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Controle das CPI’S do Congresso Nacional pelo Poder Judiciário

5 de novembro de 2002

Geraldo da Silva Batista Jr. Juiz de Direito em Campos dos Goytacazes-RJ

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A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, as comissões parlamentares de inquérito, conhecidas como CPIs, adquiriram grande importância nos cenário político e jurídico do país.

Trata-se de um importante instrumento de fiscalização da atividade administrativa exercida pelas autoridades públicas e, numa sociedade democrática a imprensa – livre – dá grande ênfase ao trabalho destas comissões, que sempre são instauradas para apuração de questões de grande repercussão.

Contudo, nem sempre os membros das referidas comissões agem com respeito aos direitos e garantias individuais previstos na Carta magna. No afã de obterem resultados concretos para tomarem parte dos noticiários, os investigadores, não raras vezes, desobedecem ao devido processo legal e ao princípio do contraditório, agindo de forma arbitrária.

Neste trabalho, de modesta intenções, pretendemos metodizar a atuação das CPIs, estabelecendo seus poderes de investigação e os limites dos mesmos, de modo a permitir que este instituto, de inspiração democrática, possa atuar de forma eficaz, mas também com respeito aos direitos e garantias fundamentais, dos componentes da sociedade brasileira. Somente com poderes e limites de atuação claramente estabelecidos teremos o respeito à legalidade, o afastamento do arbítrio e a garantia de que as CPIs serão realmente instrumentos de democracia.

Utilizando-nos da pesquisa teórica e, principalmente, da jurisprudência, iniciaremos o trabalho com uma breve analise histórica do instituto das CPIs e da natureza jurídica da atividade por elas exercida. Em seguida, analisaremos seu conceito e fundamentação constitucional e legal. Prosseguindo, veremos o que a doutrina e a nossa Corte constitucional pensam a respeito da atuação destas comissões. Finalizando, apresentaremos uma sistematização científica e, ao mesmo tempo didática, dos poderes e limites de atuação dos membros das comissões parlamentares de inquérito do Congresso Nacional.

Comissões Parlamentares de Inquérito: breves considerações históricas e natureza jurídica de sua atuação o instituto das comissões parlamentares de inquérito tem suas raízes no Par­lamento britânico, tendo surgido no século XVII.

Celso Ribeiro Bastos ensina que ele e típico do Sistema Parlamentarista, sendo adotado em todas as monarquias e repúblicas parlamentaristas da Europa, alem das Constituições americanas, inclusive dos EVA, onde foi desenvolvido e aperfeiçoado.

No Brasil, estas comissões existem desde a Constituição de 1934 (art. 36).

O procedimento instaurado pelas CPIs e chamado de “inquérito” pela Lei nº 1.579/52. Ensina, com razão, Alexandre Abrahão Dias Teixeira que, se adotarmos a classica definição de inquérito policial, veremos que a natureza do referido procedimento e realmente a mesma do inquérito. Logo, podemos concluir que a atividade de investiga­ção exercida pelas CPIs tem natureza jurídica de atividade administrativa.

Conceito e fundamentação legal

A Administração Pública, direta, in­direta ou fundacional, está sujeita a controle interno e externo. Interno e o exercido por órgãos da própria Administra­ção, e externo o efetuado por órgãos alheios a ela.

O controle externo compreende: 1) o controle parlamentar direto; 2) o Controle exercido pelo Tribunal de Contas (órgão auxiliar do Poder Legislativo nesta matéria); 3) o controle jurisdicional.

O art. 49 da Carta magna constitui o principal fundamento constitucional do controle legislativo, que se materializa nas seguintes hip6teses: a) sustação de atos e contratos do Executivo (arts. 49, V, e 71, § 1º); b) convocação de Ministros e requerimentos de informações (art. 50, caput e § 20); c) Comissões parlamentares de Inquérito (art. 58, § 30); d) autorizações ou aprovações necessárias para atos concretos do Executivo (art. 49, XII, XIII, XVI e XVII); e) poderes controladores privativos do Senado Federal em atos como os previstos no art. 52, III; f) julgamento das contas do Presidente da Re­pública (art. 49, IX); g) suspensão e destituição (“impeachment”) do Presidente e Ministros (art. 85 e 86).

