Democracia exige liberdade com responsabilidade

8 de março de 2021

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Em entrevista exclusiva, Ministro Alexandre de Moraes destaca que a “imunidade parlamentar não pode servir de escudo para a prática de infrações penais”

Doutor em Direito Público pela Faculdade do Largo de São Francisco (USP), o hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes iniciou sua vida pública em 1991 como promotor de Justiça no Ministério Público de São Paulo, tendo sido o primeiro aprovado em seu concurso. Em 2002, após cumprir diversas funções institucionais, deixou o Parquet para assumir a Secretaria de Justiça e de Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo. Compôs o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 2004 a 2007, foi secretário municipal de Transportes de São Paulo, entre 2007 e 2010, e secretário municipal de Serviços, cumulativamente, de 2009 a 2010. Em 2010, fundou um escritório dedicado ao Direito Público, no qual exerceu a advocacia até o final de 2014, quando foi nomeado secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo.

Foi ministro da Justiça e Segurança Pública no governo do então Presidente Michel Temer, que o nomeou para o cargo de ministro do STF em março de 2017, na vaga do Ministro Teori Zavascki, que faleceu em acidente aéreo em janeiro daquele ano.

Nessa entrevista exclusiva à Revista JC, concedida por teleconferência, logo após completar seu quarto ano na Corte, o magistrado fala sobre a defesa das instituições democráticas protagonizada pelo Supremo, sobre a condução do inquérito dos atos antidemocráticos e do inquérito das fake news, e ainda sobre a decisão de determinar a prisão do Deputado Daniel Silveira. Provável presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a partir de agosto do ano que vem, conforme o sistema de rodízio na presidência do Tribunal, ele também comenta o trabalho que já vem sendo realizado com os demais membros para preparar as próximas eleições.

Revista Justiça & Cidadania – Vivemos um ambiente político um tanto quanto conturbado, turbulento, que envolve inclusive alguns conflitos entre os Poderes. O senhor enxerga algum risco de quebra da normalidade democrática?
Ministro Alexandre de Moraes – Não enxergo nenhum. Costumo dizer e vou repetir que nós vivemos no Brasil o maior período de estabilidade democrática e do Estado de Direito desde o início da República. Apesar da nossa Constituição de 1988 ainda não ser a mais longeva, porque a Constituição de 1891 durou um pouco mais, a primeira constituição republicana foi respeitada por menos tempo. A Constituição de 1988 não, ela vai completar 33 anos em outubro desse ano, é o maior período de estabilidade. Agora, estabilidade democrática e estabilidade do Estado Democrático de Direito não significam que não haja turbulências e, eventualmente, problemas. Nós tivemos inúmeros problemas, tivemos a hiperinflação, que era um grande problema econômico e social. Tivemos dois impeachments. Qual grande democracia do mundo sofreu em 30 anos dois procedimentos de impeachment que depuseram os presidentes eleitos? Em nenhum desses momentos houve ruptura institucional, nos dois impeachments, tanto do ex-presidente Fernando Collor de Mello quanto da ex-presidente Dilma Rousseff, os presidentes perderam seus mandatos, assumiram os vice-presidentes e nós tivemos eleições. A garantia de institucionalidade no Brasil é exatamente essa: a cada dois anos o eleitorado escolhe seus governantes. Não vejo nenhum risco de ruptura. Temos eventuais turbulências, radicalismos que foram crescendo, o País em posições extremamente radicais, mas isso não significa que as instituições e os freios e contrapesos não estejam funcionando. Isso é muito importante, significa que a Constituição é forte o suficiente para aguentar as turbulências, sejam econômicas, sociais ou políticas.

