Cinqüentenário Universal da Declaração Universal dos Direitos Humanos

5 de julho de 1999

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No dia 10 de dezembro de 1948 a Assembléia Geral das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos como sendo o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, resultado de diversas situações e momentos históricos vividos pela humanidade. Acerca desse tema não podemos esquecer a Declaração Americana dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada em Bogotá, Colômbia, em maio do mesmo ano.

Foi a primeira vez que uma comunidade universal de nações formulou uma declaração sobre direitos e liberdade fundamentais do homem, a qual resultou no reconhecimento de valores e bens jurídicos cuja proteção interessa a comunidade internacional, o respeito da pessoa, sua qualidade de sujeito de direito, estando todos os Estados obrigados, frente a comunidade de países, ao respeito e reconhecimento desses direitos.

Após a Primeira Guerra Mundial, da qual teriam surgido idéias de negativismo e desânimo, seguiram-se dias piores, com a crise econômica e o aparecimento dos fascismos. O nazismo e então a Segunda Guerra Mundial. Dessa desastrosa experiência, com os horrores conhecidos, houve uma resposta afirmativa em escala mundial na qual resultou na Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Como oposição aos céticos, os negadores da significação objetiva da ética e da justiça, veio esse marco, afirmar o fundamento da vida social: “a dignidade inerente a todos os membros da família humana”.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos se constitui num dos documentos fundamentais da civilização contemporânea: inicia com a denúncia histórica dos “atos bárbaros, que revoltam a consciência da humanidade”, e afirma como valores universais, os direitos humanos básicos, com direito à vida, à liberdade, à segurança, à educação, à saúde e outros, que devem ser respeitados e assegurados por todos os Estados e por todos os povos.

Há um duplo reconhecimento na base da Declaração Universal. Primeiro, que acima das leis emanadas do poder dominante, há uma lei maior de natureza ética e validade universal. Segundo, que o fundamento dessa lei é o respeito à dignidade da pessoa humana. Afirma que a pessoa humana é o valor fundamental da ordem jurídica. É a fonte das fontes do direito.

Como lembra Franco Montoro, esse reconhecimento retoma a antiga sabedoria jurídica, expressa de forma lapidar no Digesto Romano: “Por causa do homem é que se constitui todo o direito” (Hominum causa omne jus constitutum est, JUSTINIANO D.1.5.2.).

“A dignidade do homem é inviolável”, são as primeiras palavras do artigo 1º da Lei Fundamental ou Constituição da Alemanha, no após guerra. Não se trata de simples enunciado ou declaração. Como texto constitucional, essa expressão tem caráter normativo. Assim, qualquer norma administrativa, legal ou ato jurídico que desrespeitar essa dignidade será inconstitucional e, por isso, sem validade.

É indispensável assinalar como característica que os direitos fundamentais estão acima das ideologias políticas, e sua concepção de universalização serve de fundamento e mecanismo de evolução do moderno Estado Democrático.

Sendo a Constituição Federal uma lei fundamental e suprema de um Estado, significa, ao menos no campo teórico, que é a última, não existindo a outra, pois se existir uma outra antes e acima dela, ela deixa de ser fundamental. Segundo Ferraz Junior: “Há uma séria discussão no mundo jurídico-político sobre se certas normas contidas nas constituições modernas, ou seja, a partir dos movimentos constitucionalistas, que nos vêm da Revolução Francesa e do constitucionalismo norte-americano, embora contidas na Constituição, de certa maneira estão ali por reconhecimento do constituinte, posto que na verdade estariam até acima da própria Constituição”. Seria o caso dos Direitos Humanos, entendidos como o direito à vida, à liberdade, à propriedade, etc.

Alguns entendem os Direitos Humanos como sendo um corpo Jurídico dito de direito natural, ínsito na natureza humana, e que portanto está acima das Constituições, que são obras políticas feitas pelos homens. Assim admitido, poderíamos dizer que uma Constituição é uma lei fundamental e suprema de um Estado, mas acima dela existe o direito natural, isto é, se uma Constituição não respeitar esse direito, nesse ponto ela não obriga, havendo até, conforme Ferraz Junior, um direito (natural) de ir contra a própria Constituição.

A respeito da importância da defesa dos direitos fundamentais, já tivemos a oportunidade de escrever que a conciliação entre os direitos dos particulares e a soberania do Estado é um dos mais relevantes questionamentos a serem feitos. A lei não pode ser concebida como produto do arbítrio, mas de uma vontade geral encaminhada diretamente a garantir os direitos fundamentais dos indivíduos. Foi essa idéia que serviu de guia ao Estado de Direito, em que os direitos fundamentais aparecem não como concessão, porém como corolário da soberania popular, através da premissa que a lei não implica somente um dever, senão um direito para o indivíduo.

Assim, como observa Perez Luño, “o homem somente pode ser livre em um Estado livre, e o Estado somente é livre quando se edifica sobre um conjunto de homens livres”.

