Dos direitos sociais na Constituição do Brasil

31 de janeiro de 2010

Membro do Conselho Editorial, advogado, ministro aposentado, ex-presidente do STF e do TSE

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1. As primeiras Declarações de Direitos: direitos de cunho individual

A preocupação com a integridade física do homem, com a dignidade da pessoa humana, se deve “especialmente ao cristianismo (dignidade do homem), ao jus naturalismo (direitos inatos) e ao iluminismo (valorização do indivíduo perante o Estado).”[1] A história constitucional demonstra que a preocupação com a integridade física do homem, com os direitos hoje denominados de direitos humanos, direitos fundamentais, vem de longe, assenta-se em antecedentes históricos e doutrinários.

As primeiras Declarações de Direito são contemporâneas da ideia de Constituição. A primeira é a de Virgínia, anterior à Declaração de Independência dos Estados Unidos. Essa é de 12 de janeiro de 1776, e a Declaração de Independência é de 4 de julho do mesmo ano. A Declaração de Direitos mais famosa, entretanto, é a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que veio no bojo da Revolução Francesa, de 1789. O constitucionalismo surgiu, aliás, associado à garantia dos direitos fundamentais, registra Manoel Gonçalves Ferreira Filho[2]. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, é enfática a esse respeito, ao proclamar, no seu art. 16, que “toda sociedade na qual não está assegurada a garantia dos direitos nem determinada a separação dos poderes, não tem Constituição.”

Essas primeiras Declarações, e outras que lhes seguiram, nos Séculos XVIII e XIX, preocupam-se, sobretudo, em proteger os homens contra o poder estatal. Elas, lembra Manoel Gonçalves Ferreira Filho[3], têm por escopo “armar os indivíduos de meios de resistência contra o Estado. Seja por meio delas, estabelecendo zona interdita à sua ingerência — liberdades-limites –, seja por meio delas, armando o indivíduo contra o poder no próprio domínio deste – liberdades-oposição.” As liberdades-limites, segundo G. Duverger[4], seriam, por exemplo, a liberdade pessoal, a liberdade de comércio, de indústria, de religião, o direito de propriedade; as liberdades-oposição, a liberdade de imprensa, de reunião, de manifestação.

Esses direitos, denominados direitos individuais, postos nas Declarações da segunda metade do Séc. XVIII e do Século XIX, são direitos de 1a geração, que foram positivados no “Bill of Rights” do povo norte-americano, consubstanciados nas dez primeiras emendas à Constituição de 1787, aprovadas em 1791, às quais acrescentaram-se, com o correr do tempo, outras mais. As Constituições seguintes positivaram os direitos considerados fundamentais. A Constituição brasileira de 1824 foi a primeira. Seguiu-se a da Bélgica, de 1831. A Constituição republicana brasileira de 1891 consagrou os direitos individuas.

2. A constitucionalização dos direitos sociais

No Século XX, a Constituição de Weimar, de 1919, realiza o compromisso dos direitos individuais, das primeiras Declarações, com novos direitos, que decorrem do constitucionalismo social que surge da ideia de que a felicidade dos homens não se alcança apenas contra o Estado, mas, sobretudo, pelo Estado. Os novos direitos fundamentais são os  econômicos e sociais, que a Constituição de Weimar consagrou, realizando, repito, o compromisso do individual com o social. A Constituição brasileira de 1934, na linha da Constituição de Weimar, introduz, no constitucionalismo brasileiro, esses direitos, o que se tornou constante nas Constituição seguintes, 1946, 1967, EC 1/69, 1988.

3. Direitos de 1a, 2a e 3a geração

Hoje, registrei em trabalho de doutrina[5], a teoria dos direitos fundamentais distingue direitos de 1a, 2a e 3a geração, lembra Celso Lafer[6], que desenvolve assim o tema: os direitos de 1ª geração constituem herança liberal. São os direitos civis e políticos: a) direitos de garantia, que são as liberdades públicas, de cunho individualista: a liberdade de expressão e de pensamento, por exemplo; b) direitos individuais exercidos coletivamente: liberdades de associação: formação de partidos, sindicatos, direito de greve, por exemplo. Os direitos de 2a geração são os sociais econômicos e culturais, constituindo herança socialista: direito ao bem-estar social, direito ao trabalho, à saúde, à educação são exemplos desses direitos. Os de 3a geração são direitos de titularidade coletiva: a) no plano internacional: direito ao desenvolvimento e a uma nova ordem econômica mundial, direito ao patrimônio comum da humanidade, direito à paz; b) no plano interno: interesses coletivos e difusos, como, por exemplo, o direito ao meio ambiente.

