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Delação premiada e barganha causam polêmica no mundo jurídico

11 de janeiro de 2013

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A delação premiada faz parte de uma nova política de combate à criminalidade no país, fazendo com que se crie o estímulo ao arrependimento daqueles que já se envolveram na prática de algum crime. Surgida principalmente para combater a criminalidade organizada, a delação passa a ter maior relevância e abrangência no novo Código Penal, já aprovado no Senado, com a utilização para outras modalidades delitivas.

A delação premiada é uma espécie de barganha entre um juiz e um réu. O réu conta tudo o que sabe e o juiz, em troca, dá um “alívio” na sua pena. Isto é, para diminuir o tempo que ficaria preso, um criminoso delata os cúmplices e dá detalhes do funcionamento da quadrilha. Esse tipo de acordo com a Justiça é considerado uma espécie de “prêmio” para o réu. No Brasil, a delação premiada existe desde 1999 e já foi aplicada em cerca de três mil casos.

Dependendo do tipo de participação do réu no crime, ao fazer um acordo para a delação premiada, o juiz pode permitir que ele cumpra a pena em liberdade ou em regime semiaberto. Se o crime não for muito grave, o magistrado pode até determinar a extinção da pena, ou seja, se a informação que ele der for muito importante, poderá até sair livre. Essa possibilidade, embora exista na lei, ainda não havia sido usada no Brasil até o final de 2007. Dos criminosos que decidiram entregar os companheiros de crime, nenhum ganhou a liberdade total, apenas a redução do tempo que ficaria na cadeia.

A delação premiada ganhou repercussão na mídia nos últimos meses, principalmente em função de Marcos Valério, ex-sócio proprietário das empresas de publicidade DNA e SMP&B – articuladoras de campanhas de políticos do PSDB e PT –, ter proposto, mesmo que tardiamente, o instituto da delação premiada em troca da redução da pena de 40 anos a que foi condenado; e ainda da possibilidade de Paulo Rodrigues Vieira, ex-diretor da Agência Nacional de Águas (ANA), apontado pela Polícia Federal como chefe da máfia dos pareceres, negociar uma delação premiada com o Ministério Público. Outro exemplo é o do réu “Macarrão”, no processo do goleiro Bruno, ex-Flamengo, que trata do possível assassinato e da ocultação do cadáver de Elisa Samúdio. O advogado de “Macarrão” teria proposto também a delação premiada em troca da redução da pena de seu cliente.

No entanto, a delação premiada vem sendo severamente criticada. Sob o ponto de vista sócio-psicológico, juristas afirmam que ela é considerada imoral ou, no mínimo, aética, pois estimula a traição, comportamento insuportável para os padrões morais modernos, seja dos homens de bem, seja dos mais vis criminosos. Sob o aspecto jurídico, indiretamente rompe com o princípio da proporcionalidade da pena, já que se punirá com penas diferentes pessoas envolvidas no mesmo fato e com idênticos graus de culpabilidade.
Para tentar esclarecer esses pontos polêmicos e ainda pouco compreendidos do novo Código Penal, que deverá entrar em vigor em meados de 2013, um dos elaboradores do novo Código, o desembargador do TJRJ, José Muñoz Pinheiro Filho, fala sobre o assunto:

“O que podemos dizer, a princípio, com relação às críticas que o novo Código Penal vem sofrendo, entre outros assuntos, contra a delação premiada e a barganha, é que estas não seriam éticas. Esse fato, de ser ética ou não, ultrapassa a fronteira da lei e passa a ser, enfim, da própria aplicação, se a sociedade aceita ou não. Mas por quê a legislação no Brasil admite a delação premiada? Não para premiar um agente do crime, mas para auxiliar na punição de alguém que praticou um crime, principalmente quando se quer obter o resgate, a liberdade, de alguém sequestrado, a liberação de alguma quantia desviada do erário. Nesses casos, a delação premiada se transforma em um benefício para a sociedade.

