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Discurso de despedida

28 de fevereiro de 2008

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Encerra-se mais uma etapa na trajetória de vida escolhida por vocação despertada desde a infância, influenciada pelo exemplo de vida de meu pai.
Nascido em 14 de fevereiro de 1938, vigente a Ditadura Vargas e quando se iniciava a 2a Grande Guerra, entusiasmava-me a defesa da democracia feita pelo então jovem e brilhante advogado e político Álvaro Peçanha Martins, ruísta devotado e apreciador da poesia, sobretudo da libertária do grande vate Castro Alves, cujos poemas recitava com dotes de declamador.
Muito próximo de mim, cultor da boa literatura, o meu avô materno, o único que conheci, Edilberto Augusto de Castro, cujo carinho e dedicação ao então primeiro e único neto estabeleceu convivência amorosa e sumamente proveitosa ao infante, que se deliciava com as histórias do Tico-Tico, revista infantil mensalmente presenteada – base para conversas educativas mantidas nos bancos de jardim do Largo Dois de Julho, em Salvador onde morávamos.
Recordo, com saudade, o aprendizado, com ele, do poema “Pássaro Cativo”, de Olavo Bilac, que recitei no aniversário de meu pai.
Tendo aprendido cedo a ler, habituei-me à leitura do jornal “A Tarde”, cujos temas principais eram a guerra contra o cruel nazi-facismo e a constante defesa da democracia em oposição às ditaduras.
Nesse ambiente familiar, adoçado por minha mãe, fui conduzido à Escola das Mercês, célebre colégio mantido pelas freiras ursulinas que, em regime de exceção, mantinham escola primária para meninos. Tive como professora a inesquecível madre Sacré Coeur, gorda, bonachona, que nos ensinava tudo, desde religião à matemática. Ditado, todo dia e toda semana, narração, descrição e dissertação. Aprendi bastante com ela, inclusive civismo e patriotismo, pois éramos cantores dos hinos e das marchas militares, e aprendíamos sobre grandes vultos da história.
Tais circunstâncias forjaram a vocação para o Direito e a Política. Não tive dúvida ao transferir-me dos Maristas, onde cursei o ginásio, para o Colégio Sophia Costa Pinto, só e só porque, neste, havia o curso clássico que aquele não mantinha.
Ingressando na Faculdade de Direito da Bahia, passei a militar na política universitária, no grupo da esquerda demo-crática, defensora intransigente dos interesses nacionais. As campanhas do “Petróleo é nosso”, criação da Eletrobrás, apoio à indústria nacional, reforma universitária e, sobretudo, a defesa das liberdades públicas, empolgavam. Fiz, então, muitos amigos que mantenho, cujas amizades guardo como a riqueza conquistada.
Abraçando a advocacia, continuei servindo à Democracia, participando intensamente da defesa das liberdades públicas no Conselho Seccional da OAB/BA e, por último, no Conselho Federal.
O fato é que, após mais de trinta anos de exercício ininterrupto da advocacia, por instância da eminente magistrada Cristina Peduzzi, inscrevi-me para disputar a indicação de meu nome na lista sêxtupla da OAB destinada a preencher a primeira vaga do quinto reservado à nobre classe neste STJ, nos termos da Constituição Cidadã. Indicado, em lista tríplice por este colendo Tribunal, fui escolhido pelo Executivo e tomei posse no cargo de Ministro do STJ em 5.02.1991.
Nos primeiros meses de exercício, procurei observar como procediam os meus colegas da 2a Turma – Américo Luz, Pádua Ribeiro, Ilmar Galvão, Hélio Mossiman –, todos magistrados experientes, aos quais pedi que tivessem tolerância com a veemência na defesa de opiniões pelo velho advogado, socorrido, em algumas oportunidades de ousadia divergente, com a solidariedade do jovem sub-procurador da República, Antônio Fernando Barros e Silva de Souza.
Mas não foi difícil a adaptação à nova função. É que o advogado, no seu ministério, é o primeiro juiz da causa. E sábia é a Constituição quando impõe a sua presença na composição dos Tribunais para oxigenar a jurisprudência, por natureza conservadora.
E este Tribunal vem inovando a jurisprudência infra-constitucional e me orgulho de dele participar.