JC – Como o senhor enxerga a cobertura da imprensa sobre o Poder Judiciário?
AM – É outra questão importante. Temos três pilares da democracia: Poder Judiciário autônomo e independente, eleições livres e periódicas, e liberdade de imprensa. É muito importante que a imprensa possa conhecer cada vez mais o Poder Judiciário, que critique, que possa construir junto com essas críticas um novo e melhor Poder Judiciário. O que vejo é que a imprensa passou a conhecer mais o funcionamento do Judiciário. Temos a partir de dez, quinze anos para cá, um aumento de publicações especializadas no ramo e setoristas. Há 20 anos havia os setoristas do Poder Executivo e setoristas do Legislativo, ninguém falava em setorista do Judiciário, setorista do Supremo Tribunal Eleitoral ou do Tribunal Superior Eleitoral. Hoje isso se faz necessário, então a imprensa passou a conhecer mais o Poder Judiciário. A partir da Constituição de 1988, o Poder Judiciário passou a ter uma força muito maior do que antes e, consequentemente, passou a ser cobrado por isso. Então, é importantíssima a cobrança da imprensa para mostrar os erros e acertos do Poder Judiciário, como foi importantíssimo que a própria imprensa tenha visto a necessidade de conhecer mais o Judiciário. Estamos em uma evolução e é um caminho de mão dupla, porque também o Poder Judiciário precisou aprender a conviver com a imprensa, passou a ter a necessidade de entender bem suas críticas da imprensa, entender como se comunicar com ela, a importância de mostrar dados, explicar decisões e às vezes traduzir essas decisões do juridiquês para algo que a população possa entender. Nesse caminho de mão dupla, quem ganha é a sociedade.

JC – Ministro, como está o andamento do chamado inquérito das fake news? Há um prazo para a apresentação das suas conclusões finais?
AM – Presido dois inquéritos que têm objetos que se mostraram, a partir das investigações, muito coincidentes: o denominado inquérito das fake news e o também denominado inquérito dos atos antidemocráticos. As investigações em ambos os inquéritos demonstraram que há núcleos coincidentes. No ano passado, aprofundamos muito essas investigações, com inúmeras quebras de sigilos bancários, fiscais, buscas e apreensões. Isso exigiu que a Polícia Federal fizesse um cruzamento de dados, há diversos laudos e outras investigações subsequentes. Tanto em um inquérito quanto no outro, já há relatórios preliminares para que possamos dar encaminhamento ao término dessas investigações. No caso específico do inquérito das fake news, ele já possibilitou 75 outros inquéritos espalhados pelo País, porque não há prerrogativa de foro a ser analisada, para que as investigações continuem nas localidades. Estamos agora em um momento de cruzamento final de dados em relação ao inquérito dos atos antidemocráticos e do  inquérito das fake news, para verificar a partir de então quais serão as consequências disso, quais serão os novos desdobramentos, inclusive com remessa aos foros pertinentes, para que só o núcleo específico das ofensas e agressões aos ministros do Supremo seja enviada à Procuradoria Geral da República, que então vai decidir, dentro da autonomia do Ministério Público, eventual oferecimento ou não de denúncia.

JC – A sociedade brasileira está muito polarizada. O STF é o protagonista da defesa da Constituição e dos valores democráticos, e o senhor é um guardião da Constituição, mas percebemos que alguns não entendem muito bem não apenas o inquérito, como também a recente prisão do deputado Daniel Silveira. O que o senhor diria aos críticos que interpretaram o inquérito das fake news, o inquérito dos atos antidemocráticos e a prisão como uma reação corporativa dos ministros a essas afrontas?
AM – A prisão em flagrante que foi realizada do deputado Daniel Silveira não foi porque ele criticou ministros do Supremo Tribunal Federal, não foi nem porque ele ofendeu os ministros. Nós convivemos tranquilamente com críticas. Você pode gostar ou não das críticas, isso cada pessoa sabe ou não lidar, mas você tem que conviver com as críticas, aceitá-las ou repudiá-las. Todos são absolutamente livres para criticar o STF, seja do Legislativo ou do Poder Executivo. Não foi essa a questão. Agora, não é possível a apologia à ditadura, não é possível, ainda mais um agente público, um agente político no caso, como parlamentar, não é possível pregar o fim do Supremo Tribunal Federal, atentar contra a independência do Poder Judiciário, proclamar a volta do Ato Institucional nº 5, que foi o pior dos atos institucionais, estabelecendo um regime de exceção total, contra a liberdade, contra a segurança jurídica e contra o Poder Judiciário. Não é possível, não porque eu não concorde ou o Supremo não concorde, mas porque isso é estabelecido em lei como crime. O parlamentar é eleito para defender a democracia, não para pregar o seu fim. Todos nós sabemos que quando as democracias começam a ser derrubadas, é o Congresso Nacional, são os parlamentos os primeiros a serem fechados.