Essa matéria no Brasil é regulada não no Código Penal, mas, genericamente, em leis extravagantes, especialmente as que envolvem crimes de colarinho branco, lavagem de dinheiro, crimes em bando. Nós, membros da comissão de juristas presidida pelo Ministro Gilson Dipp para elaboração do novo Código Penal, projetamos alguma coisa que envolve barganha, que chamamos de delação premiada, mas que o projeto chama de colaborador com a justiça.

Desde já, temos que fazer uma distinção, porque o projeto trata no artigo 105 da barganha, matéria que estamos inserindo no Código Penal. Tratamos primeiro da barganha e, em segundo lugar, o que vulgarmente chama-se de delação premiada, mas que nós preferimos chamar institucionalmente de colaboração de pessoa envolvida. A diferença entre elas é que na barganha, apenas aquela pessoa que, em tese, praticou um crime e admite a sua prática, mesmo que parcialmente, poderá ter esse benefício. Então, envolve somente ela. Na chamada delação premiada essa pessoa vai ser beneficiada por que está delatando corréus, ou seja, está envolvendo outras pessoas relacionadas com o crime.

O questionamento que se faz com relação à barganha é porque esta impede, de certa maneira, como está projetado, o contraditório judicial. E por quê? Por que, na verdade, não haverá processo. O projeto foi aberto, qualquer suspeito antes de ser denunciado pelo Ministério Público, desde que com a presença de seu advogado e do promotor da causa, pode barganhar e barganha é contrato, um acordo de vontades, em que o Ministério Público, ao invés de oferecer a denúncia, propõe: ‘você confessa total ou parcialmente o seu crime e será beneficiado por isso’.

Porém, que fique bem claro, tem que ser uma confissão voluntária, não pode ser sob coação. Ela tem que ser real, sem mentiras, ou que, de alguma forma, tente confundir a justiça em causa própria, e, não podemos esquecer, pode ser de qualquer crime: homicídio, sequestro, tráfico de entorpecente, lesão corporal, etc. O projeto está muito aberto e eu acredito que o próprio Congresso venha a restringir alguma coisa. É provável que essa seja a primeira polêmica provocada: a barganha deve valer apenas para alguns crimes ou para quaisquer crimes?

E qual é a vantagem para o réu? Confessando antes da acusação, como está no artigo 105, ele primeiro negocia a pena no mínimo legal. Isso, independente de ter agravante, de ter uma causa especial. Em segundo lugar, pode negociar o regime, e esse ponto certamente será muito polêmico na discussão. Por quê? Por que o regime fechado é mais rigoroso. Uma pessoa que confessa para ter um benefício em um homicídio, um sequestro, ou até um latrocínio, não vai ficar em regime fechado? Essa pode ser uma questão polêmica. Em contraponto, está se tendo a vantagem daquela pessoa confessar quando não se sabe ainda que ela é a autora. Aliás, isso é importante, só vale a barganha quando não há ainda a prova formada. Em terceiro lugar, cabe a substituição da pena. Então, a barganha como está no projeto é para o réu que, com seu advogado, negocia, ajusta com o promotor um acordo. Este não oferece a denúncia e propõe pena mínima para o crime praticado, que poderá ser em regime aberto ou semiaberto e, ainda, sofrer uma redução na pena ou até a sua substituição.

Já a delação premiada é quando alguém colaborar em um crime envolvendo outras pessoas. Nesse caso, a colaboração tem que ser homologada, o que na barganha não é preciso. A delação premiada pode ser em qualquer momento do processo, a exemplo do ‘Macarrão’ no Caso Bruno. Pode ser na fase do inquérito, durante a instrução criminal ou até já em fase de recurso. Nesse caso, o réu pode ser beneficiado com a extinção da punibilidade, se ele for primário, e, caso não seja, com a redução de pena em até dois terços. E quais são as condições para esses benefícios? Primeiro, a delação tem que ser feita no curso do processo e não depois, já na condenação final, como o Marcos Valério tentou. Em segundo lugar, ele tem que admitir o fato, tem que indicar os autores, co-autores, partícipes, e mais, tem que ser com relação a pessoas que nem a Polícia sabia que estavam envolvidas. No entanto, que fique bem claro, ninguém vai ser condenado somente porque alguém denunciou, sua denúncia será investigada, e terá que se provar o que foi dito, cabendo ao juiz a decisão final. Ninguém poderá ser condenado por mera delação de terceiros. Muitos advogados, promotores, juízes têm um pouco de receio da chamada barganha, da delação premiada. No caso da barganha, aqui é um pouco diferente dos Estados Unidos, porque lá a promotoria pode barganhar.

