Direitos fundamentais em estado de calamidade

10 de maio de 2020

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Em 20/3/2020 foi editado o Decreto Legislativo nº 6, com vigência, a princípio, até 31/12/2020, decretando o estado de calamidade pública no Brasil. O Distrito Federal, os Estados e os Municípios, na sua quase totalidade, também editaram decretos de calamidade pública.

Estado de calamidade pública é medida legal, descrita pelo Decreto nº 7.257/2010, da Presidência da República, e constitui-se em uma situação anormal de grandes proporções e com graves consequências, em que se permite flexibilizar os limites orçamentários, que tenham como objetivo a possibilidade de gastar mais dinheiro para o controle e superação decorrentes dos efeitos danosos da situação anormal, no caso atual, a pandemia do novo coronavírus (covid-19), e legitimar juridicamente medidas provisórias de urgência.

É exatamente nas medidas jurídicas editadas de maneira urgente que os inflexíveis direitos fundamentais, assentados, em nossa Carta Magna, no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), no art. 5º com seus 78 incisos, nos quais estão listados os direitos individuais bem como, também, dispersos em outros artigos ao longo do texto constitucional, tornam-se provisoriamente flexíveis, para atender situações graves e abrangentes.

No art. 60, § 4º da Constituição Federal, observamos a proteção, dada pelos constituintes de 1988, aos direitos fundamentais, grafando-os no rol da garantia das cláusulas pétreas de direitos intangíveis.

Importante ressaltar que a palavra inflexível, bem como o termo direitos intangíveis, não são suficientes para salvaguardar os direitos fundamentais, porque esses direitos são construídos, gradativamente, obtendo e agregando conquistas, mas também cedendo ou diminuindo seu alcance, para atender a situações em que o interesse coletivo predomina, objetivando um valor maior e mais abrangente.

A maleabilidade dos direitos fundamentais está aprisionada, respeitando posições diversas, a três hipóteses: para incorporar as mudanças sociais constantes; para atender, por tempo determinado, a uma situação grave e de grande abrangência, nesse caso apenas com o aval do Poder Legislativo; quando estabelecidos pela própria Constituição, ou seja, quando da redação do direito já estiver previsto uma restrição, como por exemplo o art. 5º, IV.

No seu “Curso de Direito Constitucional Contemporâneo”, Luís Roberto Barroso diz:

Normas de direito fundamental ora se apresentam com estrutura de regra, ora de princípios. Muito frequentemente, terão a natureza de princípios, o que significa que podem sofrer restrições, podem ter de ceder parcial ou inteiramente diante de certas situações fáticas ou jurídicas e estarão sujeitas à ponderação com outros direitos fundamentais ou interesses coletivos.”

Em “Comentários à Constituição do Brasil”, após tecer algumas preliminares quanto a amplitude e diversidade de direitos fundamentais reconhecidos pelo constituinte, Ingo Wolfgang Sarlet conclui:

“O sistema dos direitos fundamentais (em verdade subsistema) não pode ser compreendido como um sistema lógico-dedutivo, autônomo e autossuficiente, mas sim como um sistema aberto e flexível, receptivo a novos conteúdos e desenvolvimento, integrado ao restante da ordem constitucional, além de sujeito aos influxos do mundo circundante.”

Porém, quando a flexibilização nos direitos fundamentais advém por decreto de calamidade pública, redigido em caráter de urgência, cobra de todos os trabalhadores do Direito muito conhecimento, minuciosa atenção e severa atuação, para que as mudanças parcial ou total e a supressão destes direitos não sejam utilizadas para fins diversos.

Partindo para um conceito dos direitos fundamentais, podemos dizer que são direitos inerentes a todas as pessoas humanas, sem restrições, e positivados em código ou lei. Eles influenciam todo os ramos do Direito e visam assegurar uma existência digna, igual e livre a todos para a plena realização das potencialidades do ser humano.

Vejamos alguns conceitos de direitos fundamentais.

Dirley da Cunha Júnior assim conceitua:

“(…) posições jurídicas que investem o ser humano de um conjunto de prerrogativas, faculdades e instituições imprescindíveis a assegurar uma existência digna, livre, igual e fraterna de todas as pessoas. (…) princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico.”