Por sua vês, o art. 58 e seu parágrafo terceiro, da Constituição Federal, dispõem:

Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação.

§ 3º – As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, alem de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal do infratores.

Como se vê, as CPIs constituem uma das formas de controle da Administração Pública exercidas pelo Poder Legislativo e tem previsão constitucional.

No plano infraconstitucional sua regulamentação esta na Lei nº 1.579, de 18 de março de 1952, que autoriza a aplicação subsidiaria do Código de Processo Penal, onde couber.

DOS PODERES

Nos termos do dispositivo constitucional acima citado, os poderes das CPIs são os de investigação, próprios das autoridades judiciais. No entanto, esta disposição tem merecido critica, porque inspirada na Constituição italiana, que prevê atividade investigatória para a Magistratura. No sistema acusatório brasileiro tal atividade e incumbência do Ministério Público, conforme o art. 129 da Constituição Federal.

O objetivo das CPIs e apurar fatos para corrigi-los ou modificar procedimentos da Administração pública, mediante proposta legislativa. Alias, esta e a função preponderante do Poder Legislativo – elaborar leis e fiscalizar os aros do Executivo. Daí o objetivo essencial da CPI, que e colher subsídios para reforma legislativa e fiscalizar os atos administrativos. Incidentes tantum a prática tem demonstrado que podem ser descobertas irregularidades que demandem responsabilização, quando, então, as conclusões da comissão são remetidas a quem de direito, como ao Ministério Público em caso de descoberta de crime cuja ação penal depende de sua iniciativa.

Dos limites

Em primeiro lugar, tal como prevê a Constituição Federal, em virtude de seus objetivos, a instauração destas comissões somente deve se dar mediante faros concretos e individuais (ainda que múltiplos), por prazo certo e determinado. As CPIs não podem ser genéricas. Necessitam de um faro concreto, preciso, determinado e individualizado (art. 58, § 3° CF). Neste sentido posiciona-se o eminente Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Carlos Alberto Meneses Diteiro.

Pesquisa jurisprudencial por nós efetivada demonstrou que o posicionamento da Corte Suprema e firme no sentido de que os poderes das comissões parlamentares de inquérito não são ilimitados e que seus trabalhos estão sujeitos ao controle judicial, porque limitados pela própria Constituição Federal, cujo guardião é o Poder Judiciário. Pudemos observar, também, a escassez de decisões definitivas recentes sobre a problemática dos limites de poderes destas comissões. Contudo, tal questão foi examinada a fundo em virtude do ajuizamento de vários processos contra a atuação da recente CPI do Sistema Financeiro. Apesar da escassez mencionada, as decisões monocráticas esgotam o assunto.

Vejamos parte de uma destas decisões, deferindo liminar no Mandado de Segurança nº 23.452-RJ, impetrado contra a CPI do Sistema Financeiro, que bem esclarece a questão:

“O postulado da reserva constitucional de jurisdição – consoante assinala a doutrina (J.J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constitui­ção’, p. 580 e 586, 1998, Almedina, Coimbra) – importa em submeter, à esfera única de decisão dos magistrados, a pratica de determinados aros cuja realização, por efeito de verdadeira discriminação material de competência jurisdicional fixada no texto da Carta política, somente pode emanar do juiz, e não de terceiros, inclusive daqueles a quem se hajam eventualmente atribuído ‘poderes de investigação próprios de autoridades judiciais’.

Isso significa – considerada a clausula de primazia judiciária que encontra fundamento no próprio texto da Constitui­ção – que esta exige, para a legítima efetivação de determinados atos, notadamente daqueles que implicam restrição a direitos, que sejam eles ordenados apenas por magistrados.

Daí a observação feita por LUIZ FLÁVIO GOMES e por CASSIO JUVENAL FARIA, que, a propósito da extensão dos poderes das comissões parlamentares de inquérito, expendem preciso magistério: ‘São amplos, inegavelmente, os poderes Investigatórios das CPIs, porem nunca ilimitados. Seus abusos não refogem, de modo algum, ao controle jurisdicional (He 71.039-STF). É sempre necessário que o poder freie o poder (Montesquieu). Tais Comissões podem: a) determinar as diligencias que reputarem necessárias; b) convocar ministros de estado; c) tomar o depoimento de qualquer autoridade. D) ouvir indiciados; e) inquirir testemunhas sob compromisso, f) requisitar de órgão público informações e documentos de qualquer natureza (inclusive sigilosos); g) transportar-se aos lugares aonde for preciso. Cuidando-se de CPI do Senado, da Câmara ou mista, pode, ainda, requerer ao tribunal de Contas da União a realização de inspeções e auditorias.

