De olhos bem abertos

5 de fevereiro de 2004

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O País precisa despertar para as práticas anti-éticas das empresas internacionais e refletir os direitos dos seus investidores.

O Brasil é um dos países mais sedutores para se investir no planeta. Além de ser o 5º maior mercado mundial, não é alvo de terrorismo –  e seguramente nunca será pelo equilíbrio da sua política internacional – está construindo uma sólida democracia e oferece aquilo que o capital mais necessita e exige,   rentabilidade e segurança. Contudo, seus parceiros no universo dos negócios nem sempre oferecem as justas contrapartidas pelos resultados que aqui vêm colhendo ao longo do tempo.

O caso dos Estados Unidos é emblemático. Nos idos da Guerra Fria, a economia americana era oito vezes maior que a brasileira, mas quase nada foi oferecido como resultado do apoio assegurado no incruento  confronto com o bloco soviético. Isto em larga medida contribuiu para que hoje o PIB americano seja duas dezenas de vezes maior que o brasileiro. Política à parte, o ambiente às empresas americanas sempre foi dos mais receptivos e, quem dúvida tiver, basta ler A industrialização de São Paulo, do brasilianista Warren Dean. Talvez, por ter uma burguesia formada por imigrantes aqui o capital internacional foi recebido sempre como aliado do desenvolvimento, nunca como inimigo.

As raízes do conflitos

Acontece que a globalização vem golpeando duramente a qualidade do relacionamento do capital internacional – alguns preferem estrangeiro – com as empresas brasileiras. Todos sabem que a Alca, sigla em português para a Área de Livre Comércio das Américas, vai determinar, em larga medida, o futuro e o lugar que o Brasil ocupará no mundo. Mas a pergunta sem resposta é: qual o lugar onde ficarão os americanos? A elite americana trabalha pela hegemonia há mais de dois séculos. Em 1835, o Brasil disputava lado a lado na atração de capitais europeus. Brasil e Estados Unidos eram o novo mundo. Perdemos a corrida. Por que? Os americanos souberam esgrimir melhor suas qualidades e pensaram estratégicamente. O Brasil foi acusado de ser um mero país de escravos, produtor de açúcar e algodão, sem capacidade de desenvolver tecnologia, e ficou calado. O preço tem sido caro. A história se repetirá?

Na teoria, não haverá barreiras na Alca, este mercado que reunirá 700 milhões de consumidores e vai produzir  riquezas estimadas em 12 trilhões de dólares. De qualquer ângulo que se olhe, as perspectivas de igualdade não são nada promissoras. E não é porque os Estados Unidos exibem um PIB de 10 trilhões de dólares, superior à soma dos PIBs do Japão, Alemanha e França. Nem porque três em cada dez patentes do globo são de sua propriedade. Ou porque aos americanos pertencem a metade dos satélites que radiografam o mundo diariamente

A razão dos temores é de outra natureza. Os americanos cada vez mais se tornam nacionalistas e exigem que seus parceiros trilhem o caminho do liberalismo. Quando Abraham Lincoln foi reeleito, em 1864, Karl Marx, o pai do socialismo, teve o cuidado de enviar-lhe felicitações em nome da Associação Internacional de Trabalhadores. Charles Francis Adams, então ministro de Estado, respondeu ao autor de “O Capital” dizendo que os Estados Unidos jamais seriam uma nação “reacionária” e se “absteria de toda a propaganda e intervenção internacional” no exterior. E explicava que a política americana seria lastreada no respeito aos direitos humanos e ao bem comum, alicerces dos seus ideais e do desejo de conquistar o apoio e o respeito dos “cidadãos do mundo inteiro”. O governo Bush coloca as coisas em outros termos: ou se é contra, ou se é a favor dos Eua.

O risco das práticas anti-éticas

Esta postura que reforça um nacionalismo retórico e cada vez mais pragmático, reflete, obviamente, no relacionamento entre empresas. São emblemáticos, por exemplo,  os conflitos societários que envolvem a Coca Cola e Dolly, Clorox e Petroplus-STP, nos quais o recurso ao poder econômico é um traço comum. Pode-se argumentar que problemas dessa natureza hoje estão se tornando freqüentes  extrapolam a órbita dos Estados Unidos.

