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Dos abusos e da necessária reforma da Lei de Lavagem

1 de fevereiro de 2021

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A Lei nº 9.613/1998, que inaugurou a tipificação do delito de lavagem de dinheiro no Brasil, surgiu em um contexto de forte pressão internacional para que a legislação interna brasileira se adequasse às exigências de uma “política criminal transnacional” e uma “justiça penal universal”, como consta de sua exposição de motivos. Anos depois, também com o objetivo primário de atender a anseios externos, a Lei nº 12.683/2012 promoveu, entre outras alterações, a exclusão do rol de crimes antecedentes, assim adequando a Lei de Lavagem às novas demandas internacionais, sem a necessária discussão dogmática acerca das consequências do alargamento das hipóteses incriminadoras.

No plano introdutório, cumpre destacar a problemática relativa à delimitação da conduta e à identificação do bem jurídico – segundo Juarez Tavares e Antônio Martins, na recente obra “Lavagem de capitais”, pressuposto essencial da norma incriminadora. De acordo com os autores, seria impossível “determinar, com segurança e precisão, no atual contexto normativo brasileiro, as condutas compreendidas pelo delito de lavagem de dinheiro, pois tal empreendimento dogmático depende, como afirmado, da clara identificação do bem jurídico do suposto tipo penal incriminador, o que até hoje não se realizou”.

Como esclarecem Tavares e Martins, não se trata de mera especulação doutrinária, mas de corolário inerente à própria ordem jurídica que viola frontalmente os princípios da legalidade e taxatividade, ao abdicar da tarefa de identificar um valor a ser abrangido pelo processo de criminalização cuja consequência é a restrição ao exercício dos direitos fundamentais. Mesmo porque a conduta criminalizada pelo delito de lavagem de ativos pouco se diferencia daquelas abrangidas nas normas proibitivas do favorecimento real e do delito de receptação. Quanto a este último, não à toa é tratado de forma conjunta com a lavagem na legislação espanhola.

A alteração legislativa que retirou o rol taxativo dos delitos antecedentes possibilitou o alargamento das hipóteses de criminalização e criou graves desproporções, distanciando-se dos parâmetros racionais que devem pautar a reprimenda penal. A gravidade e a elasticidade da pena cominada ao tipo legal – entre três e dez anos de privação de liberdade – o são despidas de critérios objetivos vinculados à gravidade do delito antecedente, promovendo grandes distorções, como a possível incidência de institutos despenalizadores ao crime anterior, enquanto o delito de lavagem poderia admitir uma penalidade de até dez anos. Em muitos casos, acaba-se punindo mais gravemente a ocultação do produto do crime ou sua conversão em ativos lícitos do que o próprio delito que originou aquele bem ou valor ilícito.

Como ressaltado por Pierpaolo Bottini em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, a elevada pena mínima de três anos possibilita idêntica punição ao traficante de drogas que dissimula seu capital ilícito e ao organizador de uma rifa ou bingo que oculta seus rendimentos. Diante desta grave distorção, parece relevante novamente limitar os crimes antecedentes passíveis de ensejar o crime de lavagem, ao menos utilizando a técnica da moldura penal para abarcar crimes considerados graves, o que Bottini e Badaró, em obra conjunta, reputam mais adequado. Assim, apenas delitos com pena mínima ou máxima superior a determinado patamar poderiam ser considerados como crimes antecedentes de lavagem de dinheiro.

Solução alternativa seria diminuir a pena, prevendo-se causa de aumento para crimes antecedentes mais gravosos. Exemplificativamente, no Código Penal alemão a pena do delito de lavagem varia de três meses a cinco anos, com previsão de qualificação quando o crime for praticado de maneira profissional ou por intermédio de grupo criminoso, caso em que a pena pode chegar até dez anos.

Finalmente, outro caminho já conhecido em nossa legislação seria adotar o modelo dos crimes contra a fé pública, em que o delito subsequente é apenado de forma igual ao antecedente. Como previsto no art. 304 do Código Penal, ao uso de qualquer documento falso será cominada a mesma pena do delito de falsificação.

