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Combate à corrupção em empresas transnacionais: O novo paradigma de responsabilidade no sistema legal brasileiro

22 de janeiro de 2019

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A corrupção consiste em um dos piores males da humanidade, afetando em larga medida o desenvolvimento socioeconômico e a livre iniciativa, em especial por fulminar as bases da concorrência entre agentes de mercado. Encontra-se associada à prática de outros crimes de alcance transnacional, como a lavagem de dinheiro e o tráfico de drogas. Dá margem ao uso da força e da violência, com o cometimento de crimes contra a vida e o desrespeito aos Direitos Humanos.

Há algumas décadas, o exame da corrupção foi direcionado para a compreensão de seus efeitos na organização da empresa e em seu funcionamento, daí surgindo mecanismos específicos para sua repressão e prevenção, o que se convencionou nomear como anticorrupção da empresa.

Esse fenômeno repercutiu diretamente na política dos próprios Estados, para fins de alcançar empresas transnacionais e seus gestores. Nesse sentido, o Foreign Corrupt Practices Act, editado nos Estados Unidos, em 1977, é citado como relevante precursor de convenções internacionais firmadas com igual objetivo. De fato, os interesses econômicos norte-americanos foram o ponto de partida da internacionalização da anticorrupção. Naturalmente, à medida que mais países aderiram à anticorrupção, sentiram necessidade de exigir semelhante postura de parceiros comerciais, a fim de alinhar suas políticas de intervenção no domínio econômico, em favor da competitividade das organizações empresárias neles sediadas.

A partir daí o fenômeno tomou vida própria. Estudos de Direito Internacional foram elaborados buscando fundamentar a prevalência da anticorrupção no plano internacional. Contam-se atualmente impressionantes 14 tratados, dentre os quais sobressaem a Convenção da OCDE Sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais (“Convenção OCDE”) e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (“Convenção ONU”).

Nesta década, o Brasil avançou com a efetiva internalização das convenções internacionais anticorrupção, por meio da Lei nº 12.846/2013 (“Lei Anticorrupção brasileira”), que teve por objetivo adimplir compromissos assumidos perante a comunidade internacional, especialmente pela adesão à Convenção OCDE e à Convenção ONU, que determinam aos Estados signatários a responsabilização civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, bem como a aplicação de sanções aos responsáveis.

A Lei Anticorrupção brasileira inaugura duas novas categorias de responsabilidade objetiva (strict liability) para a organização empresária, a primeira para fins de compensação de prejuízos causados e a segunda para fins de imposição de sanção à empresa corrupta, independentemente de apuração de culpa.

Nesse sentido, a Lei Anticorrupção brasileira modifica profundamente o sistema de responsabilidade previsto no Direito nacional, estabelecendo novas bases para o padrão de conduta a ser observado pela entidade empresária.

A consequência desse novo padrão corresponde à obrigatoriedade de adoção de efetivas medidas de conformidade anticorrupção. Daí porque se pode sustentar que são identificáveis, de forma objetiva, alterações materiais no modo de organização empresária, com efeitos jurídicos. Por isso, defende-se que a conformidade anticorrupção produza significativa repercussão na estrutura jurídica da empresa, no sentido de aprimorá-la para fazer frente ao efetivo combate à corrupção.

Ao se compatibilizar tais efeitos com a ideia de sistema jurídico, identifica-se um novo princípio orientador da interpretação das normas de Direito Comercial no Brasil, que se convém denominar princípio da anticorrupção da empresa.

Em outras palavras, o substancial aumento do rigor do regime de responsabilidade da organização empresária (responsabilidade objetiva ou strict liability), por ato de corrupção, reforça a defesa do princípio da anticorrupção da empresa como novo princípio de Direito Comercial, pois não situa o dever de indenizar no plano da conduta do empresário ou do gestor da empresa, mas sim no resultado do exercício da atividade.

Pragmaticamente, o princípio da anticorrupção da empresa visa assegurar a igualdade de organizações empresárias perante os governos e seus agentes e, por consequência, a igualdade material entre os próprios empresários, no sentido de que a eles serão dadas iguais oportunidades de exercício e desenvolvimento de sua atividade.

No curso ordinário de negócios, o princípio da anticorrupção está estreitamente relacionado com o cumprimento da função socioeconômica da empresa, no sentido de que deixa de cumprir com sua função a empresa que é administrada e se desenvolve artificialmente por meio da obtenção de vantagens particulares ilícitas. Há, pois, indissociável correlação entre ambos princípios (função socioeconômica e anticorrupção).

A corrupção praticada no curso do exercício da empresa interfere diretamente na concorrência, principalmente pelo afastamento do critério meritocrático de escolha de fornecedores, baseado na eficiência, segundo a qual a organização empresária deve buscar ofertar um produto ou serviço de excelência por um preço razoável e adequado às bases de mercado, condição fundamental para assegurar a competição ética e apta a colaborar para o desenvolvimento econômico e social.

No ambiente em que prevalece a corrupção, aquele critério é substituído por outros obscuros, alimentados por promessas de vantagens ilícitas, desvio de finalidade e trocas entre agentes, realizadas à margem da juridicidade.

As organizações empresárias que observam as boas práticas concorrenciais enfrentam uma série de dificuldades quando competem com aqueles que se valem da corrupção, pois não têm acesso ao tratamento privilegiado obtido por meio de canais de legalidade duvidosa. É intuitivo que daí surgem custos negociais (transaction costs) para os primeiros, que precisam de alguma forma neutralizar a posição injusta e violentamente vantajosa dos corruptos ou simplesmente alocar esforços para buscar outros mercados nos quais possam identificar acesso a oportunidades negociais segundo critérios equitativos.

O agente público gera necessariamente ineficiência quando leva em consideração a vantagem particular no processo de tomada de decisão em uma licitação, da mesma forma que o faz a organização empresária que não recolhe tributo, já beneficiada injustamente por um conluio com o fiscal de rendas que lhe deveria autuar.

Como antecipou Thomas C. Schelling – laureado com o Nobel de Economia em 2005 – a organização empresária pode ser lida como um sistema de informações, que comporta regras de decisão e incentivos. Seu desempenho é diferente dos desempenhos individuais das pessoas que a compõem. Uma organização pode ser “negligente” sem que nenhum de seus integrantes o seja. Esperar que uma organização reflita as qualidades dos indivíduos que trabalham para ela ou atribuir aos indivíduos as qualidades que podem ser identificadas na organização é uma imprecisão, que pode ser traiçoeira.

Essas reflexões levam à seguinte e inevitável conclusão: os rigores estabelecidos pela Lei Anticorrupção brasileira constituem novo paradigma de responsabilidade civil e sancionadora da organização empresária, no sentido de que não se propõem a buscar um culpado, mas são promocionais de profunda alteração na estrutura da empresa, de modo impessoal, validando a prevalência do princípio da anticorrupção da empresa, que se situa no centro do subsistema jurídico do Direito Comercial brasileiro, ao lado de princípios como os da livre iniciativa, da liberdade de concorrência, da preservação da empresa, da função socioeconômica da empresa, da boa-fé negocial e da proteção do investimento privado, dentre outros.

 

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