Nesses cinqüenta anos de existência da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o mundo vem lutando para que a dignidade humana se realize por completo, tornando-se um autêntico paradigma ético, e os direitos nela inscritos constituem hoje um dos mais importantes instrumentos de nossa civilização visando assegurar um convívio social digno, justo e pacífico.

O momento atual afigura-se como oportuno, uma vez que todos os segmentos da sociedade, inclusive a magistratura nacional não pode continuar como mera espectadora, aguardando a ocasião do contato frio com as informações que lhe são trazidas; urge que tomemos uma posição mais avançada, em defesa do cidadão, da pessoa humana, do Estado Democrático de Direito.

Sabemos que a cidadania e os direitos humanos não são apenas idéias de efeitos legais ou sociais, mas doutrina de conseqüências cosmológicas, importando na possibilidade de um mundo melhor.

Devemos acreditar que a verdadeira Justiça só se concretiza por meio de uma efetiva participação, onde todos atuem em favor do bem comum, isto é, de todas as pessoas, sejam elas crianças e adolescentes, mulheres, negros, homossexuais, idosos, índios, portadores de deficiências, policiais, presos, estrangeiros, populações de fronteiras, migrantes, refugiados, despossuídos e os que têm acesso a riqueza.

Além do rol de proteção da pessoa humana e sua dignidade, a Declaração tem outra função que também é particularmente importante para os juízes. Os direitos fundamentais se constituem no meio que pode resolver o velho problema do direito válido e a justificação de sua obediência, ou seja, da identificação do direito positivo e o modelo do direito justo, da questão que Kelsen traçava com a integração do dinâmico com o estático.

Se tomarmos o artigo 1º da Constituição Política Espanhola observaremos que assinala que são valores superiores do ordenamento jurídico a liberdade, a justiça, a igualdade e o pluralismo político, e este conjunto, unido aos direitos fundamentais, pode incorporar ao direito positivo esses ideais de justiça dos valores e dos direitos.

Essa questão é primordial e deveria estar presente nos melhores afazeres dos magistrados, a justiça de suas atuações. Acreditamos que deveria haver um efetivo trabalho em prol de um sistema jurisdicional que contribua e possa gerar um modelo de direito justo, moralmente legítimo e isto passa necessariamente pelo prestígio da pessoa humana, cabendo ao Poder Judiciário proporcionar-lhe tutela jurídica.

A discussão parece ser fundamental, ou seja, o alargamento da verdadeira distribuição de justiça, partindo de uma revisão do que seja a sua própria atividade jurisdicional. Não se espera e nem se pretende que o Poder Judiciário deixe de ser o aplicador da lei, inclusive porque temos uma formação romanística de submissão à lei, que não podemos evidentemente abandonar, mas não há dúvida também que a lei precisa ser interpretada com visão social e realista.

Conforme aponta Celso Bastos, nenhuma lei traz consigo a solução inexorável, inevitável nesta composição entre a lei e o fato inconteste, pois sempre entra um ingrediente volitivo. Kelsen, o mais formalista dos formalistas, deixa claro na definição que dava de sentença: sentença é um ato de vontade expedido pelo juiz, que se enquadra diante do descrito pela lei como sendo sentença. Quer dizer, o juiz expede sentenças por duas razões; primeiro porque tem uma lei acima dele, que diz que o que expediu com o nome de sentença é uma sentença. Portanto, é um elemento formal, é uma quadratura, é um espaço. Agora, dentro deste espaço, o juiz vai preenchê-lo, vai escolher o teor da sua sentença, através de um ato, diz Kelsen. É um ato volitivo.

Essa vontade tem de ser preenchida através da captação realmente de uma vontade coletiva, da vontade maior da sociedade É importante que tenhamos a consciência de que nada adiantará a mera existência de uma legislação com caráter social; é preciso ter um Poder Judiciário efetivo, atuante e independente, porque em última análise a qualidade de uma ordem jurídica é a qualidade que o Judiciário tem condição de conferir a todos os cidadãos.

Ninguém ignora que a independência da magistratura é uma das mais importantes garantias do sistema de proteção aos direitos humanos, segundo anotações de Fábio Comparato. Seria um verdadeiro escárnio se o nosso País, lembra o citado Jurista, exatamente no cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, desse às novas gerações de brasileiros, com a supressão prática de um Judiciário independente, o triste espetáculo de uma involução institucional na defesa da dignidade humana.

Partindo de uma perspectiva Jurídica, moral e política, tem-se a pretensão de que a jurisdição seja exercida conforme as verdadeiras características democráticas e que ela se constitua em real instrumento de proteção da pessoa e sua dignidade; hoje não pode ser posto em dúvida que entre as funções essenciais da magistratura deve considerar-se a efetiva cautela dos direitos fundamentais, o enriquecimento das normas que os exprimem, e o fortalecimento dos mecanismos processuais que permitam seu reconhecimento.