Quanto aos dados, informações e documentos, mesmo que resguardados por sigilo legal, desde que observadas as cautelas legais, podem as CPIs requisitá-los. Isso significa que podem quebrar o sigilo fiscal, bancário, assim como o segredo de quaisquer outros dados, abarcando-se, por exemplo, os telefônicos (registros relacionados com chamadas telefônicas já concretizadas), e, ainda, determinar buscas e apreensões.

O fundamental, nesse âmbito e: a) jamais ultrapassar o intransponível limite da ‘reserva jurisdicional constitucional’, isto é, a CPI pode muita coisa, menos determinar o que a Constituição Federal reservou com exclusividade aos juízes. Incluem-se nessa importante restrição: a prisão, salvo flagrante (CF, art. 5°, inc. LXI); a busca domiciliar (CF, art. 5°. Inc. X) e a interceptação ou escuta telefônica (art. 5°, inc. XII) b) impedir, em nome da tutela da privacidade constitucional (art. 5°, inc. X), a publicidade do que e sigiloso, mesmo porque, quem quebra esse sigilo passa a ser dele detentor; c) não confundir ‘poderes de investigação do juiz’ (CF, art. 58, § 3°) com 0 poder geral de cautela judicial: isso significa que a CPI não pode adotar nenhuma medida assecuratória real ou restritiva do ‘jus libertatis’, incluindo-se a apreensão, seqüestro ou indisponibilidade de bens ou mesmo a proibição de se afastar do pais.’

Torna-se importante assinalar, neste ponto, que, mesmo naqueles casos em que se revelar possível o exercício, por tona Comissão Parlamentar de Inquérito, dos mesmos poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, ainda assim a prática dessas prerrogativas estará necessariamente sujeita aos mesmos condicionamentos, as mesmas limitações e aos mesmos princípios que regem o desempenho, pelos juízes, da Competência institucional que lhes foi conferida pelo ordenamento positivo.

Isso significa, por exemplo, que qualquer medida restritiva de direitos, além de e excepcional, dependera, para reputar-se válida e legitima, da necessária motivação, pois, sem esta, tal ato – a semelhança do que ocorre com as decisões judiciais6 CF, art. 93, IX) – reputar-se-á írrito e destituído de eficácia jurídica ( RTJ 140/514, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g).

Em uma palavra: As Comissões Parlamentares de Inquérito, no desempenho de seus poderes de investigação, estão sujeitas as mesmas normas e limitações que incidem sobre os magistrado judiciais, quando no exercício de igual prerrogativa. Vale dizer: as Comissões Parlamentares de Inquérito somente podem exercer as atribuições investigatórias que lhes são inerentes, desde que o façam nos mesmos termos e segundo as mesmas exigências que a constituição e as leis da República impõem aos juízes.”

O Egrégio Conselho da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro também se posicionou sobre a questão, in verbis:

“As Comissões Parlan1entares de Inquérito, quer na Carta de 19967 (art.39), quer na vigente (art. 58, § 3°, possuem limites precisos e determinados pelo ordenamento constitucional. Não representam a Câmara dos Deputados, e, sim, são pelas a própria Câmara, como um de seus Órgãos ( … ) A Câmara dos Deputados não possui poderes para fiscalizar aro de magistrado praticado no exercício de suas funções ( … )

Inúmeras outras decisões no mesmo sentido poderiam ser aqui transcritas. Contudo, optamos por não repeti-las, para não nos tornarmos enfadonhos.

Também válido, neste momento, é o ensinamento de Canotilho, que, após discorrer sobre o assunto, conclui da seguinte maneira: ” as comissões de inquérito não podem incidir sobre a esfera privada do cidadão: a proteção dos direitos fundamentais constitucionalmente consagrada vale perante os inquéritos parlamentares”.