Essa é a grande polêmica, se a barganha não fere o devido processo legal, que é uma garantia constitucional, porque a pessoa será condenada sem responder a processo, ou seja, sem ter feito uma prova em seu favor, ou o juiz
tê-la ouvido. Funciona lá, mas será que irá funcionar aqui? E a outra polêmica é se se deve valorar a acusação de um réu em relação a outros, que sequer eram conhecidos num contexto de uma investigação. Nesse ponto eu não vejo qualquer óbice em matéria constitucional. Se um ladrão, um assassino, um sequestrador, com baixos valores morais, delata outros, isso é um problema inerente à própria criminalidade, o que a sociedade deseja é apenas o esclarecimento do fato”.

Especialista em Ciências Penais pela FESMP – MG, professor de legislação criminal especial e de direito processual penal, além de promotor da Justiça Militar da União em São Paulo, Renato Brasileiro de Lima, aborda esse assunto em seu  livro Curso de Processo Penal, publicado pela Editora Ímpetus.

“Desde tempos mais remotos, a História é rica em apontar a traição entre os seres humanos: Judas Iscariotes vendeu Cristo pelas célebres 30 (trinta) moedas; Joaquim Silvério dos Reis denunciou Tiradentes, levando-o à forca; Calabar delatou os brasileiros, entregando-os aos holandeses. Com o passar dos anos, e o incremento da criminalidade, os ordenamentos jurídicos passaram a prever a possibilidade de se premiar essa colaboração. Daí a importância do estudo da colaboração premiada.

Espécie do direito premial, a colaboração premiada pode ser conceituada no ordenamento pátrio como uma técnica especial de investigação por meio da qual se concede ao participante e/ou co-autor de ato criminoso a possibilidade de não ser processado, de ter sua pena reduzida, substituída por restritiva de direitos, ou até mesmo extinta, caso venha a colaborar com as autoridades, permitindo, a depender da conduta delituosa, o desmantelamento do bando ou quadrilha, a descoberta de toda a trama delituosa, a localização do produto do crime, ou, ainda, a facilitação da libertação do sequestrado.

Há quem utilize as expressões colaboração premiada e delação premiada como sinônimas. Outros doutrinadores, todavia, preferem trabalhar com a distinção entre delação premiada e colaboração premiada, considerando-as institutos diversos. Nessa linha, segundo Luiz Flávio Gomes, delação premiada e colaboração à justiça não são expressões sinônimas, sendo esta última dotada de mais larga abrangência. O imputado, no curso da persecutio criminis, pode assumir a culpa sem incriminar terceiros, fornecendo, por exemplo, informações acerca da localização do produto do crime, caso em que é tido como mero colaborador. Pode, de outro lado, assumir culpa (confessar) e delatar outras pessoas – nessa hipótese é que se fala em delação premiada (ou chamamento de corréu). Só há falar em delação se o investigado ou acusado também confessa a autoria da infração penal. Do contrário, se a nega, imputando-a a terceiro, tem-se simples testemunho. A colaboração premiada funciona, portanto, como o gênero, do qual a delação premiada seria espécie.

É bem verdade que a referência à expressão delação premiada é muito mais comum na doutrina e na jurisprudência. No entanto, preferimos fazer uso da denominação colaboração premiada, quer pela carga simbólica carregada de preconceitos inerentes à delação premiada, quer pela incapacidade de descrever toda a extensão do instituto, que nem sempre se limita à mera delatio. Com efeito, a chamada “delação premiada” (ou chamamento de corréu) é apenas uma das formas de colaboração que o agente revelador pode concretizar em proveito da persecução penal.

