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A busca incessante pela melhoria da gestão administrativa

31 de maio de 2008

Gilmar Ferreira Mendes Membro do Conselho Editorial e Ministro do STF

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Vistos sob a perspectiva da História do constitucionalismo, os vinte anos do Estado brasileiro sob a Constituição de 1988 não passam de um instante, brevíssimo piscar de olhos. No entanto, representam o mais longo período de estabilidade democrática e normalidade institucional de nossa vida republicana iniciada em 1889.
E não se cuida de experiência vivida sob um clima de absoluta tranqüilidade econômica e política.
Ao contrário, o País passou por dificuldades graves nesses campos.
Não obstante, nem a inflação descontrolada e os desvarios da desordem econômica por ela causada, nem os sérios casos de corrupção no estamento político deixaram de ser equacionados dentro dos marcos institucionais mais ortodoxos, sem qualquer contestação ou reclamo relevante.
Passadas quase duas décadas da promulgação da Constituição Federal – e muitas reformas depois, feitas em quadro de absoluta normalidade –, creio que é chegado o momento oportuno de reflexão e de balanço.
A opção do Constituinte de 1988 pelo exercício simultâneo e harmonioso do poder por diversos agentes políticos, em sua complexa tessitura, parece ser o grande responsável por esse equilíbrio institucional.
É certo, por outro lado, que, a despeito das mais diversas dificuldades, a Constituição tem mantido a sua capacidade regulatória.
Nesse sentido, refira-se não só o papel singular dos Poderes e de instituições como o Ministério Público, a Advocacia, mas também os organismos vitais da Democracia como a imprensa livre, as associações e organizações que formam a base de uma sociedade aberta e plural.
Há sempre que se destacar a importância do Judiciário independente neste modelo institucional. Em verdade, no Estado constitucional, a independência judicial é mais rele­vante do que o próprio catálogo de direitos fundamentais.
As conquistas alcançadas com o modelo democrático estabelecido em 1988 estimulam a sua expansão. E o quadro formal da Democracia conta com uma vantagem específica entre nós, que é a inexistência de adversários radicais ao modelo.
Não tenho dúvida de que, a partir da Carta de 1988, estão presentes aquelas condições que a ciência política enuncia como pressupostos para que seja atingida a Democracia plena, dentre as quais ressalto a existência de uma cultura política e de convicções democráticas.
Há uma crença no modelo democrático, até porque as vias democráticas de conciliação têm-se mostrado mais lucrativas que o conflito e a ruptura.
Assim, não resta dúvida de que a Democracia brasileira adquiriu autonomia funcional, uma vez que todas as forças políticas relevantes aceitam submeter – e não há outra alternativa – seus interesses e valores às incertezas do jogo democrático.
Efetivamente, até aqui – e isto há de continuar assim – tais forças políticas não colocam em xeque as linhas básicas do Estado de Direito, ainda que alguns movimentos sociais de caráter fortemente reivindicatório atuem, às vezes, na fronteira da legalidade.
Nesses casos, é preciso que haja firmeza por parte das autoridades constituídas. O direito de reunião e de liberdade de opinião devem ser respeitados e assegurados.
A agressão aos direitos de terceiros e da comunidade em geral deve ser repelida imediatamente com os instrumentos fornecidos pelo Estado de Direito, sem embaraços, sem tergiversações, sem leniências.
O Judiciário tem grande responsabilidade no contexto dessas violações e deve atuar com o rigor que o regime democrático impõe.
Não tem sido pequeno o desafio confiado a esta Corte.
Dia após dia, o Supremo Tribunal Federal vê-se confrontado com a grande responsabilidade política e econômica de aplicar uma Constituição repleta de direitos e garantias fundamentais de caráter individual e coletivo.
À demanda cada vez maior da sociedade, a Corte tem respondido, demonstrando profundo compromisso com a realização dos direitos fundamentais.
Temos julgado casos históricos, em que discutidas questões relacionadas ao racismo e ao anti-semitismo, à progressão de regime prisional, à fidelidade partidária, e ao direito da minoria de requerer a instalação de comissões parlamentares de inquéritos, entre outros.