Não é possível a utilização de uma pseudo imunidade parlamentar como escudo protetivo para a prática de infrações penais. Foram tipificadas as infrações penais praticadas, não porque se criticou o Supremo Tribunal Federal. Se abrirmos hoje as redes sociais, veremos centenas de críticas aos ministros do STF. Agora, uma coisa são as críticas, outra coisa são as ofensas – que devem ser também tipificadas como crimes contra a honra, indenizações por danos morais – outra é pregar contra o Estado Democrático de Direito, atuar para que o Brasil volte a ser uma ditadura, atuar contra a democracia. Isso é vedado aos agentes públicos.

JC – Os deputados recentemente adiaram a votação da PEC da imunidade, que alguns chamam de PEC da impunidade. Há clima na sociedade e no Congresso Nacional para que uma iniciativa como essa prospere?
AM – A ideia de eventualmente regulamentar o art. 53, especificar na própria Constituição, essa ideia por si só não é ruim, porque tivemos várias alterações ao longo do tempo, principalmente na questão do foro ao Supremo Tribunal Federal, no momento em que o STF alterou o seu entendimento em relação à prerrogativa de foro – inclusive com uma cisão entre fatos praticados antes do exercício do mandato e fatos praticados durante o mandato, mas sem relação. Algumas situações jurídicas ficaram a dever uma melhor regulamentação ou até uma melhor interpretação. A discussão sempre é válida, mas uma discussão com bom senso, a partir do binômio liberdade com responsabilidade. O parlamentar, isso é clássico, nasceu lá atrás na Inglaterra, ele tem suas imunidades parlamentares, mas nenhum país do mundo interpreta que imunidades parlamentares são sinônimos de impunidade. Nenhum país do mundo interpreta que o parlamentar possa utilizar as suas imunidades para praticar infrações penais. O paradoxo do que ocorreu e gerou a prisão em flagrante é que o parlamentar deve ter total imunidade parlamentar para defender a democracia, para defender as suas opiniões, para defender a liberdade, não para pregar a ditadura, não para pregar a tortura, não para pregar o AI-5. O parlamentar deve ter total liberdade, com responsabilidade. Assim como o magistrado que excede os seus poderes, assim como um membro do Executivo que sai do exercício de suas funções, os parlamentares que também se excederem devem ser, como todos na República, responsabilizados. Essa discussão que agora acredito ocorrerá na Comissão Especial criada pelo Presidente da Câmara, Deputado Arthur Lira, se for uma discussão que leve em conta essas questões, poderá ser frutífera para o País.

JC – Pelo fato do senhor estar à frente desses inquéritos, além da natural exposição dos ministros do Supremo, o senhor já sofreu alguma ameaça?
AM – Essas milícias digitais, na maior parte das vezes, são muito valentes digitalmente e covardes presencialmente, mas o grande perigo dessa radicalização, e isso ocorre em outros lugares do mundo, é que acabam insuflando outras pessoas a praticarem atos que elas não têm coragem. Em virtude disso, já desde o ano retrasado, na então presidência do Ministro Dias Toffoli, fiz uma análise detalhada dos casos de ameaças de todos os ministros, junto com delegados federais, para que houvesse reforço na segurança dos ministros e suas famílias, porque também dentro dessa covardia que consagra as milícias digitais, acabam ofendendo, ameaçando e atacando os familiares dos ministros. Sempre é bom prevenir. É aquele ditado que a minha avó já dizia, é melhor prevenir do que remediar.

