Cicatrizes orgulhosas

5 de julho de 2021

Presidente do Conselho Editorial e Consultor da Presidência da CNC

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Trinta e um anos ininterruptos dedicados ao Supremo Tribunal Federal

Ao longo desse tempo, vez por outra, ainda continuo ouvindo comentários a respeito da escolha do Ministro Marco Aurélio Mello para a nossa mais alta Corte de Justiça, muitos deles ausentes de qualquer conteúdo, outros porque a ela teria chegado por ser parente do então presidente da República.

Maldosamente, eram ignorados os 15 anos já vividos por ele no meio jurídico com a única finalidade de acentuar que lhe faltavam predicados para o desempenho de tão altas funções. Fui testemunha, primeiro da sua indicação, depois, da confirmação do seu nome (o Presidente relutava exatamente pelo parentesco) e posso afirmar que as especulações sempre passaram ao largo da verdade histórica. Enfim, o tempo da sua atuação – tantas vezes fincada em voto solitário – comprova que soube ele ultrapassar as barreiras dos escombros e colocar, com altivez, uma trava no portão da adversidade.

A ele, jamais, será imputada a postura de pioneiro do nada ou o desbravador do inútil, uma vez que na sua trajetória foi um julgador surdo às influências estranhas, não compartilhando com a prepotência, indiferente ao medo pelos poderosos e se fixando no objetivo que deve ser cumprido na missão do julgador: assegurar os legítimos direitos e interesses das partes em litígio.

Pode ter se equivocado – e quem não terá sido durante a existência – na peregrinação do seu voto solitário, qual romeiro de um ideal perdido, mas nunca nenhum dos seus contemporâneos o encontrou algemado pelo aval da omissão ou da cautela do silêncio, que nada mais são do que gestos de covardia que acabarão por levar os seus convivas ao cadafalso da opinião pública.

No próximo dia 12 de julho, ao completar 75 anos, Marco Aurélio estará se despedindo do Tribunal que o viu elaborar Projeto de Lei que criou a TV Justiça, pois foi ele que o sancionou, no exercício da Presidência da República, transformando-o em Lei.

Faço este registro porque poucos têm conhecimento de que o projeto saiu do seu gabinete, passou pela Câmara dos Deputados e Senado Federal, e terminado o trâmite legislativo, subiu à sanção do Presidente da República. Ao que tenho conhecimento, na história parlamentar, terá sido a única grande coincidência o próprio autor sancionar um projeto de lei de sua autoria, na qualidade de Presidente da República.

Acontece que era exatamente o Ministro Marco Aurélio, na substituição ordenada pela Constituição Federal, quem exercia – aliás, várias vezes a exerceu – a chefia do Executivo, em razão da viagem ao exterior do presidente da República e impedimento dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

Ao cabo e ao fim, o Ministro Marco Aurélio sabedor que a guarda da Constituição compete ao Supremo Tribunal Federal e que a jurisdição é hoje monopólio do Poder Judiciário, ao transpor os umbrais daquela Corte e lá não mais voltar como julgador, poderá confidenciar a si próprio:

“Daqui saio muito feliz, porque carrego comigo as cicatrizes orgulhosas do dever cumprido.”