4. O conteúdo dos direitos sociais e sua classificação na ordem  constitucional brasileira

Os direitos sociais, direitos fundamentais de 2a geração, constituem, ensina José Afonso da Silva, “prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade.”[7]

A Constituição de 1988 estabelece, no artigo 6o, que “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”

A amplitude dos temas inscritos no art. 6o da Constituição deixa claro que os direitos sociais não são somente os que estão enunciados nos artigos 7o, 8o, 9o, 10 e 11. Eles podem ser localizados, principalmente, no Título VIII – Da Ordem Social, artigos 193 e seguintes.

José Afonso da Silva observa que os direitos sociais poderiam ser classificados como direitos sociais do homem como produtor e como consumidor. Na primeira classificação — direitos sociais do homem produtor —, teríamos a liberdade de instituição sindical, o direito de greve, o direito de o trabalhador determinar as condições de seu trabalho, o direito de cooperar na gestão da empresa e o direito de obter emprego (CF, artigos 7o a 11). Na segunda classificação — direitos sociais do homem consumidor —, teríamos o direito à saúde, à segurança social, ao desenvolvimento intelectual, o igual acesso das crianças e adultos à instrução, à formação profissional e à cultura e garantia ao desenvolvimento da família, que estariam no título da ordem social[8].

A classificação de que se vale, entretanto, o mestre das Arcadas, presente o direito constitucional positivo brasileiro, é esta: “a) direitos sociais relativos ao trabalhador; b) direitos sociais relativos à seguridade, compreendendo os direitos à saúde, à previdência e assistência social; c) direitos sociais relativos à educação e à cultura; d) direito social relativo à família, criança, adolescente e idoso; e) direitos sociais relativos ao meio ambiente.”[9]

Por ser didática, facilitando o entendimento, adotamos essa classificação.

Os direitos sociais relativos ao trabalhador são de duas espécies, segundo José Afonso: a) os direitos dos trabalhadores em suas relações individuais de trabalho: CF, art. 7o; b) os direitos coletivos dos trabalhadores: CF, arts. 9o a 11.

Os direitos sociais relativos à seguridade, compreendendo os direitos à saúde, à previdência e assistência social, estão no título da Ordem Social, artigos 193 e seguintes.

Os direitos sociais relativos à educação e à cultura embasam-se em diversos dispositivos da Constituição, artigos 5º, IX, 23, III a V, 24, VII a IX, 30, IX, 205 a 217, formando, leciona José Afonso da Silva, “aquilo que se denomina ordem constitucional da cultura, ou constituição cultural”, na expressão de Gomes Canotilho e Vital Moreira[10], “constituída pelo conjunto de normas que contêm referências culturais e disposições consubstanciadoras dos direitos sociais  relativos à educação e à cultura[11].

Os direitos sociais relativos à família, criança, adolescente e idoso poderão ser encontrados em capítulos da Ordem Social: art. 201, II, art. 203, I, II, arts. 226 e 227, art. 230.

Finalmente, nos direitos sociais relativos ao meio ambiente, deve ser incluído o direito ao lazer (CF, art. 6o, art. 227) e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (CF, art. 225). O direito ao meio ambiente, lembra José Afonso da Silva, integra a disciplina urbanística. Constitui, também, espécie de interesse difuso, direito fundamental de 3a geração.

5. Direitos sociais e mandado de injunção

Muitos desses direitos sociais, assegurados pela Constituição, dependem de normatividade ulterior. É dizer, não são normas de eficácia plena. O mandado de injunção, no caso concreto, pode realizar a integração do direito social cujo exercício é inócuo, em razão da inexistência da norma regulamentadora, à ordem jurídica. Aliás, para Galeno Lacerda é no campo dos direitos sociais que o mandado de injunção poderia ser mais utilizado, por isso que é no campo dos direitos sociais que a Constituição de 1988 criou “vários e importantes direitos, à espera de legislação ordinária ou complementar[12].