JC – Qual é a sua avaliação a respeito da Operação Lava-­Jato diante dos diálogos revelados na Operação Spoofing?
AM – Não vou me aprofundar muito nisso, até porque aparentemente vai chegar ao Supremo Tribunal Federal como matéria jurisdicional. Sempre elogiei a Operação Lava-Jato e todo esse combate à corrupção – porque de tempos para cá tudo ficou Lava-Jato, Lava-Jato do Rio, Lava-Jato do Pará – mas essa alteração na forma de combate à corrupção foi muito importante. Foi possível porque houve uma alteração legislativa que a permitiu. Esses novos agentes públicos, membros do Judiciário e do Ministério Público, souberam muito bem aplicar as novas legislações. Se abusos ocorreram, eles devem ser analisados, mas nós não podemos tirar, ao meu ver – acompanho isso desde a época em que fui secretário de Segurança Pública em São Paulo, e depois em um contato mais próximo, como ministro da Justiça – não podemos negar os grandes avanços que a Operação Lava-Jato e esse novo modelo de combate à corrupção criaram para o País. Eventuais abusos devem ser combatidos e, mais do que isso, devem ser entendidos, para evitar que daqui para frente eles voltem a ocorrer, sem que com isso nós acabemos por desanimar os membros do Ministério Público e magistrados a combater duramente a corrupção.

JC – O senhor é a favor da quarentena para juízes que queiram ingressar na política ou ocupar algum outro cargo fora do Poder Judiciário?
AM – Sou, não só em relação aos magistrados, mas também aos membros do Ministério Público. Digo com absoluta tranquilidade porque já defendia isso quando era promotor de justiça. O Ministério Público, assim como o Judiciário, ganhou muita força a partir de 1988. Em algumas comarcas no interior nós verificávamos – fui da Associação Paulista do MP e participei da Confederação Nacional do Ministério Público/ Conamp – nós verificávamos que membros do Ministério Público, com inquéritos civis e ações civis públicas, ganhavam uma relevância gigantesca naquelas cidades no exercício de suas funções. Não raras vezes o membro do Ministério Público, no exercício das suas ações regulares, acabava processando o prefeito por improbidade, ou iniciava uma ação civil pública na Educação ou na Saúde. Não é possível que na eleição subsequente esse membro do Ministério Público saia para disputar com esse prefeito, porque isso acaba colocando uma sombra na legitimidade da atuação anterior. Não que exista ou existisse, mas só o fato de gerar uma sombra de dúvida é muito ruim, seja para o MP ou para a magistratura. Isso me parece razoável. Se a Constituição já estabelece uma quarentena para que o magistrado ou membro do MP possa advogar onde estava atuando, também me parece correto estabelecer uma quarentena para que possa ingressar na vida política. É óbvio que não deve ser uma quarentena que impeça para sempre que ele possa participar da atividade política, mas algo que realmente proteja o Judiciário e o Ministério Público, que não deixe que pairem dúvidas sobre suas atuações.

