Da Súmula à Súmula Vinculante

31 de maio de 2009

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Em 1963, há 45 anos, o Supremo Tribunal Federal  julgava 3.500 processos; em 2007, centenas de milhares de processos. Naquela época, já pretendia o encontro de solução para o excesso de processos, na chamada crise do Supremo Tribunal Federal, na verdade, crise do recurso extraordinário; porque, naquele tempo, todas as questões poderiam subir ao STF. Em 1957, houve uma comissão de reforma constitucional, e o tema foi aflorado. Houve uma sugestão drástica para a subida do recurso extraordinário. Outros mecanismos foram criados, na linha defensiva, com conteúdo restrito (prequestionamento, revisão de provas, reexame de cláusula contratual, etc.). Nada limitava o acesso. Estabeleceu-se, então, a ideia de corporificação de linhas de pensamento ou solução em verbetes (ou enunciados) daqueles temas mais comuns, principalmente dos procedimentais. A ideia partiu do ministro Victor Nunes Leal, com o apoio decisivo de outros ministros, dentre eles, Gonçalves de Oliveira, Pedro Chaves e Evandro Lins e Silva. Uma parte, dentre os ministros mais antigos, resistia ao estabelecimento desses enunciados, alguns com aviso de não aplicação dos mesmos. Prevaleceu, então, a edição de verbetes, chamados de Súmulas da Jurisprudência Predominante, e assim surgiu a Súmula do STF, em 1963. O maior número concentrou-se nas regras procedimentais do recurso extraordinário (nº 279 – reexame de prova; nº 282 – prequestionamento; nº 288 – traslado completo).
A súmula era um instrumento de orientação sobre determinado tema. Não se petrificava. Não era imutável, tanto que algumas foram alteradas (e até revogadas pelo STF) (ex. Súmula 152 – alterada pela 494; 388 – cancelada por interpretação, depois restabelecida por força de lei). O passo decisivo na importância da súmula não está no seu momento de elaboração, e sim no futuro, na aplicação, na alteração, no cancelamento. Se os julgadores não a seguem, de nada vale. Se o legislador altera a norma supedânea do texto, ela será alterada ou cancelada. Sem dúvida, ela é grande material de pacificação, ainda que haja discordância do seu texto, como ocorre com a Súmula 400 (razoável interpretação); tão criticada, mas com defensores.
A ideia da súmula consolidou-se, e nesses 45 anos os tribunais superiores e os demais tribunais editam suas súmulas, mesmo porque o acesso à jurisprudência ainda é precário.
No Brasil, a informação da jurisprudência, isto é, o acesso aos julgados, tem sido prestigiado pelas revistas especializadas, que, naturalmente, editam os acórdãos com atraso.
No século XIX e início do XX, a grande difusão foi feita pela Revista “Direito”, de J. J. do Monte. Com o surgimento da “Revista do Supremo Tribunal Federal”, na década de 20, surgiu novo alento nessa informação. Entretanto, essa revista, de edição privada, tornou-se um escândalo, porque a editora foi acusada de receber benefícios fiscais para importação de todo o material (papel, tintas de impressão etc.), e desviar essa finalidade em projetos próprios da editora. Morreu. Surgiu, em 1957, a “Revista Trimestral de Jurisprudência”, editada até hoje pelo próprio Supremo Tribunal Federal. Ao lado, de grande importância e de notáveis contribuições, a “Revista Forense” (desde 1904) e a “Revista dos Tribunais” (desde 1912). É claro que o 1º Regimento Interno do STF (1891) já determinava a publicação de suas decisões no “Diário Oficial” (art. 128, § 19).
Atribui-se, portanto, à escassez de informações a dificuldade na divulgação das decisões dos tribunais, e, muitas vezes, a divergência entre julgados sobre a mesma tese, e, às vezes, sobre os mesmos fatos. Acreditamos que o mundo informático melhorou essa difusão, e o acesso é expressivo nos mais longínquos rincões.
A Constituição de 1891 impunha à Justiça Federal e à Estadual a consulta à jurisprudência dos tribunais, para a aplicação do direito respectivo (federal ou estadual) (art. 59, III, § 2º).
Como observou Castro Nunes, a inobservância da jurisprudência do Supremo Tribunal (que era a segunda instância federal) levava ao recurso extraordinário para corrigir esse desrespeito, e tinha como objetivo a uniformização da jurisprudência na aplicação do Direito federal (“Teoria e Prática do Poder Judiciário”, 1943, p. 539).