Nos MMII 95-RR e 124-SP, em que se pleiteava a viabilização do direito ao aviso prévio proporcional concedido pelo art. 7o, XXI, da Constituição, o Supremo Tribunal Federal deferiu, em parte, o pedido para, declarada a mora, notificar o legislador para que a supra.[13] Nos julgamentos dessas injunções, o que ocorreu, também, no julgamento do MI 369-DF, elaborei a norma para o caso concreto: o aviso prévio será de dez dias por ano de serviço ou fração superior a seis meses, observado o mínimo de trinta dias.

Esclareça-se que até hoje o Congresso Nacional não elaborou a norma regulamentadora do art. 7o, XXI, da Constituição, não obstante a decisão do Supremo Tribunal Federal.

O mesmo ocorreu relativamente ao direito de greve dos servidores públicos, CF, art. 37, VII, ainda dependente de lei específica. Cuidei do tema em trabalho de doutrina.[14] Anotei que, no MI 20-DF, Relator o Ministro Celso de Mello, o Supremo Tribunal reconheceu a mora do Congresso Nacional em regulamentar o art. 37, VII, da CF e comunicou-lhe a decisão, “a fim de que tome as providências necessárias à edição” da norma “indispensável ao exercício do direito de greve pelos servidores públicos civis”. O julgamento foi realizado em maio de 1994. Até hoje o Congresso Nacional não editou a norma regulamentadora.

Também nesse julgamento elaborei a norma para o caso concreto, adotando a lei de greve dos trabalhadores em geral.

6. Conclusão

A Constituição de 1988 confirma o compromisso dos direitos individuais com os direitos sociais, dos direitos de 1ª geração com os direitos de 2a geração. Ela vai mais longe: cuida, também, dos direitos fundamentais de 3a geração. No que diz respeito aos direitos sociais, é ampla a proteção que a Constituição lhes empresta, conforme vimos, realizando o que Gomes Canotilho e Vital Moreira registram: “a individualização de uma categoria de direitos e garantias dos trabalhadores, ao lado dos de caráter pessoal e político, reveste um particular significado constitucional, do ponto em que ela traduz o abandono de uma concepção tradicional dos direitos, liberdades e garantias como direitos do homem ou do cidadão genéricos e abstratos, fazendo intervir também o trabalhador (exatamente: o trabalhador subordinado) como titular de direitos de igual dignidade[15].

Principalmente por isso a Constituição brasileira de 1988 é uma Constituição democrática.


[1] Cesar Fiúza, “Direito Civil – Curso Completo”, Del Rey Ed., 5. ed., 2002, p. 159.

[2] Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “Curso de Direito Constitucional”, Saraiva, 17. ed., p. 246.

[3] Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ob. cit., p. 247

[4] Maurice Duverger, “Les Partis Politiques”, 3. ed., Paris, 1958, p. 201 e segs. Ap. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ob. e loc. cits.

[5] Carlos Mário da S. Velloso, “Reforma Constitucional e a Reforma Tributária”, em “Direitos Administrativo e Constitucional”, Estados em homenagem a Geraldo Ataliba, Malheiros Ed., 1997.

[6] Celso Lafer, “Direitos Humanos e Democracia: no Plano Interno e Internacional”, em “Desafios: Ética e Política”, Ed. Siciliano, 1995, p. 201 e segs.

[7] José Afonso da Silva, “Direito Const. Positivo”, Malheiros Ed., 15. ed., 1998, p. 289.

[8] José Afonso da Silva, ob. cit., p. 290.

[9] José Afonso da Silva ob. e loc. cits.

[10] J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República portuguesa anotada”, 3. ed., Coimbra Ed., 1994, p. 361.

[11] José Afonso da Silva, ob. cit., p. 314.

[12] Galeno Lacerda, “Requisitos do Mandado de Injunção”, Zero Hora, Porto Alegre, RS, 25.10.88.

[13] “DJ” de 18.6.93.

[14] “Greve no Serviço Público”, em “Curso de Direito Coletivo do Trabalho”, Estudos em Homenagem ao Ministro Orlando Teixeira da Costa, LTr, 1998, p. 555 e segs.

[15] J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Ob. cit., p. 285. Alexandre de Moraes, “Direito Constitucional”, Ed. Atlas, 5o ed., 1999.