JC – O STF tem pela frente pautas bem polêmicas, como descriminalização das drogas, legalização do aborto, desarmamento e home schooling – uma pauta bem nova. Como o senhor entende que o Supremo deva enfrentar pautas polêmicas, inclusive em relação à opinião popular?
AM – Defendo que o Supremo Tribunal Federal dê sempre prioridade às pautas mais complexas. Se a questão chegou ao STF, é ele que tem que decidir, exatamente para que não haja insegurança jurídica, mesmo que decida que aquilo é uma questão do Legislativo, mas deve decidir indicando os caminhos. As pautas complexas e os grandes temas, ficando sem decisão, acabam gerando mais insegurança jurídica e mais problemas do que quando efetivamente decididos. Você citou um dos casos, a questão da descriminalização das drogas, mais especificamente da maconha. É uma discussão que começou com o voto do Ministro Gilmar Mendes, que já teve os votos dos Ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, e que estava com vista pedida pelo Ministro Teori Zavascki. Assim que assumi, obviamente após colocar o gabinete em ordem, devolvi essa vista em 2018, corroborando o que entendo realmente. Os temas complexos devem ser julgados e devem ser solucionados. Essa função do Supremo Tribunal Federal, chamada de função contramajoritária, não significa, como alguns colocam, sempre votar com as minorias contra as maiorias. Não é isso. Significa uma competência constitucional do Supremo Tribunal Federal de moderar a maioria com a minoria. Se em uma democracia eventualmente as minorias não conseguem via Legislativo e Executivo a consagração de alguns direitos fundamentais, elas acabam indo ao Poder Judiciário e ao Supremo Tribunal Federal. O STF deve dar a resposta, você está certa ou você está errada, mas deve dar uma resposta.

JC – Gostaríamos de lhe perguntar não apenas como ministro, mas como professor de Direito Constitucional e de Direito Constitucional, sobre a pertinência da reforma administrativa. Está na hora de fazer a reforma?
AM – Entendo que temos duas reformas que sempre se discutem e que são importantes, a reforma tributária e a reforma administrativa, mas que deveriam ser precedidas de uma outra. Tivemos uma grande reforma administrativa em 1998, a Emenda Constitucional nº 19, e na verdade sabemos que toda reforma previdenciária acaba transbordando, de uma forma ou outra, para tentar uma reforma administrativa. Defendo a necessidade sim de uma nova reforma administrativa, mas antes dela e de uma reforma tributária, a “mãe de todas as reformas” seria a reforma do sistema político eleitoral brasileiro. É isso que nós precisamos. Sem ela, vamos sempre repetir uma nova reforma previdenciária, uma nova reforma administrativa, uma nova reforma tributária.

Precisamos fortalecer o sistema político, precisamos fortalecer os partidos políticos, porque a nossa democracia, construída em 1988, é uma democracia de partidos. Precisamos aproximar a vontade do representado com o representante, o que ao longo desses 33 anos foi se distanciando. Esse distanciamento faz com que o Congresso Nacional e os partidos políticos não consigam levar efetivamente à população as razões pelas quais há a necessidade de uma grande reforma tributária e administrativa, por isso ficamos sempre no meio do caminho. Se nós fortalecêssemos com uma reforma política o nosso sistema político eleitoral, aproximando mais os representantes do povo com o próprio povo, seria mais fácil convencer a sociedade da necessidade dessas outras reformas.

JC – Como poderia ser feita essa aproximação? Pelo voto distrital?
AM – Sou defensor do voto distrital misto, para as eleições nacionais, principalmente. Não necessariamente 50% a 50%, poderíamos fazer um balanceamento 60% distrital e 40% na lista fechada, ou 70% a 30%, porque o voto distrital tem várias vantagens, mas também desvantagens. Ele tira a necessidade de muito dinheiro nas eleições. Nosso sistema proporcional encarece muito as eleições, porque a candidatura de um deputado tem que correr o estado todo, não é possível isso. O voto distrital acaba aproximando mais a comunidade e, ao mesmo, acaba tornando menos custosas as eleições, mas tem a desvantagem de, às vezes, transformar apenas as discussões locais em primordiais, afastando as discussões regionais e nacionais. Por isso podemos fazer alguma ponderação, com uma lista fechada que o partido apresentaria, fortalecendo os partidos. Precisamos fortalecer os partidos, não podemos continuar tendo 30, 40 partidos. A partir do sistema distrital misto, nunca teremos, até pelas características brasileiras, dois partidos grandes como nos Estados Unidos, mas podemos chegar a seis partidos com representação no parlamento, como há na Alemanha.

