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Controle judicial dos atos discricionários das agências reguladoras

30 de abril de 2006

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A discricionariedade dos agentes do poder público, diferentemente do entendimento daqueles que o exercem, não se dá graças ao seu juízo pessoal quanto ao que pode ou não ser feito, uma vez que seus atos são só aqueles alçados à nomenclatura de “permitidos por lei”.

Conforme leciona Maria Helena Diniz1, discricionariedade administrativa é o poder do agente público de agir ou não agir, de avaliar ou de decidir atos de sua competência, dentro dos limites legais, com vistas ao interesse público.

É, na lição de Celso Antonio Bandeira de Mello2, “a margem de liberdade conferida pela lei ao administrador para que este cumpra o dever de integrar com sua vontade ou juízo a norma jurídica diante do caso concreto”.

A aplicação da norma deve ser feita mediante sua interpretação. E é importante que a inteligência interpretativa seja lógica e razoável, além de cautelosa, pois é dever do agente administrativo ser cauteloso especialmente ao lavrar qualquer autuação devido aos efeitos advindos com esta.

Nesta diretriz hermenêutica, não cumpre à pública administração prejudicar seus administrados com excessivos rigores e atitudes desmesuradas e desmedidas por parte daqueles que são os emissários fiscais das entidades fiscalizadoras.

A atividade administrativa, dessa forma, deve desenvolver-se no sentido de dar pleno atendimento ou satisfação às necessidades a que visa suprir, em momento oportuno e de forma adequada.

Impõe-se, portanto, aos agentes administrativos, em outras palavras, o cumprimento estrito do “dever de boa administração”.

O processo administrativo, apesar de não ser procedimento judicial, deve seguir a norma constitucional do devido processo legal.  O artigo 5.º, LV, diz, expressamente, que o contraditório e a ampla defesa são assegurados aos litigantes tanto nos processos judiciais quanto nos administrativos.

Por outro lado, O artigo 5.º, LIV, com fundo à Carta Magna do Rei João Sem Terra vem dizer que ninguém se poderá privar de seus bens sem o devido processo legal (due process of law).

Quando se trata de processo administrativo no âmbito das Agências Reguladoras, tem-se que o imenso poder a estas concedido de simultaneamente normatizar, fiscalizar e julgar os recursos efetuados leva, como em qualquer outra situação parecida, a exageros.

O Brasil não mais é uma ditadura. Não cabe mais em seu ordenamento jurídico a imposição de normas “de cima para baixo” sem apreciação judicial nem devido processo legal.

Indubitavelmente, o princípio funcional e regulatório das referidas agências se deu em face de um mercado desigual, promovendo amplos poderes conjuntamente com o CADE às Agências Reguladoras, para desmantelar os verdadeiros cartéis, prestigiando os princípios norteadores do direito econômico.

Por óbvio, o fim precípuo da instituição das agências reguladoras foi o de diminuir o aparato estatal em prol da melhoria da qualidade dos serviços públicos ofertados aos administrados. Há aqui inequívocos contornos de políticas públicas inerentes à materialização do direito regulatório de que é expressão o poder normativo das agências reguladoras.

Por essa razão, as agências detêm o poder/dever de editar atos administrativos de regulação, por constituírem fundamentalmente veículos de políticas públicas.

Neste diapasão, ao baixarem seus atos administrativos de regulação, as agências reguladoras devem respeitar os princípios da legalidade, igualdade, moralidade, publicidade, e eficiência consagrados pelo art. 37, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil, bem como os princípios da finalidade, da motivação, da razoabilidade e da proporcionalidade expressamente previstos no art. 2°, caput, da Lei n° 9.784/99.

Portanto, a incorporação das agências reguladoras no ordenamento jurídico brasileiro é possível, como exigência de descentralização administrativa, para maior celeridade e eficiência na prestação e fiscalização dos serviços públicos, desde que, porém, respeite os princípios e preceitos constitucionais e as regras básicas fixados pelos Poderes Executivo e Legislativo, na lei de sua criação (centralização governamental).

Logo, a Administração Pública que incorrer em desvio de poder estará sempre sujeita a reprimenda do Poder Judiciário.

Em preciosa monografia, Miguel Reale3 já admitia o exame de mérito administrativo, para quem “Digna de encômios é, por conseguinte, a jurisprudência que, vencendo preconceitos inspirados por falha compreensão do princípio da distinção dos Poderes, salvaguarda não só a faculdade, mas o dever que tem o magistrado de ‘apreciar a realidade e a legitimidade dos motivos em que se inspira o ato discricionário da Administração4’ por ser possível o controle judicial do ato administrativo também pelo seu aspecto intrínseco (motivos e razões) para se evitarem os abusos e injustificáveis lesões de direitos individuais.”

Sob a inspiração de Mostesquieu, desde os primórdios do século XX, é inadmissível em um Estado Democrático de Direito a existência de atos praticados pelo Poder Executivo que não possam ser objeto de apreciação pelo Poder Judiciário.

Nesse sentido, corroborando com a tese acima exposta, de grande valia artigo5 da Ministra Eliana Calmon do Superior Tribunal de Justiça, onde afirma: “O Judiciário é insubstituível na solução dos conflitos e, constitucionalmente, tem garantia do monopólio da Jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF/88). Seu limite está na lei – princípio da reserva legal. O princípio da reserva legal está sendo, modernamente, relativizado ao permitir ao julgador imiscuir-se nas razões de conveniência e oportunidade dos atos administrativos, a fim de examiná-los pela finalidade, razoabilidade e moralidade.”

Conclui-se nestas singelas linhas que a discricionariedade administrativa foi instituída para o bom funcionamento da Administração Pública, mas o controle de sua legalidade não pode refugir ao Poder Judiciário, inclusive quanto a análise de seu mérito.

Não devem os operadores de direito admitir que a realidade prática distancie a discricionariedade dos estritos lindeiros da legalidade, buscando-se acabar com seu movimento pendular de dilatação e contração proporcional ao maior ou menor grau de intervenção do Estado na ordem social e econômica.

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1 Dicionário Jurídico, vol. 2, Saraiva, 1998, pág. 190

2 Discricionariedade e Controle Jurisdicional, 2ª ed,  Malheiros, 2003, pág. 48

3 Revogação e Anulamento do Ato Administrativo, pág. 94, Forense

4 Assim proclamou o Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 17.126

5Palestra proferida, no dia 04 de abril de 2003, no Seminário sobre a Justiça, promovido pelo Conselho da Justiça Federal, em Brasília.