No processo normativo há a produção da norma e a sua aplicação. São duas atitudes diferentes, porque, ainda que seja importante a relação entre essas duas funções, a primeira surge da técnica legislativa, dentro do processo legislativo, que, além de longo capítulo constitucional, ainda depende de regras internas de elaboração das normas (por exemplo, o manual de redação); a segunda etapa é a da aplicação da norma pelo jurista, especialmente pelo juiz. Este estará diante do dilema ontológico: ser apenas receptor passivo ou, então, integrante da elaboração do direito? O art. 5º da Lei de Introdução não abandona o magistrado, e o ampara, numa colaboração na aplicação do Direito, porque ele se socorrerá dos fins sociais da lei e das exigências do bem comum (Tércio Sampaio Ferraz Jr., “Direito, Retórica e Comunicação”, 2. ed., Saraiva, 1997, p. 68).
Veremos, adiante, as várias etapas do processo decisório judicial e a importante função dos julgados anteriores — que têm várias denominações, como acórdão, precedente, jurisprudência, súmula e direito sumular.
Que é acórdão? É a concentração de um julgado. É a forma material da expressão da decisão judicial.
Que é o precedente? É uma decisão anterior persuasiva para decisões futuras. Não é compulsória; apenas norteará o futuro julgador a seguir aquela decisão. Serve de informação, de simplificação de trabalho. Não é obrigatório.
Que é a jurisprudência? Significa mais do que o precedente. Pode, até, ser formada com um precedente. Se o Supremo Tribunal, em sessão plenária, ou o Superior Tribunal de Justiça, em sessão da Corte Especial, decidem num julgamento, em um processo sobre determinada tese, ali estará a jurisprudência. É claro que o prestígio dessa jurisprudência será maior com a ratificação de outros julgados. Não sendo julgamento de órgão plenário, somente pode entender-se a jurisprudência com a consolidação de julgados reiterados.
Que é a súmula? Esta reflete a jurisprudência de um tribunal ou de uma seção especializada autorizada a emitir a consolidação (v. voto do Min. Carlos Mário Velloso sobre conceito de súmula, na ADIn 594 (RTJ 151/20).
Que é direito sumular? É o reflexo do Direito emanado de súmulas de um tribunal.
Concluímos, então, que não importa o nome quando o tribunal fixa entendimento e diretriz. É a chamada força vinculante da decisão, pouco importa o nome — orientação precedente, jurisprudência, súmula. Como afirma Calmon de Passos — seja o que for, obriga (“Revista do TRF da 1ª Região”, v. 9, n. 1, p. 163), porque repugnam decisões diversas, baseadas em interpretações diversas, sobre a mesma regra jurídica. Como observa a ministra Ellen Gracie Northfleet, a maioria das questões trazidas ao foro, especialmente ao foro federal, são causas repetitivas, e, embora diversas as partes e seus patronos, a lide jurídica é sempre a mesma (“Ainda sobre o efeito vinculante”, “Revista de Informação Legislativa”, n. 131, p. 133). Há conteúdo compulsório em tudo isso e, portanto, a obediência a essas decisões, por todos os níveis.
Dirão: mas há liberdade do juiz em decidir! Verdade. Mas o verbete de uma súmula somente será decisivo depois de muito debate — por isso foi sumulado. A liberdade judicial, apanágio do Estado Democrático, dirige-se a novas questões, a novas leis, a temas em aberto. Aí, sim, o juiz, com sua livre decisão, prestará notável serviço à Justiça.
Quais os percalços da súmula?
A súmula pode ser perigosa, se elaborada com defeito. A lei também, e há leis inconstitucionais e decretos ilegais. A súmula pode ser mal redigida? A lei também.
O que é sumulado? Somente teses controvertidas, e não de textos legais eventuais (por exemplo, tributação anual). A súmula pode não adotar a melhor tese, mas oferece norte e segurança, ao contrário da vacilação de julgados, ora numa corrente, ora noutra direção.
A súmula sofre o mesmo processo da legislação, isto é, alteração por nova interpretação e, principalmente, nova legislação, alterando aquele enunciado. Hoje notamos essa influência com o novo Código Civil (de 2002), que altera várias súmulas do STF (Súmula 165: compra pelo mandante, alterada pelo art. 497; Súmula 494: venda do ascendente ao descendente, art. 496; Súmula 377: comunhão de aquestos, art. 1.672, todos do CC-2002).
A importância da súmula está consagrada.
