Brasil é um país homofóbico, racista. De um a dez dou nota um. Enquanto você não tiver a mentalidade de colocar nas escolas aulas de não discriminação, de cidadania, de justiça social, de direitos humanos continuará assim. Esses valores têm de ser ensinados no jardim de infância. Ainda temos um chão muito grande para andar”.

A abertura dos arquivos da ditadura é uma de suas bandeiras. Incansável, ela defende com unhas e dentes a punição dos responsáveis por torturas no regime militar. “O Supremo Tribunal Federal decidiu que a Lei da Anistia era bilateral. Então, não vejo como possa surgir punição, infelizmente. A Argentina tem 486 torturadores presos e recentemente prendeu um ancião. Não é porque é um velhinho ou uma velhinha que ficou bonzinho. Entendo que tortura é crime inafiançável. Meu irmão foi barbaramente torturado.

O Lula não foi torturado, não teve parentes torturados. Ele sentiu a ditadura, foi perseguido, mas nunca foi torturado. Então, por isso, de alguma forma, foi beneplácito com muita gente, poderia ter sido mais enérgico. Com a Dilma doeu e doeu muito. Mesmo que os torturadores não possam ser condenados, as famílias têm direito de saber o que aconteceu com seus entes queridos e o Estado o dever de pedir desculpas. É o mínimo que se espera. Eu tenho direito de saber quem torturou meu irmão” questiona.

Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RJ) e integrante do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, a advogada Margarida Pressburger está entusiasmada com a criação, no dia 21 de setembro deste ano, da Comissão Estadual da Verdade e com o Projeto Marcas da Memória, que renomeará os nomes dos logradouros públicos que fazem referência a locais que serviram de tortura ou que enalteçam torturadores do regime militar. Nesta entrevista, ela fala sobre estes e outros assuntos.

Revista Justiça & Cidadania – Como você recebeu a criação, finalmente, da Comissão Estadual da Verdade?

Margarida Pressburger – A implantação da Comissão  Nacional da Verdade foi uma grande modificação, em termos de Brasil, da visão da sociedade com relação à torturas, desaparecidos, presos políticos, enfim, tudo aquilo que se jogou para baixo do tapete dos tempos que abrangem o Estado Novo e a Ditadura Militar e esta comissão distribuiu os seus poderes aos estados para apurar esses crimes. E o Rio de Janeiro, como não poderia deixar de ser, anteontem, dia 17 de outubro, na Alerj aprovou, por 49 votos a 2 finalmente, o Projeto de Lei 889/2011 que institui a Comissão Estadual  da Verdade no âmbito do Estado do Rio de Janeiro. Então, as mesmas atribuições que tem a comissão nacional terá agora a comissão estadual, que fará o seu dossiê sobre os crimes praticados no estado e o mandará para a Comissão Nacional da Verdade.

No entanto, entendo que o prazo de dois anos que foram dados para que se verifique, se apure, os crimes de toda espécie e violações de toda sorte cometidas contra os direitos humanos e liberdade nesse País nos períodos do Estado Novo de Getúlio Vargas e o período que compreendeu a Ditadura Militar, de 1964 a 1985, é muito pouco.  E está se chegando a conclusões  de que os desaparecimentos são muito maiores do que se supunha anteriormente. Não se falava antes em índios, por exemplo, e aquelas regiões onde houve construções de estradas e barragens para hidroelétricas foram palco de massacre de índios e sumiço de muitos.

Isso se deu porque eles não queriam que as estradas e as hidroelétricas fossem construídas ou passassem por suas terras e por conta disso muitos crimes aconteceram, principalmente como intimidação. Ou seja, calar a boca ou sumir com os líderes para que servisse de exemplo e houvesse o silêncio e o conformismo de toda tribo. Portugal utilizava muito essa prática da intimidação na sua colônia do Brasil. Portanto, ela não é nova. Utilizou-se muito agentes laranjas e também, já no campo político, não temos o número exato de mortos e desaparecidos das Ligas Camponesas, por exemplo. São assuntos meio tabus que ficaram esquecidos durante décadas e agora esperasse que sejam esclarecidos pelas Comissões da Verdade criadas pelo Brasil a fora. Sabe-se, que, pelo menos, os números extrapolam em muito os até agora conhecidos em mais de 300 mortos e tendem a aumentar.

RJC – A Comissão Estadual da Verdade, vai se reunir quando? E certamente você estará lá.

MP – Como ela se formou agora, os nomes ainda estão sendo escolhidos. Mas eu não estarei, porque existe um percalço, pois o Projeto de Lei, no seu artigo 7o diz que a comissão não poderá ser integrada por membros da sociedade civil, apenas empregados permanentes do Estado e dos Municípios.

Tudo ainda depende da regulamentação estadual, mas, de cara, já é uma coisa que devemos pensar, olhar muito seriamente. Ou seja, ficaram de fora toda a sociedade civil e entidades como a ABI, A OAB, Centros de Direitos Humanos de várias instituições, não se concebe, isso. Certamente houve alguma emenda, alguma negociação e tudo dependerá dos nomes que a comporão, pois dentro dessas autarquias, desses órgãos oficiais, existem muitos nomes bons e representativos.