Nesse sentido os dramas societários que envolvem os Cranhoti e Bombril, Parmalat e nossos produtores de leite, são emblemáticos de uma realidade muito mais vasta e complexa. Numa visão de aparência, sim. Num enfoque mais político e sob a ótica do jogo de forças internacionais, a realidade é totalmente diversa. Se nos aprofundarmos nos detalhes e nos conjuntos de fatos que se identificam em cada uma das histórias e das experiências comumente vividas, sem muito esforço, encontraremos perfeita e indiscutível identidade nos métodos e estratégias implantadas pelo poderio econômico do capital estrangeiro versus capital nacional.

O que muda é o tom – leia-se a brutalidade – do processo. Aniquilar sócio ou mesmo concorrente, praticar atos abusivos e predatórios no mercado em busca de liderança e domínio, infelizmente, passou a fazer parte do vocabulário e dos manuais não escritos de procedimento das empresas do chamado primeiro mundo. A corrupção e os escândalos envolvendo companhias internacionais, hoje, disputam espaço na imprensa internacional e na nacional, modelando uma surpreendente rotina a rivalizar com o que existe de mais absurdo no ambiente das tradicionais páginas policiais.

Como empresário, sempre me questionei sobre a administração do inevitável conflito de culturas e de hábitos no relacionamento entre as partes de associações internacionais. Mas nunca imaginei que o maior risco estaria circunscrito à questão da ética e da moral, cujos limites são tênues, mas decisivos para o êxito dos negócios. A Revolução Industrial inglesa foi feita às custas de empreendedores éticos. A revolução americana também. Thomas Jefferson, o patriarca da sua independência, cultivava o sonho de ter nos Estados Unidos uma nação universalista e não uma arrogante república comercial.

Repensando o presente

É sob esse aspecto que o relacionamento com os Estados Unidos precisa ser repensado, justamente por ser a nação que determinará o maior ou menor grau de progresso no continente. Sobretudo a partir da Alca. Não é prudente reeditar na política de globalização os mesmos erros do processo de estatização, que primou pela ansiedade de imitar países, como a Inglaterra e agora, estamos tendo que encarar a face deprimida da consequência. Nesse exercício de reflexão, a justiça brasileira tende a desempenhar um papel decisivo.  E a se defrontar com uma pletora de indagações essenciais para a soberania do país.

Por exemplo, seriam as cortes privadas internacionais, tema de intensa propaganda, de fato tribunais imparciais e transparentes que se caracterizam pela rapidez e proteção da imagem das partes em conflito? Ou seriam quase  armadilhas para empreendedores internacionalmente inexperientes que desconhecem o alcance e a influência dos seus sócios poderosos?  Se a corrupção serve de pálio para algumas das mais ricas empresas americanas – leia-se também as européias – prejudicando seus acionistas e seus próprios governos por que  tribunais privados internacionais estariam imunes a estas práticas que falam apenas a linguagem do lucro fácil e imediato?

São temas a refletir. Temas que, aliás, fazem parte do temário cotidiano da mídia européia. Na França, epicentro de veemente questionamento das condições em que a globalização ganha forma, os interesses dos capitais locais estão acima de qualquer prioridade. Ao se posicionarem contra a invasão do Iraque, os franceses não só evitaram uma guerra interna dado ao grande número de muçulmanos que vive no país, como também estavam pensando nos grandes Mercados do Oriente, herança do passado colonial. Por toda parte, o liberalismo perde terreno justamente porque se tornou uma ideologia de fachada, de uma única mão para quem tem maior estatura econômica.

Em outras palavras, trata-se de um neoconservacionismo. Um retorno ao mercantilismo do século XVIII que tem assestado duros golpes a economias periféricas. O Brasil, desde 1996, homologa sentenças internacionais apenas observando as questões regulamentares sem avaliação de seu mérito. Não seria tal prática uma fonte de equívocos e mesmo de injustiças que ferem o direito da cidadania e ameaça o investidor brasileiro? Não se trata de advogar um retorno ao nacionalismo atávico dos idos do populismo. Mas, de questionar se não estamos caminhando em terreno minado, sem a devida proteção. Sem dúvida, o Governo Lula está atento a tais nuanças. Sem dúvida, no âmbito do Judiciário, o desafio é levar à prática uma reforma que torne a Justiça mais ágil e mais sintonizada com a atualidade dos grandes impasses de uma economia, que se internacionaliza a partir de uma base sem vivência cosmopolita. Assim, é que poderemos evoluir e colher o que estamos semeando com nossa inquestionável capacidade realizadora e riquezas naturais.