A Lei nº 8.038/90 (art. 38) permitiu ao Relator negar seguimento a recurso contrário à súmula do respectivo tribunal (CPC, art. 557). No art. 475, § 3º, do CPC (redação de Lei 10.352, de 26.12.2001) não há sujeição ao duplo grau de jurisdição, nas sentenças de interesse da União, Estado, Município, se a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do STF ou em súmula do STF ou do tribunal superior competente. No art. 518, § 1º do CPC, o Juiz não receberá a apelação se a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal. No art. 544, § 3º do CPC, o Relator (STJ) poderá converter o agravo em recurso especial, e neste, provê-lo, se a decisão recorrida estiver em confronto com a súmula do STJ.
Questão muito debatida, e extremada de opiniões, é a da súmula vinculante. O que significa?
O processo de elaboração de uma súmula é exaustivo, depende da existência de pronunciamento único (mas expressivo) ou então da reiteração. O debate sempre foi longo, até a edição. Para a vinculação dessa súmula a julgados futuros há necessidade de processo especial, de maior debate, porque aquele verbete será aplicado automaticamente.
Então, a chamada súmula vinculante não pode ser, e, acredito, não será, fruto de uma decisão aligeirada, rápida, e, muito menos, será a vinculação de qualquer decisão de um tribunal. Não basta o Supremo Tribunal reunir-se, decidir, que automatica­mente todas essas decisões serão vinculantes. Se as súmulas atuais decorrem de um lento e burocrático procedi­mento, imagina-se mais ainda para a súmula vinculante.
Ao lado dessa expressão, outra aparece — a súmula impeditiva de recursos, isto é, a impossibilidade de interposição de recurso se a decisão recorrida estiver apoiada em súmula do Supremo Tribunal. Esta hipótese minora a recorribilidade contra orientação assentada do STF; no entanto, permite ao juiz discordar da súmula do STF. O juiz pode não aplicá-la, ao pretexto de não se adequar à hipótese, de ser outra a matéria; no entanto, parece total inversão hierárquica a não-vinculação.
O efeito vinculante já foi consagrado na Emenda Constitu­cional nº 3/1993, ao estabelecê-lo, quanto às decisões definitivas de mérito, nas ações declaratórias de constitucionalidade (nova redação do art. 102 da CF, acrescentando o § 2º).
Destaque-se ainda o disposto na Emenda Constitucional nº 45/04, no § 2º do art. 102: “As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas estadual e municipal”.
Vê-se, portanto, que o texto constitucional foi além da súmula ao prever a súmula vinculante. Ela era meramente persuasiva, e não vinculativa. Era mera orientação de trabalho.
O tema já estava no controle de constitucionalidade no entendimento da eficácia contra todos (erga omnes) e efeito vinculante em relação a todos os magistrados, tribunais e administração pública. A súmula vinculante tem efeitos além desses, e sim, lato sensu, a todos. Na verdade, os fundamentos do texto são os vinculantes não somente o enunciado.
A súmula vinculante torna mais ágil a justiça sobre o mesmo tema, com impedimento da multiplicação de demandas, ou encerramento das múltiplas demandas, no percurso dos vários graus de justiça.
Não é possível a desigualdade no tratamento de casos iguais, que devem ter soluções idênticas. A proliferação leva a situações díspares. Um defere, outro indefere. Uma câmara concede, a outra não, sobre o mesmo fundo de direito, partes em idênticas condições.
A certeza do direito leva ao pleito de solução certa, com segurança jurídica.
Hoje prega-se muito sobre a demora das soluções judiciais. Portanto, há um direito constitucional à razoável duração do processo. Se há solução única e uniforme, a tendência é a pronta solução.
Há respeitáveis críticas contrárias à adoção da súmula vinculante.
Invoca-se o princípio da separação dos Poderes com a possível invasão da função legislativa pelo Judiciário. A súmula busca no sistema jurídico e legal seu assento. Não nasce do nada. Portanto, a edição da súmula prestigia o legislador.
A independência do julgador não é afetada porque pode não aplicar a súmula, se o texto for inaplicável à espécie. O juiz está adstrito à lei, e sua liberdade tem esses parâmetros.
A jurisprudência não sofrerá com a súmula, porque sua evolução ocorrerá com os cancelamentos, alterações, e até adequação de entendimento (Súmula 346 – nulidades dos atos administrativos, entendida pela Súmula 473).
Não impedimento do direito de ação, porque já há uma orientação. Qualquer autor será temerário na propositura de uma ação se a jurisprudência estiver consolidada contra sua tese.
A Lei nº 11.417, de 19.12.2006, estabelece regras sobre a edição da súmula vinculante.
O Supremo Tribunal Federal, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, pode editar enunciado de súmula, que terá efeito vinculante.
A súmula vinculante sozinha não resolverá comple­­ta­mente a demora dos processos. Entretanto, é grande auxiliar na busca desse desejo, de juízes, advogados e jurisdicionados.