Existem pessoas altamente competentes para ocuparem essa comissão no Ministério Público Estadual, nas Defensorias Públicas, nas Secretarias, médicos, engenheiros, advogados, enfim, existem nomes fortes e que são servidores públicos. Agora, existe uma saída no Artigo 10o, que diz: ‘A Comissão Estadual da Verdade poderá firmar parcerias com instituições de ensino superior ou organismos internacionais para o desenvolvimento de suas atividades’.

É o que está acontecendo hoje, as faculdades estão criando as suas comissões da verdade, a OAB, a ABI, os partidos políticos. Mas não deixa de ser um Projeto de Lei restritivo, deixa de fora os sindicatos, deixa de fora inúmeras entidades que participaram ativamente da luta pela democracia e liberdade de expressão nos anos em que ela esteve sufocada no Brasil. E ao mesmo tempo você não terá pessoas que participaram ativamente da luta naquele momento e que, com sua experiência, dariam uma imensa contribuição à comissão.

RJC – E o Projeto Marcas da Memória? A quantas anda atualmente?

PM – O Projeto Marcas da Memória entre nós do Rio de Janeiro é uma grande novidade, pode não ser em outros estados do Brasil. Mas confesso que nós copiamos do implantado em Porto Alegre. Na Europa, nos Estados Unidos, ele é muito comum. Inclusive, nós conclamamos os candidatos a prefeito do Rio, na época, a se comprometerem com esse projeto. O prefeito eleito, Eduardo Paes, foi um dos que se comprometeram, espero que seja rapidamente implantado  e que ele cumpra esse compromisso assumido, que seria um convênio entre a Prefeitura e o Movimento de Justiça e Direitos Humanos.

O Projeto Marcas da Memória consiste na instalação de placas e monumentos com o símbolo padronizado identificador da iniciativa em ruas, calçadas, prédios, praças, parques, enfim, em todos os lugares que serviram de palco à luta contra a opressão em nosso Pais, caracterizada pela morte de centenas de cidadãos brasileiros vítimas das mais atrozes torturas e total cerceamento da liberdades garantidas pela Constituição.

Existirá em todos os lugares que tenham sido prisões ilegais, locais de tortura, desaparecimentos, mortes encomendadas e representem o cenário que um dia existiu de total impunidade a toda sorte de arbitrariedade cometidas em nome de uma pretensa segurança nacional.  Existe ainda um outro projeto nosso de tombamento dos locais de tortura, como o prédio do Doi-Codi e do Dops, no Rio de Janeiro e da Casa da Morte, em Petrópolis.

RJC – Esse projeto de tombamento poderá sair ainda esse ano?

MP – Bem, nós já mantivemos um encontro, através de nosso presidente da OAB, Wadih Damous, com o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, e eu estive acompanhando o assessor da ministra Maria do Rosário, da Secretaria de Direitos Humanos,  ao prédio do antigo Dops. Já estivemos na Casa Civil, do Governo do Estado, solicitando ao governador sua interferência para que o prédio do Dops viesse a ser um dos Centros de Memória, a exemplo do que já acontece em São Paulo com o Museu da Resistência, existente no prédio do extinto Dops.

Mas existe aí um empecilho, pois esse edifício está sendo pleiteado pelo Chefe da Polícia Civil para ser o Museu da Polícia do Rio. Só que nós entendemos, e espero que o governador também, que esse Museu da Polícia pode ser feito em outro lugar. O que não faltam são prédios públicos que poderiam ter essa finalidade e não justamente aquele que serviu a tão triste memória e que deve servir como exemplo, principalmente às novas gerações de um tempo que não deve voltar nunca mais, mas que, nem por isso deve ser esquecido. Já com relação ao Doi-Codi acredito que não teria problema por se tratar de um prédio estadual.

RJC – E a Casa da Morte de Petrópolis? Sabemos que você tem lutado para que ela, depois de implantada, venha a se chamar Casa Inês Etienne.

MP – Claro, nada mais justo. Ela já foi declarada de utilidade publicada pelo prefeito de Petrópolis, Paulo Mustrangi, mas ainda tem um caminho a ser percorrido, com relação ao valor da desapropriação, pelas autoridades governamentais. Mesmo que o prefeito perca as eleições, já que lá haverá segundo turno, acredito que esse processo não sofrerá nenhuma regressão, pois ele vem sendo acompanhado de perto pelos governos federal e estadual. Há um interesse muito grande do Governo Federal para que a Casa da Morte se transforme em um Centro de Memória.