Luiz Roberto Barroso os define do seguinte modo:

(…) são os direitos humanos, incorporados ao ordenamento jurídico doméstico. Significam a positivação, pelo Estado, dos direitos morais das pessoas. (…) são direitos subjetivos. (…)posições jurídicas protegidas pelo Direito, e que podem ser sindicáveis judicialmente.”

A titularidade dos direitos e garantias fundamentais é um assunto que merece outro trabalho, por suas nuances e particularidades. En passant, analiso a categorização dos direitos humanos, apenas para situá-los de forma melhor, no momento da arguição do choque entre direitos fundamentais e, ao mesmo tempo, sua interdependência. O número de gerações ou dimensões de direitos fundamentais varia bastante na doutrina. Há doutrinadores que as ampliam para cinco ou seis, citando a existência de direitos até mesmo relacionados à engenharia genética.

Os de primeira dimensão são os direitos individuais que exigem a abstenção do Estado, portanto têm caráter negativo. Nessa dimensão estão incluídos o direito à vida – o maior direito fundamental – segurança, liberdade de pensamento, voto, crença, justiça, propriedade privada e locomoção entre outros.

Os de segunda dimensão devem ser ofertados pelo Estado por meio de políticas públicas de justiça distributiva. O Estado passa a ter responsabilidade para a concretização de um ideal de vida digna na sociedade. Aqui estão o direito à saúde, ao trabalho, à educação, à habitação, à greve, ao lazer, ao repouso, ao saneamento, à livre associação sindical, dentre outros. Ou seja, direitos sociais, econômicos e culturais.

Aliás, a propósito deles, Gilmar Ferreira Mendes explicita:

“A aplicação da chamada proibição do retrocesso aos direitos sociais tem conquistado destaque nas Cortes Constitucionais, em especial em momentos de crise e durante a realização de políticas de austeridade. Trata-se de princípio segundo o qual não seria possível extinguir direitos sociais já implementados, evitando-se, portanto, um verdadeiro retrocesso ou limitação tamanha que atinja seu núcleo essencial.”

Na terceira dimensão dos direitos fundamentais, que surgiram após a II Guerra Mundial, com o advento do Estado Social, estão aqueles relacionados aos valores de fraternidade ou solidariedade, ao desenvolvimento ou progresso, ao meio ambiente, à comunicação, à autodeterminação dos povos, ao direito de propriedade sobre patrimônio comum da humanidade. São considerados direitos coletivos por excelência por estarem voltados à toda a humanidade.

Não existe hierarquia entre os direitos fundamentais. Em todas as dimensões, eles protegem valores independentes e indivisíveis, cujo núcleo deve, em princípio, em especial quanto aos direitos sociais e econômicos, ser preservado de qualquer volta atrás. A importância desses direitos é indispensável à existência das pessoas e por isso são inalienáveis, intransferíveis, inegociáveis, imprescritíveis, irrenunciáveis e universais. Porém não são absolutos.

Com os decretos de calamidade pública editados, os direitos fundamentais, principalmente os anteriormente grifados acima, estão ainda que por tempo determinado, maleáveis e em choque. Sublinho que o direito à vida é, sem dúvida, o mais importante e, no momento desta pandemia que levou à edição dos tais decretos, o principal direito fundamental, devendo prevalecer sobre qualquer outro.

O direito à vida arrasta o direito à saúde, que exige o direito à educação e ao trabalho, que puxam o direito à liberdade de locomoção e assim, como em um jogo de quebra-cabeça, todos vão se aglomerando, garantindo a cidadania. No momento atual, estamos limitados, em alguns direitos e até deveres, em face das normas advindas dos decretos de calamidade pública, editados pelos governos federal, distrital, estaduais e municipais. Mas jamais esquecidos dos direitos duramente conquistados.

Comércio, indústria, construção civil, clínicas, escritórios, instituições de ensino, bancos e tudo o que não seja essencial ao combate à pandemia estão fechados, parados, ou operando com redução de horário e restrição de acesso. Como consequência, aparecem e aumentam grandes problemas como demissões, fome, insuficiência de recursos e materiais, principalmente para área de saúde, que vêm agravando os desafios sociais e econômicos do Brasil. É fato, pois, a que a pandemia afetou uma boa parte dos direitos fundamentais.