Conclusões

As CPIs não podem ser genéricas, só podendo ser instauradas para apuração de faros concretos. Por outro lado, faros que surgirem em seu curso também podem ser apurados.

A forma mais adequada de s interpretar o texto constitucional referente as CPIs consiste em considerar que a expressão “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais” se refere as medidas que, apesar da natureza investigat6ria, a Constituição submete a apreciação do Poder Judiciário, como a expedição de mandados de busca e apreensão e a quebra de sigilo bancário, dentre outras.

Os poderes das CPIs são amplos, mas, considerando que estas comissões consistem em uma das forças de controle legislativo da Administração Pública, e de se observar que estão sujeitos a Controle de legalidade e constitucionalidade por parte do Poder Judiciário, que’ o guardião da Constituição Federal. Além disso, estão sempre limitados pelo princípio constitucional da reserva jurisdicional, sem que isto implique ofensa ao também constitucional princípio da separação dos Poderes. Qualquer desvio de finalidade e passível de correção jurisdicional.

Aquelas providencias que, embora tenham Caráter investigatório, implicam restrição direta a direitos individuais estão protegidas pela reserva jurisdicional, em virtude do próprio texto constitucional. Podemos defini-Ias como as que, para serem realizadas, por efeito de verdadeira discrimina­ção material de competência jurisdicional fixada no texto da Carta Magna, somente podem emanar de juiz, e não de terceiros, inclusive daqueles a quem se hajam eventualmente atribuído “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”. É o caso da busca domiciliar (CF, art. 5°, XI) e da interceptação ou escuta telefônica (art. 5°, XII).

Medidas cautelares, como indisponibilidade de bens, decretação de prisão e proibição de pessoas se afastarem do pais, fogem do âmbito de investiga­ção, já que são coercitivas e não investigatórias. Não se pode confundir poderes de investigação do Juiz (CF, art. 58, § 3°) com o poder geral de cautela judicial, o que significa que a CPI não pode adotar medidas de caráter acautelador, que estão também protegidas pelo princípio da reserva jurisdicional constitucional.

Em face da sua submissão a lei, o tempo máximo de uma CPI não pode ultra­passar a legislatura na qual foi criada.

Estabelecidas estas conclusões de caráter genérico, passamos a extrair delas algumas conseqüências relacionadas a determinadas situações específicas. Vejamos: 1) Não se pode falar em crime de falso testemunho caso a pessoa se recuse a prestar informações que possam incriminá-la, pois, tal como nos depoimentos judiciais, existe o direito ao silêncio11; 2) Quem tem o dever de guardar sigilo profissional pode se recusar a depor até mesmo na condição de testemunha, não cometendo falso testemunho; 3) Para efetuar prisão em flagrante por falso testemunho, a CPI precisa estabelecer qual a declaração falsa e fundamentar os motivos que ensejaram a sua ocorrência, de modo a caracterizar o flagrante; 4) Não pode o presidente da CPI lavrar o auto de prisão em flagrante, por não ser autoridade competente para tanto e não ter este ato natureza investigat6ria 12; 5) O poder investigatório das CPIs esta dentro dos limites de seu poder legiferante. Assim, a CPI não pode investigar um caso sobre o qual não poderia legislar ou mudar um procedimento administrativo. Isto se da em virtude do seu objetivo ontológicol3. Se a competência legislativa, em determinada situação, for concorrente, é possível a modificação dos procedimentos administrativos relacionados aos faros a ela referentes, podendo a CPI prestar-se a realizar investigações. Simplificando, uma CPI de um Ente Legislativo não pode investigar um faro cuja competência normativa se insira na esfera legiferante exclusiva de outro Ente Legislativo; 6) Não pode a CPI restringir o acesso e as prerrogativas dos advogados, que podem presenciar os trabalhos e intervir em seu curso, para esclarecer equivoco ou duvida, utilizando a palavra “pela ordem” 14; 7) Magistrados podem ser convocados e investigados em seus aros administrativos. Só estão imunes de investigação por CPIs nos aros tipicamente jurisdicionais, em virtude do princípio da separação dos Poderes: 8) Ao agir com aros típicos de autoridade judicial, a CPI precisa observar a exigência de fundamentação das decisões, tal como prescreve o art. 93, IX, da CF.