Já iniciamos o julgamento de temas relevantes sobre aborto, pesquisas com células-tronco e prisão civil do depositário infiel, no qual estamos a discutir o significado dos tratados de direitos humanos na ordem jurídica brasileira.
A propósito, ressalte-se a necessidade de que esta Corte esteja atenta aos avanços do Direito Internacional, especialmente no contexto da integração regional. Urge contribuir para a consolidação da comunidade sul-americana e latino-americana também no plano jurídico e judicial.
Os direitos fundamentais de caráter processual e as garantias objetivas para a proteção da ordem constitucional têm merecido tratamento ímpar por parte desta Corte, a ponto de formarem, nesse aspecto, um dos sistemas constitucionais mais completos do mundo.
Ao exigir o respeito às garantias do devido processo legal e das liberdades em geral, o Supremo, além de agir como guardião da Constituição, impede que o Estado Constitucional seja transformado em Estado de Polícia.
O cumprimento dessas complexas tarefas, todavia, não tem o condão de interferir negativamente nas atividades do legislador democrático.
Não há “judicialização da política”, pelo menos no sentido pejorativo do termo, quando as questões políticas estão configuradas como verdadeiras questões de direitos.
Essa tem sido a orientação fixada pelo Supremo, desde os primórdios da República.
É certo, por outro lado, que esta Corte tem a real dimensão de que não lhe cabe substituir-se ao legislador, muito menos restringir o exercício da atividade política, de essencial importância ao Estado Constitucional.
Democracia se faz com política e mediante a atuação de políticos.
Quando se tenta depreciar ou execrar a atividade política está-se a menosprezar a consciente opção de todos os brasileiros pelo regime democrático.
De igual forma, qualquer obstáculo erguido em opo­sição ao poder-dever de legislar – de que é exemplo o já desgastado modelo de edição de medidas provisórias – afeta a construção de um processo democrático livre e dinâmico.
Nesse sentido, é necessário que se encontre um modelo de aplicação das medidas provisórias que possibilite o uso racional desse instrumento, viabilizando, assim, tanto a condução ágil e eficiente dos governos quanto a atuação independente dos legisladores.
Os Poderes da República encontram-se preparados e maduros para o diálogo político inteligente, suprapartidário, no intuito de solucionar um impasse que, paralisando o Congresso, embaraça o processo democrático.
De fato, nos Estados constitucionais contemporâneos, legislador democrático e jurisdição constitucional têm papéis igualmente relevantes. A interpretação e a aplicação da Constituição são tarefas cometidas a todos os Poderes, assim como a toda a sociedade.
A imanente e aparente tensão dialética entre Democracia e Constituição, entre direitos fundamentais e soberania popular, entre jurisdição constitucional e legislador democrático é o que alimenta e engrandece o Estado de Direito, tornando-lhe possível o desenvolvimento no contexto de uma sociedade aberta e plural, baseada em princípios e valores fundamentais.
A ênfase em uma agenda social, que em muito transcende aspectos meramente formais, está estampada logo no início da Carta Constitucional.
A ampla proclamação de direitos pela Constituição serviu de estímulo a que as instituições de representação da sociedade civil se mobilizassem em favor da concretização daquelas promessas constitucionais. Não há dúvida de que, a partir de 1988, a sociedade civil brasileira saiu fortalecida.
A verdade é que essa constitucionalização, para muitos de caráter simbólico, engendrou o surgimento de organizações sociais envolvidas criticamente na realização dos valores proclamados solenemente no texto constitucional.
Convive-se hoje com uma multiplicação de movimentos sociais voltados à defesa de diversos interesses, como o da igualdade racial, o do meio ambiente, o da reforma agrária, os interesses dos indígenas, o do consumidor, entre outros.
Na luta política pela ampliação da cidadania, reivindica-se diuturnamente a concretização desses programas, até mesmo mediante a judicialização das mais diversas pretensões.
Por certo, em um país como o Brasil, em que o acesso a direitos sociais básicos ainda não é garantido a milhões de pessoas, não surpreende a generosidade do Poder Constituinte a refletir a perspectiva de que o Estado constitucional também é um espaço de síntese e de proclamação de esperanças que, historicamente, foram esquecidas.