Ao mesmo tempo em que temos uma elevação do número de desempregados e de empregados com redução salarial ou com o contrato de trabalho suspenso; na área da saúde empregados sobrecarregados, fazendo horas extras acima das permitidas, com inadequada proteção individual e sem convívio com seus parentes. Nos dois últimos parágrafos já dá para perceber que direitos de primeira grandeza estão suprimidos.

A livre iniciativa permite que tenhamos atividades comerciais, os decretos determinam que fiquem fechados. Todo cidadão tem o direito de ir e vir, mas para atender às normas de saúde, os decretos ao fechar tantos ramos de comércio e limitar os acessos, tolhem o direito de locomoção. Os empregados se dobram às normas editadas e fazem acordos de redução salarial, suspensão de contrato de trabalho e assinam demissões, amparadas nos decretos, porém em total afronta às leis trabalhistas. As empresas deixam de ter renda e com isso comprometem não só os encargos sociais e trabalhistas, como também os fiscais e previdenciários, atingidas que foram pelo fechamento obrigatório. Onde foram parar nossos direitos fundamentais?

Por que não podemos mais ir e vir livremente, abrir nossos estabelecimentos comerciais, manter a rotina de trabalho, estudo e lazer tão importantes para a saúde mental e física? Porque, no momento de uma pandemia, foi necessária a decretação do estado de calamidade, legitimando o Estado a editar normas drásticas, que afetam os direitos fundamentais, para o bem maior que é a própria sobrevivência de todos os cidadãos.

Não há dúvida de que, se estivéssemos vivendo dentro da normalidade, tais medidas seriam total, formal e materialmente inconstitucionais, por violarem tantos direitos fundamentais. Porém, a crise sanitária advinda do coronavírus, acoberta, de forma excepcional, a tolerância das restrições a direitos fundamentais, para a preservação dos direitos à vida e à saúde, menos individual e mais coletivamente considerados. Quanto mais durarem os decretos editados, na crise pandêmica e calamitosa, mais haverá conflito entre a proteção à saúde e à economia, que são deveres constitucionais do Estado.

Para equalizar o conflito precisamos, com urgência, empregar a liberação dos recursos federais, distritais, estaduais e municipais de forma responsável, elegendo políticas públicas que se mostrem capazes de cumprir e fazer cumprir democraticamente e com ética o bem-estar de todos, sem a mácula dos interesses mais vis da desonestidade.

Há uma imensidão de direitos em colisão com as normas dos decretos editados, bem como deveres que entram em choque com a supressão de direitos, muito além dos hospitais e Unidades de Terapia Intensiva, mas também a economia nacional, a capacidade de produção e os contratos anteriormente firmados.

Só para exemplificar, veja-se a situação das escolas e universidades particulares com relação ao pagamento das mensalidades dos alunos que não estão recebendo a prestação de contratos firmados e as obrigações previdenciárias do seu corpo de empregados, mostrando assim como a supressão de direitos pode afetar o cumprimento de deveres.

Muito embora já se tenha a Instrução Normativa nº 1.932/2020 e as portarias do Ministério da Educação (139 e 150/2020) é importante alertar que, infelizmente, há obrigações acessórias que não foram contempladas, até o momento, com a prorrogação dos pagamentos e a não incidência de juros, como é o caso das obrigações acessórias previdenciárias. Portanto, para esse grupo empresarial, que peguei como exemplo, temos o seguinte cenário: atividades suspensas ou ofertando ensino por meios eletrônicos; contratantes (alunos) pleiteando na Justiça à suspensão total ou parcial dos pagamentos das mensalidades acadêmicas; governo exigindo o repasse à Previdência de tributos relativos aos professores e demais empregados.

