Continuidade dos serviços extrajudiciais durante a pandemia

10 de maio de 2020

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O presente artigo analisa o avanço da tecnologia e a prática de atos eletrônicos pelos serviços extrajudiciais (cartórios de notas e de registro). Aborda a temática diante da pandemia decorrente do novo coronavírus (covid-19) e os atos normativos editados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Nos sistemas jurídicos que predominam no mundo, o serviço extrajudicial está em pelo menos 120 países. Há, desta forma, uma prestação do serviço, de forma semelhante à do Brasil, para aproximadamente 2/3 da população mundial, o que corresponde a 60% do PIB mundial.

Em alguns países, como o Brasil, ainda predomina a forma usual e antiga da prática de atos presenciais e de forma escritural, mas em outros a atividade do serviço extrajudicial é exercida de forma eletrônica, na qual carimbos são substituídos por certidões eletrônicas, escrituras são documentos digitais natos e não se exige mais a presença das partes para a elaboração de atos e contratos, pois são realizados por videoconferência, com reconhecimento facial, biométrico ou por assinaturas com certificado eletrônico.

Analisa-se, portanto, como a atividade do serviço extrajudicial brasileira está evoluindo da forma “papelizada” para o mundo eletrônico/ digital. A título de justificativa pela escolha temática, o CNJ publicou recentemente atos normativos permitindo a realização de atos pela via eletrônica em razão da situação excepcional da pandemia gerada pela covid-19.

Ainda sobre a escolha temática, a Constituição Federal de 1988 abriu as portas do Poder Judiciário ao povo brasileiro. A população confiou e utiliza os serviços à sua disposição, no entanto, houve crescente demanda devido à alta taxa de litigiosidade. É público e notório ainda que os processos judiciais em trâmite perante o Poder Judiciário são lentos.

O CNJ publicou estudo pontuando que, no final de 2018, existiam em tramitação 78,7 milhões de processos sem solução. Demonstrando a litigiosidade do povo brasileiro, consta do mencionado relatório que “em média, a cada grupo de 100 mil habitantes, 11.796 ingressaram com ação judicial no ano de 2018”.

A lentidão na resolução das demandas apresentadas pela população atenta contra a duração razoável do processo, ou seja, há uma afronta ao mandamento constitucional, já que a Constituição Federal estabelece que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

Como é sabido, o Poder Judiciário brasileiro presta serviços à população diretamente ou de forma delegada. Na primeira hipótese, há a prestação jurisdicional e, na segunda, há o serviço público delegado pelos serviços extrajudiciais.

Considerando a lentidão na prestação jurisdicional direta, a ofensa à garantia constitucional da duração razoável do processo e a necessidade de fomento à desjudicialização, é curial que se desenvolva a cultura da resolução das demandas pelo serviço público delegado, os serviços extrajudiciais, já que, sem dúvidas, a resolução de litígios fora da seara judicial é a regra, pois “o Direito se realiza mais pelos negócios jurídicos, na sua forma instrumental, produzidos pelos particulares, e com fé pública, pelos notários, do que por suas decisões jurisdicionais”.

Atualmente, o mundo está em estado de alerta devido à contaminação da população pela covid-19. A Organização Mundial da Saúde decretou estado de pandemia. No Brasil, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios adotaram medidas para conter o avanço da contaminação. No âmbito do Poder Judiciário forma publicados atos normativos que, em síntese, limitam o atendimento ao público e estabelecem o home office.

Dentre as normativas, destaca-se as editadas pela Corregedoria Nacional de Justiça que afetam diretamente a atividade do serviço extrajudicial. Os provimentos dispõem, em síntese, da suspensão ou redução do atendimento presencial ao público nas serventias extrajudiciais (notários e registradores), sobre o envio eletrônico dos documentos para a lavratura de registros de nascimentos e de óbito e sobre o funcionamento das unidades de registro de imóveis.

Assim, trata-se de um marco na atividade prestada pelo serviço extrajudicial, pois a evolução dos serviços tradicionalmente prestados de forma presencial e “papelizada” vem ocorrendo de forma lenta, já que, como em todo processo evolutivo, há quem defenda as inovações, mas há muitos que são contra. Pode-se dizer que houve um rompimento de paradigmas, deixando de lado uma prática antiga (papel e carimbo) para uma nova e presente realidade (atos e documentos eletrônicos/ digitais).

Parafraseando Thomas Kuhn, houve uma revolução científica, já que as normativas atuais apresentam soluções que são predominantes. No entanto, surgem dissidências que criam uma instabilidade jurídica. Tal variação decorrente das dissidências, mutatis mutandis, pode ser chamada de crise e inicia-se o processo de revolução (a evolução do Direito). Parte-se de um paradigma (“papelização” e carimbos), surgem divergências (informatização e atos eletrônicos/ digitais) e chega-se a um novo paradigma (novo entendimento predominante sobre a questão), qual seja, a normativa do CNJ permitindo a realização de atos eletrônicos na atividade extrajudicial.