Sob o ponto de vista da ética e da moral, parte da doutrina posiciona-se contrariamente à colaboração (ou delação) premiada. Nessa linha, segundo Natália Oliveira de Carvalho, ao preconizar que a tomada de uma postura infame (trair) pode ser vantajosa para quem o pratica, o Estado premia a falta de caráter do codelinquente, convertendo-se em autêntico incentivador de antivalores ínsitos à ordem social.

A nosso juízo, não há falar em violação à ética, nem tampouco à moral. Apesar de se tratar de uma modalidade de traição institucionalizada, trata-se de instituto de capital importância no combate à criminalidade, além de beneficiar o acusado colaborador. De mais a mais, falar-se em ética de criminosos é algo extremamente contraditório, sobretudo se considerarmos que tais grupos, à margem da sociedade, não só têm valores próprios, como também desenvolvem suas próprias leis. Como lembra Cassio Granzinoli, ‘não é incomum a chefes de grupos de tráfico de drogas, por exemplo, determinarem (por vezes e por telefone e de dentro dos próprios presídios onde cumprem penas) a execução de outros membros do grupo ou mesmo de pessoas de bem. Estarão eles, pois, preocupados com Ética, Moral, Religião e qualquer outra forma de controle social, diversa do Direito (uma vez que este prevê maior coerção para os atos que lhe são contrários)? Certamente que não’.

Apesar de, sob certo aspecto, a existência da colaboração premiada representar o reconhecimento, por parte do Estado, de sua incapacidade de solucionar sponte própria todos os delitos praticados, a doutrina aponta razões de ordem prática que justificam a adoção de tais mecanismos, a saber: a) a impossibilidade de se obter outras provas, em virtude da ‘lei do silêncio’ que vige no seio das organizações criminosas; b) a oportunidade de se romper o caráter coeso das organizações criminosas (quebra da affectio societatis), criando uma desagregação da solidariedade interna em face da possibilidade da colaboração premiada.

Essas formas de colaboração processual são plenamente compatíveis com o princípio do nemo tenetur se detegere. É fato que os benefícios legais oferecidos ao colaborador servem como estímulo para sua colaboração, que comporta, quase sempre, a autoincriminação. Porém, desde que não haja nenhuma espécie de coação para obrigá-lo a cooperar, com prévia advertência quanto ao direito ao silêncio (CF, art. 5o, LXIII), não há violação ao direito de não produzir prova contra si mesmo. Nessas condições, cabe ao acusado decidir, livre e preferencialmente assistido pela Defesa técnica, se colabora ou não”.

Referências bibliográficas

Aranha, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 136. Ao tratar da acusação do cúmplice, Malatesta a subdividiu em duas espécies: a acusação em sentido específico, referente à situação em que o comparsa delatado já figura como imputado nos autos do processo, e o chamamento de cúmplice, caracterizado pela indicação deste último unicamente pela palavra do acusado (MALATESTA, Nicola Framarino dei. A lógica das provas em matéria criminal. Campinas: LZN Editora, 2003, p. 532).

GOMES, Luiz Flávio. Corrupção política e delação premiada. In: Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, ano VI, n. 34, Porto Alegre, out.-nov./2005, p. 18.

Há quem defenda ser a chamada de corréu o ato pelo qual um comparsa denuncia antigos parceiros sem que, para isso, lhe dê o legislador recompensa legal, ou seja, seria a delação não-premiada.

Para o STJ, o instituto da delação premiada consiste em ato do acusado que, admitindo a participação no delito, fornece às autoridades elementos capazes de facilitar a resolução do crime: STJ, 6ª Turma, HC 107.916/RJ, Rel. Min. Og Fernandes, j. 07/10/2008, DJe 20/10/2008.

Nesse sentido: ARAS, Vladimir. Lavagem de dinheiro: prevenção e controle penal. Organizadora: Carla Veríssimo de Carli. Porto Alegre: Editora Verbo Jurídico, 2011. p. 428.

CARVALHO, Natália Oliveira. A delação premiada no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 101.

GRANZINOLI, Cassio M. M. A delação premiada. In Lavagem de dinheiro: comentários à lei pelos juízes das varas especializadas em homenagem ao Ministro Gilson Dipp. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007. p. 152.
Com o mesmo entendimento: QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal). São Paulo: Saraiva, 2003. p. 215