E, como eu disse, nada mais justo que receba o nome de Casa Inês Etienne, que foi a única pessoa a sair com vida de lá, onde ocorreram 22 mortes, isto é, mortes conhecidas, da qual sabemos os nomes dos mortos, mas podem ter havido outras, que ainda desconhecemos. Então, depois de ser barbaramente torturada, estuprada, agredida de todas as formas em sua honra e dignidade, ela conseguiu sair viva, guardar o nome da rua, o número, os nomes de seus torturadores, o telefone que usavam e até o nome do cachorro, fatores que foram essenciais para que essa casa viesse à tona, então nada mais justo que tenha o seu nome: Inês Etienne.

RJC – Sabemos hoje que foram descobertos outros centros clandestinos de tortura no Rio de Janeiro.

MP – Sim, foram, mas ainda não podemos divulgar os nomes, as investigações estão ocorrendo em caráter sigiloso. Porém, posso adiantar que existiu um aqui pertinho de nós, por incrível que pareça, no Jardim Botânico e mais dois na  Baixada Fluminense: um em Belford Roxo e outro em São João de Meriti, os outros locais prefiro manter em sigilo e já na próxima entrevista lhe digo (risos).

RJC – Essa questão dos direitos humanos é bem complicada. Como se encontra hoje o panorama dos direitos humanos em nosso País?

MP – Os direitos Humanos no Brasil andam pari passu com o resto do mundo. Agora, o Brasil tem uma cultura, desde o seu descobrimento, de violência, de indiferença à sorte dos mais fracos, de injustiça, de desigualdade social, que vem desde a dominação portuguesa, ou melhor dizendo, que existe em função da colonização portuguesa, onde nenhum direito era respeitado pela elite. O senhor de engenho, o coronel, o dono da terra, o nobre, o burguês rico, o profissional liberal, o clero, enfim, a casta superior, podiam fazer o que quisessem, exatamente o que quisessem contra o escravo, o índio, o camponês, o sapateiro, o carvoeiro, contra o mais ínfimo ser da pirâmide social que nada aconteceria, Não se podia imaginar em nossa cultura alguma condenação a eles e isso se prolongou através da história até hoje. Vai mudar, tem que mudar, mas vai demorar e, em função desse quadro, estamos mal.

Sempre fomos um País que aceitou a violência contra o mais fraco como algo normal e inevitável. Os navios negreiros são a mais bárbara imagem disso. E depois vem a tortura aos índios, aos escravos, aos integrantes das revoltas contra o domínio português. A tortura no Estado Novo, a tortura na Ditadura Militar e a tortura que sabemos que existe nos locais de privação da liberdade; nas delegacias, nos presídios, nos interrogatórios. O Brasil nunca foi um País bonzinho.

RJC – O presidente dos Estados Unidos, George Bush, disse uma vez que se não houvesse a tortura nos campos de prisioneiros, como o de Guantánamo, por exemplo, não teriam sido salvas milhares de vidas de norte-americanos. Como você vê essa afirmação?

MP – Olha, acho de um barbarismo primário, é lógico. Mas não se precisa usar de exemplos estrangeiros para ilustrar esse assunto, não. E vou dizer por que: eu escutei, em um seminário do qual participei no Nordeste de um delegado de Polícia em que ele dizia literalmente: ‘que se não der uma pisadinha ninguém confessa nada’. Então, isso demonstra exatamente o que estamos conversando aqui. Que se não der uma torturadinha a coisa não funciona. É o vício português ainda nos dias de hoje. A mentalidade declarada do ‘eu me orgulho, eu me envaideço de torturar, sou machão à beça por isso’. Mas esses exemplos não nos assustam. Estarei sempre ligada às questões dos direitos humanos. E depois da vitória do companheiro Felipe Santa Cruz como diz o Zagallo: ‘eles vão ter que me aturar’”.

Comissão de Direitos Humanos da OAB: luta em defesa da vida 

A Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ, criada em 30 de julho de 1981, em plena ditadura militar, tem fundamental importância na democracia do pais. A luta pelas conquistas sociais, como justiça e igualdade para todos, alem de respeito à vida e ao cidadão, faz parte de sua tradição histórica. A Comissão goza ainda do respeito da população em geral, tendo em vista a sua independência política, financeira e partidária.

O artigo 8º do seu Regimento Interno diz: “A Comissão de Direitos Humanos foi criada para receber queixas, notícias e representações de violações dos direitos humanos; proceder à sindicância sumaria para apuração dos fatos e encaminhamento às autoridades competentes; prestar assistência judiciária aos necessitados; promover seminários, palestras, debates e congressos que estimulem o estudo, divulgação e respeito ao ser humano; promover intercambio com outras organizações em cujos objetivos se inclua a defesa aos direitos humanos”.

E prossegue: “A Comissão de Direitos Humanos recebe denúncias tais como: prisões ilegais, desaparecimento de pessoas, violência policial (civil e militar), abuso de autoridades, espancamento, discriminação racial, irregularidades no sistema penitenciário, irregularidades em hospitais públicos, bullying, erros médicos, etc.”

A Comissão também prima pelo acesso da população em geral por uma boa qualidade no atendimento e tratamento na área da saúde, cobrando dos governos federal, estadual e municipal o cumprimento desse direito constitucional.