Por outro lado, a dificuldade de compreensão acerca do bem jurídico protegido pela norma cria o cenário ideal para a proliferação de excessos punitivos – em especial, o uso do bis in idem para aumentar a pena do acusado a patamares desproporcionais. É o que se viu em diversos procedimentos da Lava Jato, como apontado por Fábio Tofic em artigo acerca do entendimento conferido ao crime de lavagem nos processos da referida operação. Não foram poucas as vezes em que um réu restou condenado tanto pela prática do crime de corrupção ativa quanto pela prática do crime de lavagem de dinheiro, mesmo em situações nas quais a conduta desse segundo delito se tratava do mero exaurimento do primeiro – logo, um pós-fato impunível.

O simples fato do agente do delito usufruir do produto do crime de forma extravagante, adquirindo bens de consumo caros, tais como ternos de grife, caixas de champanhe, vinhos raros e objetos de decoração, por certo também não deveria gerar o acréscimo de mais uma pena por lavagem de dinheiro.

Tampouco deveria ser possível, como recentemente fez a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal no acórdão da Ação Penal 996/DF, equiparar a “formação dolosa de patrimônio ilícito” ao crime de lavagem. A existência de acréscimo patrimonial a descoberto, consequência natural do usufruto do produto do crime, em muito difere, como ressaltam Bottini e Libertuci em artigo publicado no Conjur sobre o caso, de dissimular a origem de bens e valores.

Recentemente, a Câmara dos Deputados instituiu uma comissão de juristas objetivando a elaboração de um anteprojeto de reforma da Lei de Lavagem. O ato que instituiu a comissão aponta expressamente o “alargamento do tipo objetivo do crime de lavagem” produzido por decisões judiciais como um dos motivos para a iniciativa, denotando preocupação do Poder Legislativo com os abusos recentes e recorrentes.

A fim de contribuir para o processo de aperfeiçoamento da Lei nº 9.613/1998, o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), em trabalho organizado pelo Presidente da Comissão de Direito Penal, Marcio Barandier, encaminhou parecer ao Presidente da comissão de juristas, Ministro Reynaldo da Fonseca, propondo, entre outras sugestões, reduzir as penas mínima e máxima para dois e seis anos de privação de liberdade, com causa de aumento em função da gravidade concreta do delito antecedente, vedada a aplicação de pena máxima para o crime de lavagem de dinheiro superior à pena máxima do crime antecedente, visando, assim, a atender ao princípio da proporcionalidade que rege a matéria penal.

Outra proposta interessante do IAB visando a mitigar a penalização de pós-fato impunível seria restringir a punição da autolavagem – a lavagem pelo mesmo autor do delito antecedente. O delito subsistiria apenas quando houvesse a efetiva conversão do produto do crime em ativos lícitos, com incremento do patrimônio formal do agente, sendo insuficiente a sua mera ocultação ou dissimulação.

Também seria interessante, como medida para garantir a proporcionalidade entre conduta e punição, que a comissão de juristas abordasse a Lei de Lavagem sob o aspecto da ofensividade. Diante da gravidade das penas cominadas ao crime de lavagem de dinheiro, não parece razoável considerar como condutas típicas a ocultação e reinserção no mercado de pequenos valores. A Carta Circular 3.978/2020, do Banco Central, que dispõe sobre os procedimentos e controles internos a serem observados pelas instituições financeiras visando ao combate ao crime de lavagem de dinheiro, estipula em seu art. 48 o dever de comunicar à UIF, antigo Coaf, apenas aquelas operações em espécie com volume superior a R$ 50 mil. Não faz sentido deflagrar persecução penal contra alguém cuja conduta sequer ensejaria a comunicação aos órgãos de controle, muito menos punir essa pessoa com três a dez anos de reclusão.

A fixação de um valor mínimo significativo estipulado por um ente da administração pública, tal qual ocorre para a configuração do delito de manutenção de ativos no exterior (art. 22, p.u., da Lei nº 7.492/1986), torna-se providência absolutamente necessária para que a conduta seja proporcional à pena cominada.

Propostas de mudanças como esta última ou aquelas sugeridas pelo IAB não devem ser enxergadas como um movimento a favor da impunidade pelo crime de lavagem de dinheiro, mas como a necessária adequação de uma lei produzida sob pressões comprometidas com o alargamento do poder punitivo, em detrimento dos princípios basilares do Direito Penal. A comissão de juristas recém-instituída terá a oportunidade, portanto, de trazer para a Lei de Lavagem reflexões técnicas que jamais deveriam ter ficado de fora em primeiro lugar.

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