Observem que, tomando um só exemplo, temos vários ramos do Direito envolvidos e todos afetados pelo estado de calamidade pública. E, aí? Como fazer justiça? Condenando as instituições de ensino a arcar com o fel trazido pelos Decretos e Instruções Normativas? Exigindo dos contratantes o pagamento integral das mensalidades?  Deixando o Estado sem receita pública? Todos os lados citados no exemplo sofrem as mesmas consequências deletérias do momento. Decisão difícil, concordam? Pois bem. É exatamente nesse ponto que a prudência e o bom senso dos operadores do Direito se tornam imprescindíveis. As instituições de ensino merecem de toda a sociedade um grande respeito, porque vem delas o saber que, de geração em geração, orienta-nos para vida.

O Estado, por sua vez, é sem dúvida o que pode apaziguar a situação em análise. Mas aí perguntamos: Até quando os governos irão dispor de verbas para socorrer tantos necessitados? Já quanto ao corpo discente – os contratantes – penso ser prematura a modificação ou ruptura dos contratos firmados, mas os casos devem ser analisados em separado, porque muitos responsáveis pelos pagamentos amargam o desemprego ou a redução salarial, que podem ser decisivos na hora de uma negociação.

A imposição dos limites que estamos sofrendo nos nossos direitos e garantias fundamentais é impactante e muitas vezes incompreensível. Cabe à advocacia atuar, protegendo a sociedade dos abusos, que por ventura ocorram na elaboração de normas fora dos objetivos do estado de calamidade pública, ou com finalidades obscuras.

A partir dessa provocação, teremos a formação de jurisprudência, assegurando a mais ampla proteção aos direitos atingidos, norteando e impondo limites às modificações trazidas pelas normas governamentais, visando ao mínimo de interferência e restrição aos nossos direitos, para que possamos cumprir os nossos deveres e mantermos, como cidadãos, a devida dignidade da pessoa humana, recuperando o nosso direito às liberdades civis e políticas.

Algumas decisões já surgiram no curso da presente pandemia. Exemplificamos. No Supremo Tribunal Federal, da Ministra Rosa Weber, referente ao direito à intimidade, não permitindo o fornecimento de dados dos celulares das pessoas ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. No Superior Tribunal de Justiça, do Ministro Sebastião Reis Júnior, tocante ao direito à liberdade, concedendo-a aos presos que a tinham condicionada à fiança.

Outras decisões estão surgindo, não apenas nos tribunais superiores, mas nas cortes de todo o País. Evidentemente, a doutrina dá ainda passos de bebê, a respeito da atual pandemia. O importante é que tanto o lado jurisprudencial quanto o doutrinário saibam equilibrar o combate à crise sanitária com a preservação e efetivação, no máximo possível, dos direitos fundamentais.

Finalizando, ressalto que todos devemos empenhar esforços para gerar auxílio aos prejudicados socioeconomicamente pela pandemia do coronavírus (covid-19) e assim, em um grande esforço coletivo, exercermos os direitos fundamentais de uma das mais novas e talvez mais importante dessas dimensões: a da solidariedade e fraternidade, em especial em um País com as diferenças socioeconômicas e culturais do nosso.

NOTAS________________________________

1 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, 8ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 493.

2  SARLET, Ingo Wolfgang. Normas introdutórias ao sistema constitucional de direitos e deveres fundamentais, em Comentários à Constituição do Brasil. CANOTILHO, J. J. et al. J. J. Gomes Canotilho, Ingo Wolfgang Sarlet, Lênio Luiz Streck e Gilmar Ferreira Mendes (coordenadores), 2ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 187.

3 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional, 12ª ed., Salvador: JusPodivm, 2018, p. 494.

4 Op. cit., pp. 492/493.

5 A sucessão das dimensões ou gerações desses direitos não aconteceram, em todos os lugares ou situações históricas, de forma organizada. Não estão listados ou descritos na ordem em que foram enumeradas. Exatamente por isso, prefiro utilizar o termo dimensão em vez de geração.

6 MENDES, Gilmar Ferreira et BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 14ª ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 711.

7 Site do STF: stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442090, acesso em 26/4/2020.

8 Site do STJ: <http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Presos-que-tiveram-liberdade-condicionada-a-fianca-devem-ser-soltos-em-todo-o-pais.aspx>, acesso em 26/4/2020.