Sei que há críticas à lista fechada: “se o partido vai indicar, vai indicar sempre os dirigentes partidários”. Podem indicar na primeira eleição. Na segunda, se a população não votar nessa lista, o partido vai perceber que precisa se oxigenar, mas é importante criar lideranças partidárias e ao mesmo tempo aproximar, no distrito, o eleitor dos candidatos. Esse sistema distrital misto seria um avanço. Não há em nenhum lugar do mundo um sistema político eleitoral perfeito, todos os países reclamam que querem mudar. Nós não podemos afirmar qual dará certo no Brasil, mas podemos afirmar que o atual não vem dando certo. Não conseguimos ainda resolver um grande problema que é o financiamento das eleições. O voto distrital misto com lista fechada pelo menos diminuiria muito o custo das nossas eleições.

JC – Pelo rodízio que acontece no TSE, o senhor provavelmente será o próximo presidente após o mandato do Ministro Luiz Edson Fachin, em agosto do ano que vem. Como o senhor enxerga o desafio de comandar as próximas eleições do Brasil, uma das maiores democracias do mundo?
AM – Essa questão é muito importante. Temos no Brasil uma democracia consolidada e um sistema eleitoral extremamente eficiente. Somos a terceira ou quarta maior democracia do mundo em número de votos, mas é a única democracia de massas, digamos assim, cujo resultado das eleições saem no mesmo dia sem nenhuma possibilidade de contestação séria, razoável. Não há, desde o início das urnas eletrônicas, nenhuma comprovação de fraude,  exatamente porque todos os cuidados são tomados, a partir da própria atuação do TSE, independentemente daquele que no momento está ou não na presidência.

As eleições de 2020 já findaram sob a presidência do Ministro Luís Roberto Barroso, tendo o Ministro Luiz Edson Fachin como vice e eu como terceiro componente do Supremo Tribunal Federal no TSE. A partir desse ano, já estamos atuando em conjunto para preparar as eleições do ano que vem, para verificar o que pode ser melhorado, pois sempre há a possibilidade de melhorias, inclusive a melhoria não da transparência da eleição, mas da comunicação sobre essa transparência. Se há pessoas que ainda têm dúvidas, vamos esclarecer essas dúvidas, porque temos todos os dados para demonstrar a transparência, lisura e seriedade das eleições.

Devo assumir em 18 de agosto do ano que vem, mas desde agora, junto ao Ministro Barroso e ao Ministro Fachin, que assumirá no final de fevereiro de 2022, estamos trabalhando para manter exatamente essa tradição no Tribunal Superior Eleitoral, visando que as eleições reflitam sempre 100% da vontade do eleitorado nacional.

JC – São inevitáveis as comparações com as eleições dos EUA e o temor de que possamos ter problemas como os que ocorreram por lá, onde o questionamento do resultado eleitoral teve graves consequências. O que o senhor teria a comentar a esse respeito? Será necessário reafirmar a segurança do nosso sistema eleitoral e das urnas eletrônicas?
AM – Não há e nunca houve nenhuma suspeita de fraude, nenhuma fraude. Agora, é obrigação da Justiça Eleitoral sempre se comunicar da melhor maneira possível. Podemos sempre aperfeiçoar a comunicação, levando informações à população, ou àquela parcela da população que ainda tenha dúvidas. Mesmo que essas dúvidas sejam infundadas, mesmo que sejam plantadas por notícias fraudulentas, as famosas fake news, é obrigação da Justiça Eleitoral esclarecer todas para garantir que não há a mínima possibilidade de fraudes. Desde a instalação das urnas eletrônicas, a Justiça Eleitoral vem demonstrando que 100% da vontade nacional é refletida nas urnas.

