Edição 186
Crimes de responsabilidade e impeachment
8 de março de 2016
Geraldo Brindeiro Procurador Geral da República
Crimes de responsabilidade são atos atentatórios à Constituição− definidos em lei especial, que também estabelece normas de processo e julgamento, visando a fixar parâmetros jurídicos e garantias para o julgamento político. O objetivo da norma constitucional é evitar julgamentos meramente “político-partidários”,pois o Presidente da República não pode − diferentemente do que ocorre no regime parlamentarista − ser afastado do cargo antes do término do mandato por moção de desconfiança do Parlamento. E o Presidente poderá ser absolvido no processo penal, mas condenado no processo de impeachment,como ocorreu com o então Presidente Collor, o que demonstra per se a diferença da natureza dos respectivos processos.
No processo de impeachment,não há propriamente pena, mas sanção política, aperda do cargo e a inabilitação para o exercício de função pública por oito anos.O Presidente da República não poderia ser penalizado duas vezes pelo mesmo ato, o que constituiria bis in idem, ou, conforme a expressão do Direito norte-americano “double jeopardy”, vedada pela 5a Emenda à Constituição Americana. Como observa Tribe, de Harvard, a natureza políticado processo de impeachment afasta a aplicabilidade da mencionada vedação constitucional. Se o processo de impeachment é de natureza política,também as ofensas suscetíveis de submissão a tal processo devem sê-lo.
No constitucionalismo norte-americano, a expressão “high crimes and misdemeanors”é objeto de questões hermenêuticas. A Suprema Corte tem reconhecido que a base constitucional para o impeachment do Presidente pelo Congresso encontra-se em “great offenses”, no sentido do “common law”,que impliquem “gross breach of trust” ou “serious abuse of power”.Aliás, antes mesmo da convenção de Filadélfia que elaborou a Constituição americana, Hamilton afirmava a natureza políticado impeachment que preconizava e das ofensas a ele sujeitas, considerando-as injúrias à sociedade mesma e definindo a má conduta dos homens públicos como “abuse”ou “violation of public trust”.
No Brasil também somente infrações graves,penais ou político-administrativas podem constituir fundamento constitucional para o impeachment do Presidente da República. Se este comete crime contra a administração pública, estará incidindo, simultaneamente, em crime comum e crime de responsabilidade, devendo ser processado e julgado, respectivamente, pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo Senado.
O Presidente Fernando Collor, denunciado pela prática de crime de corrupção pelo Procurador-Geral da República, foi absolvido pelo STF, sendo, porém, condenado pelo Senado, mesmo após a renúncia, limitando-se a condenação à inabilitação por oito anos para o exercício de qualquer função pública. Como o Chefe de Governo, deve zelar pela probidade na administração(Constituição Federal, art. 85, V), adotando as medidas necessárias para “tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição”. Se não o fizer, poderá ser condenado por crime de responsabilidade, ainda que não tenha praticado crime comum, por omissão ou ainda por “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”(Lei no 1.079/1950, art. 8o, incisos III e VII).
Nos Estados Unidos da América, o Presidente Andrew Johnson foi submetido a processo de impeachment em 1867, iniciado na Câmara dos Deputados (House of Representantives),sob o fundamento de que havia tentado destituir o Secretário Stanton (Secretary of War Stanton) em aparente violação a lei do Congresso americano que lhe assegurava estabilidade (Tenure of Office Act of 1867).No Senado, escapou de ser condenado por um voto. A história revela, porém, que a tentativa de afastar Johnson do cargo foi arbitrária, pois ignorou-se durante o processo que a lei descumprida por Johnson era largamente considerada inconstitucional antes de ser declarada como tal pela Suprema Corte no caso Myers v. United States. Não houve qualquer acusação pela prática de crime comum.
O Presidente Richard Nixon foi submetido a processo de impeachment em julho de 1974 mediante três acusações básicas (Articles of impeachment): obstrução da Justiça, violação do juramento constitucional e desobediência a notificações (subpoenas)do Comitê Judiciário da Câmara. As acusações disseram respeito à invasão do edifício Watergate em Washington, sede do comitê eleitoral do Partido Democrata. A primeira referia-se à conduta do Presidente em se engajar, pessoalmente e por intermédio de seus subordinados, em plano para postergar, impedir e obstruir as investigações do caso Watergate. A segunda constituiu-se na violação do seu juramento de respeitar a Constituição e do seu dever constitucional de cuidar para que as leis fossem fielmente cumpridas. E a terceira tratou da recusa em entregar documentos e fornecer informações ao Comitê Judiciário da Câmara. Somente a primeira das três acusações e pequena parte da segunda lidaram com alegadas violações da lei penal federal. Nixon renunciou ao cargo de Presidente em 9 de agosto de 1974, após a decisão da Suprema Corte que determinou a entrega das informações e dos documentos ao Comitê Judiciário da Câmara (House Judiciary Committee), tornando virtualmente inevitável sua condenação pelo Senado e a remoção do cargo.