Note-se que o Poder Judiciário em sua atividade jurisdicional já está no mundo informatizado há algum tempo. Está no rumo certo, pois traçou como meta a implantação do processo judicial eletrônico (atos processuais, julgamentos virtuais e por videoconferência). Trata-se de uma realidade, pois a maioria dos tribunais brasileiros praticam atos em plataformas eletrônicas (PJe, SEEU e outros sistemas).

Neste diapasão, o serviço extrajudicial também deve adentrar na inovação tecnológica e prestar serviços de forma eletrônica/ digital. Com efeito, a tradicional forma de prestação de serviço presencial e “papelizada” deve ser abandonada, pois vale destacar que o art. 4º, da Lei nº 8.935/2004 estabelece que “os serviços notariais e de registro serão prestados de forma eficiente e adequada”, sendo, atualmente, a melhor forma da prestação de serviços à população, dentro das peculiaridades de cada caso, a prestação de serviço de forma eletrônica/ digital.

Hodiernamente, a população, em sua maioria, desde o alvorecer até o anoitecer, resolve suas pendengas por meios eletrônicos/ digitais. Assim, urge que os serviços extrajudiciais desempenhem suas atividades de forma eletrônica/ digital, pois a inovação tecnologia é uma realidade sem volta. A título de exemplo, no mundo, França, Espanha e Itália, que ostentam sistema extrajudicial semelhante ao brasileiro, já permitem a consecução de atos eletrônicos/ digitais pelos notários.

É sabido que no Poder Judiciário, tanto em sua atividade direta quanto na delegada, a informatização e a prática de atos eletrônicos/ digitais vêm ocorrendo de forma lenta. No entanto, a legislação substantiva e adjetiva brasileira evoluiu gradativamente permitindo, tanto na atividade direta quanto na delegada, a prática de atos judiciais e extrajudiciais de forma eletrônica/ digital, reconhecendo sua validade e legitimidade.

Assim, urge que os serviços extrajudiciais desempenhem suas atividades de forma eletrônica/ digital, já que possuem respaldo tanto na legislação substantiva quanto na adjetiva (Código Civil, Código de Processo Civil e Código de Processo Penal), bem como na legislação esparsa que adentrou, ainda que lentamente, ao mundo eletrônico/ digital (Medida Provisória nº 2.200-2/2001, Marco Civil da Internet/ Lei nº 12.965/2014).

E mais, o Conselho Nacional de Justiça se preocupou com a segurança na prática de atos eletrônicos/ digitais pelos serviços extrajudiciais, pois o Provimento CNJ nº 74/2018, da Corregedoria Nacional de Justiça, estabeleceu padrões mínimos de tecnologia de informação para a segurança, integridade e disponibilidade de dados.

Portanto, conclui-se que o Brasil vinha caminhando a passos lentos para deixar a prática de atos processuais e extrajudiciais de forma presencial e escritural. Atos normativos vinham sendo publicados regulamentando e fomentando a prática de atos de forma eletrônica/ digital, mas o avanço era tímido, mesmo diante da lentidão do Poder Judiciário em resolver as demandas que lhe são apresentadas.

Diante da situação emergencial ocasionada pela covid-19, o CNJ editou atos normativos essenciais para que os atos judiciais e extrajudiciais, de uma vez por todas, fossem praticados por meio eletrônico/ digital. A experiência mostra que, diante da crise instalada, há uma revolução científica e prática, apresentando novos paradigmas, rompendo os de outrora.

Estamos diante de um novo amanhecer. O Poder Judiciário, tanto em sua atividade direta quanto na delegada, doravante poderá apresentar à sociedade, que já é uma população inserida no ciberespaço, uma prestação de serviço de forma eletrônica/ digital, segura e eficiente.

Posto isso, não há dúvidas, para dar continuidade à prestação do serviço público delegado (atividade notarial e de registro), em época de pandemia e quarentena obrigatória, os serviços extrajudiciais podem e devem praticar atos por meio eletrônico/ digital.

NOTAS_______________________________________

1 22 membros da União Europeia e 15 membros do G20.

2 Informação fornecida pela União Internacional do Notariado.

3 Provimentos da Corregedoria Nacional de Justiça n. 91, 92, 93, 94 e 95/2020.

4 CNJ, 2019.

5 Constituição Federal, 1988.

6 FERREIRA, Rodrigues. 2010.

7 Doença infecciosa que afeta um grande número de pessoas espalhadas pelo mundo.

8 Provimentos CNJ n. 91, 92, 93, 94 e 95/2020.

Referências___________________________________

FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger; RODRIGUES, Felipe Leonardo. Ata notarial: Doutrina, Prática e meio de prova. São Paulo: Quartier Latin, 2010.

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

MARTINI, Renato. Sociedade de informação: para onde vamos. São Paulo: Trevisan, 2017.