Fui promotor de justiça em São Paulo, todos sabem, e fui promotor eleitoral nas eleições municipais de 1992, em Aguaí, uma comarca pequena no interior de São Paulo, quando ainda não havia urnas eletrônicas. Nós verificávamos não só em Aguaí, mas em todo o País, a tentativa de fraude nas urnas em papel. Ou seja, historicamente o Brasil soube corrigir dois erros, primeiro a existência de fraudes no papel e segundo a demora para que os resultados fossem proclamados. Temos é que cada vez mais comunicar isso, mostrar à sociedade, que em sua maioria já confia nas urnas eletrônicas, que se pode confiar tranquilamente. Teremos eleições com urnas eletrônicas, teremos a proclamação do vitorioso e, tenho certeza, as instituições brasileiras garantirão a segurança das eleições e do resultado delas.

JC – O senhor acha factível a possibilidade do voto impresso ou, caminhando em outra direção, por meios eletrônicos, usando smartphones, por exemplo?
AM – Essa é uma questão importantíssima. Não há na Constituição a previsão do voto ser por urna eletrônica ou no papel. O que há na Constituição, expressamente como cláusula pétrea, é que o voto deve ser sigiloso. A liberdade do voto, a liberdade do eleitor poder escolher seus candidatos sem pressões, sejam anteriores ao pleito eleitoral, durante ou mesmo depois, essa garantia se dá pelo sigilo do voto. O que não é possível é um modelo híbrido que atente contra o sigilo. Exatamente por isso, já em duas oportunidades, o STF declarou inconstitucionais alterações legislativas que ao estipularem um sistema híbrido, de urnas eletrônicas com voto impresso, acabariam permitindo uma quebra de sigilo. Isso é muito perigoso.

Não é possível arriscar o sigilo do voto, porque só o sigilo dá a liberdade. Consequentemente, essa resposta vale para sua segunda indagação. Não vejo no momento nenhuma possibilidade de voto por smartphone ou voto à distância, exatamente porque isso pode quebrar o sigilo do voto. Nós não controlaríamos de onde a pessoa está votando, se está votando ameaçada por alguém, em currais eleitorais em que possa ter problemas ao expor sua vontade política. O ideal é aprimorar o que temos, o que está dando certo, as pessoas se dirigirem às seções eleitorais para depositarem seus votos nas urnas eletrônicas.

JC – Ministro, estamos caminhando para o final da entrevista e desde já agradecemos por toda atenção conosco. O senhor tem um gabinete muito elogiado, dos que têm maior produtividade no STF. Qual é o segredo?
AM – Isso é algo que me dá extrema satisfação. Quando assumi no Supremo, meu gabinete tinha sete mil processos. Dos dez gabinetes, porque o presidente não recebe a distribuição normal, era o nono gabinete em termos de número de processos. Após um ano e oito meses, meu gabinete passou a ser o que tem menor número de processos. Hoje, dos sete mil, tenho cerca de 700 processos, mesmo recebendo um volume enorme durante esses quatro anos, que vou completar esse mês no STF. O segredo, na verdade, é organização e participação. Efetivamente, participo ativamente. Meu nome foi aprovado pelo Senado no dia 22 de fevereiro de 2017 e nomeado no mesmo dia pelo presidente. Entrei em contato com o gabinete do saudoso Ministro Teori Zavascki e pedi todos os números e a relação de todas as ações diretas, se possível com um resumo. Nas quatro semanas que esperei para tomar posse, já organizei por assuntos e por núcleos, exatamente para dar tratamento diferenciado a cada um deles, ao núcleo penal, ao núcleo de habeas corpus, ao núcleo concentrado, etc. Com essa participação e, obviamente, com o auxílio da equipe – ninguém trabalha sozinho, você organiza, participa e incentiva a equipe – tenho realmente a satisfação de verificar que no gabinete as coisas funcionam muito bem. Para se ter uma ideia, quase 89% dos processos do gabinete são dos últimos três anos. Há um residual dos anos anteriores, e também trabalho com isso, a prioridade para os processos mais antigos, para que possamos dar uma resposta para a sociedade. É organização, participação e uma equipe boa que vestiu a camisa.