Foi agradável e proveitoso julgar nesta augusta Casa da Justiça. Aprendi julgando. Aprimorei o senso crítico, estudei com afinco, aplicando, como julgador, as lições de Ruy Barbosa e de meu pai, Ministro aposentado do TFR, também oriundo da advocacia – “Não tenha medo de si mesmo. Decida de acordo com a sua consciência e com coragem cívica, atendendo aos juramentos feitos na OAB e na sua posse”.
Com tais lições, procurei desempenhar a nobre, e hoje estafante, missão de julgar. O fiz sem receios, confiante na atenção dos colegas para corrigir eventuais equívocos na aplicação do Direito aos recursos julgados. Polemizei, defendi opinião, sempre movido pelo ideal de fazer justiça. Foi agradável discutir e o fizemos, dentro dos limites da boa educação, calcada no respeito e na confiança.
Tenho por melhor o julgamento colegiado. Conquista relevante da humanidade, o princípio da colegialidade do juízo ad quem é regra consagrada no Direito das nações civilizadas. “A prioridade do exame múltiplo, ao mesmo tempo em relação ao exame de um só, se transforma em superioridade sempre que desejamos maior certeza”, como leciona Pontes de Miranda (Comentários ao CPC, Tomo VII, pág. 11, 1a ed. Forense).
A colegialidade das decisões aguça e amplia a reflexão. Continuo defendendo o princípio, e o faço com o amparo do exemplo italiano que, como me alertou o saudoso Franciulli, alterou o art. 350 do “Códice di Procedura Civile”, que atribuía uma série de atividades ao instrutor em grau de apelação e foi revogado pela Reforma de 1990 (Lei nº 353, de 26.11.90, vigente a partir de 1º de maio de 1994), para adotar-se a opção pela “rigorosa colegialitá del processo d’appello in ogni sua fose”, suprimindo a figura “del giudice istruttore”, como leciona  Giuseppe Forzin, in “Lincamenti del nuovo processo civile de cognizione” (Milão. Griffrê, 1966, n. 63, p. 249).
Julgamento pessoal, só nas decisões liminares.
Discutindo com os meus pares – aos quais agradeço pelas lições recebidas e tolerância com as opiniões discordantes –, aprimoramos, juntos, as decisões. Tenho-os a todos como amigos e ficarei com as minhas saudades, nas quais se incluirão as sessões de julgamento. Gostava delas, sobretudo aquelas em que se manifestava a polêmica, a que nunca me furtei.
Servi à causa da Justiça com alegria, gostando do exercício da nobilitante função de julgar. Procurei fazê-lo da melhor forma, sempre com independência e coragem cívica. Encerro, pois, esta jornada com a tranqüilidade de ter feito o que podia,  com as forças do saber adquirido com os meus professores, autores, advogados e com Vossas Excelências, nos dias vividos nesta augusta Casa, crendo que possa me apresentar à minha querida mãe com a certeza do dever cumprido.
Tudo o que fiz, assinalo, contou com a ajuda inestimável do funcionalismo, sobretudo dos homens e mulheres que trabalham nos meus gabinetes, excepcionais colaboradores na tarefa estafante de julgar os milhares de recursos requeridos pelos cidadãos e pelo Estado, sequiosos de justiça. A eles procurei servir participando do Conselho do Pró-Ser. Pena que não tenha sido possível construir e instalar a creche e a escola primária para os filhos dos funcionários e estender o exitoso sistema de saúde à toda Justiça Federal. A todos agradeço, e aos assessores e auxiliares dos gabinetes, estendo um abraço amigo, confiante de que poderei desfrutar da amizade de todos ao longo da vida.
Aos senhores Ministros, agradeço o convívio, as lições recebidas, e peço que relevem alguma possível falha cometida nestes longos e agradáveis anos de permanência  sob a toga negra. Vestindo-a, continuei defendendo o tema acalentado na juventude – Justiça para todos.
Despeço-me hoje, com saudades, dos julgamentos nesta colenda Corte. Mas continuarei servindo à causa da Justiça, na advocacia, esperando poder visitar os seus gabinetes para postular legítimos interesses dos clientes que me outorgarem mandatos tão logo se encerre a injustificável quarentena. Preservarei, contudo, a amizade, estando a todos abertas as portas de minha casa, como estará sempre aberto o meu coração quando puder estreitá-los num abraço.
Naveguei e tenho sido feliz graças a Deus e ao apoio de uma família amorável constituída com Clara e os nossos filhos, Luciana, Álvaro, e Lívia, minha nora, acrescida dos queridos netos – Pedro, Lucas e Júlia, que adoçam o existir.
Muito obrigado.