No regime presidencialista, portanto, o Presidente da República pode ser responsabilizado politicamente por atosque atentem contra a Constituição, definidos como crimesde responsabilidade. Autorizada a instauração do processo de impeachment pela Câmara dos Deputados, o Presidente será processado e julgado pelo Senado Federal sob a Presidência do Presidente do STF. Se condenado, perderá o cargo e ficará inabilitado por oito anos para o exercício de função pública. Lei especial – a Lei no 1.079/1950 – tipifica os crimes de responsabilidade e estabelece as normas de processo e julgamento do impeachment, aplicando-se subsidiariamente as normas regimentais do Senado e do Código de Processo Penal. É possível o controle judicial do processo de impeachment,em razão de alegada lesão ou ameaça a direito, cujo mérito, contudo, de natureza política,é insuscetível de controle judicial. A aplicabilidade do due process of law ao processo de impeachment, pois, assume dimensão diversa daquela relativa ao processo judicial, considerando sua natureza política, conforme jurisprudência do STF.
Na Constituição de 1988, o impeachment contra o Presidente da República inicia-se com a autorização para a instauração do processopela Câmara dos Deputados, pelo voto de dois terços dos seus membros. A Constituição utiliza também a expressão “admitida a acusação”contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, devendo ser submetido a julgamento perante o STF, nas infrações penais comuns,ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.
O STF considera que o impeachment do Presidente da República será processado e julgado pelo Senado Federal, cabendo a este e não mais à Câmara dos Deputados formular a acusação. À Câmara dos Deputados compete o juízo político da admissibilidade da acusação. A autorizaçãopela Câmara dos Deputados refere-se tanto à instauração do processo de impeachment pelo Senado Federal pela prática de crime de responsabilidade, como à admissibilidade de processo contra o Presidente pela prática de crime comum perante o STF. Neste último caso, a instauração da ação penaldependerá ainda de denúncia formulada pelo Procurador-Geral da República ou de queixa-crime.
O STF tem admitido a competência do Presidente da Câmara dos Deputados para, no processo de impeachment do Presidente da República, examinar liminarmente a idoneidade da denúncia popular. Tal exame inclui a verificação das formalidades extrínsecas e a rejeição imediata da acusação patentemente inepta ou despida de justa causa, sujeitando-se, contudo, ao controle do Plenário da Casa, mediante recurso.
O Presidente da República ficará suspensode suas funções, nas infraçõespenais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo STF; e nos crimes de responsabilidade, após a instauração do processo pelo Senado Federal. Quanto à instauração do processo por crime de responsabilidade contra o Presidente pelo Senado, não cabe a este decidir se instaura ou não o processo, após a deliberação da Câmara. Nesse caso, diferentemente do que ocorre na instauração da ação penal pela prática de crimes comuns do Presidente da República, não há contrapor o juízo político da Câmara dos Deputados ao jurídico do STF. O juízo político para a admissibilidade do impeachment compete privativamente à Câmara dos Deputados. Este seráinstaurado pelo Senado Federal, após a deliberação da Câmara dos Deputados.
Finalmente, na vigência do mandato, o Presidente da República não pode ser responsabilizado por “atos estranhos”ao exercício de suas funções (Constituição Federal, art. 86, § 4o). Evidentemente, a expressão “atos estranhos”diz respeito a crimes comuns e não a crimes de responsabilidade que, por definição, somente podem ser praticados no exercício do mandato. A correta exegese da norma constitucional leva à conclusão de que, enquanto investido das funções presidenciais, o Presidente somente poderá sofrer a persecutio criminis relativamente aos ilícitos penais praticados in officio ou cometidos propter officium, isto é, no exercício do cargo ou em razão dele, inclusive em mandato anterior, na hipótese de reeleição, sem afastamento do cargo para concorrer, considerando o princípio da continuidade administrativa reconhecidopelo STF. A imunidade não alcança, assim, as infrações penais comuns praticadas no cargo no primeiro mandato, salvo se estranhasàs funções presidenciais.
Na verdade, a imunidade temporária do Presidente da República à persecução penal pela prática de crimes não funcionais constitui também, tal como a imunidade à prisão cautelar, prerrogativa constitucional exclusiva do Presidente da República como Chefe de Estado, não extensível aos Governadores de Estado pelas Constituições Estaduais. E haverá a suspensão da prescrição da ação penal enquanto subsistir a imunidade. A imunidade, porém, segundo a jurisprudência do STF, refere-se tão somente à persecutio criminis injudicio, isto é, impede temporariamente apenas propositura de ação penal pelo parquet ou queixa crime, mas não procedimentos investigatórios do Ministério Público para formar a opinio delicti e viabilizar, “no momento constitucional oportuno”, se for o caso, o ajuizamento da ação penal, nem a instauração de inquéritos policiais para investigações criminais, ações de responsabilidade civil, procedimentos fiscais para apurar responsabilidade tributária e processos instaurados para apurar a prática de infrações político-administrativas.