Nesse contexto também mostra-se relevante o papel da jurisdição constitucional na consolidação desse ambiente democrático. O Brasil tem talvez uma das mais ativas jurisdições constitucionais do mundo, com amplo controle de constitucionalidade, concreto e abstrato.
O Supremo está desafiado a buscar o equilíbrio institucional a partir de procedimentos que permitam uma conciliação entre as múltiplas expectativas de efetivação de direitos com uma realidade econômica muitas vezes adversa.
Daí  invocarem-se, não raramente, o chamado “pensamento do possível” e o próprio limite do financeiramente possível. Nessa perspectiva de análise institucional, o Supremo tem-se mostrado peça-chave na concretização das referidas promessas sociais da Constituição de 1988.
Uma das linhas de aperfeiçoamento da Carta refere-se especificamente à busca de uma ampliação do acesso ao Poder Judiciário pelos setores menos favorecidos da sociedade brasileira.
Há no País uma imensa demanda reprimida, que vem a ser a procura daqueles cidadãos que têm consciência de seus direitos, mas que se sentem impotentes para os reivindicar, porque são intimidados quer pela obsoleta burocracia judicial ou pelo hermetismo dos ritos processuais e da linguagem jurídica.
Em tempos de responsabilidade social, cabe ao Judiciário assumir também a sua cota-parte, saindo do isolamento, tornando-se social e politicamente relevante ao lutar pela inclusão dessas pessoas, protegendo-as efetivamente em seus direitos fundamentais e, por conseqüência, fortalecendo-lhes a crença no valor inquestionável da cidadania.
Não se há de descuidar, entretanto, do contínuo esforço em vencer, vez por todas, a lendária e secular morosidade atribuída à Justiça, a despeito da notória reformulação de quadros e meios do Poder Judiciário brasileiro, com avanços expressivos no tocante à racionalização máxima de procedimentos, sem qualquer prejuízo às garantias constitucionais dos cidadãos.
De fato, são visíveis os acertos representados por medidas como a criação de juizados especiais e a implementação das súmulas vinculantes e, mais recentemente, do instituto da repercussão geral, que hoje representa a grande possibilidade de descompressão no ritmo de atuação do Supremo.
Todo o Judiciário está desafiado a contribuir para esse esforço de racionalização, sem que para isso se efetive, necessariamente, a expansão das estruturas existentes. Assim, a ênfase há de ser colocada na otimização dos meios disponíveis.
A busca incessante pela melhoria da gestão administra­tiva, com a diminuição de custos e a maximização dos recursos, resultará seguramente no aperfeiçoamento do serviço público de prestação da justiça.
Se, por um lado, a multiplicação de processos em escala exponencial corrobora o forte ‘protagonismo’ do sistema judicial, ou seja, a ampla aceitação, pelos brasileiros, do primado do Direito, da jurisdição como via institucional de resolução de conflitos, por outro é grave indício de que há necessidade de se debelar a cultura “judicialista” que se estabeleceu fortemente no País, segundo a qual todas as questões precisam passar pelo crivo judicial para serem resolvidas, o que faz o Judiciário ser chamado a atuar na solução de questões cotidianas, mais afetas às atribuições de competência de setores administrativos.
Somente dessa maneira o Judiciário deixará de ser o único escoadouro – como se estivesse entre as próprias funções a de atuar como provedor social – dos reclamos mais iminentes da cidadania, das demandas impulsionadas pelo direito de resistência de comunidades carentes.
Sob esse aspecto, é hora de a sociedade civil, as organizações não governamentais, as entidades representativas de classe e órgãos como a Defensoria Pública, por exemplo, mobilizarem-se para combater esse quase hábito nacional de exigir a intermediação judicial para fazer-se cumprir a lei.
Na imensa maioria dos casos, a conciliação e a aplicação direta do Direito pelos diversos órgãos e agentes se afiguram alternativas vantajosas para os envolvidos na contenda, dada a minimização dos procedimentos, dos custos e do tempo despendido.
Por mais eficiente que se torne, o Judiciário não pode tudo. Não devemos cair na tentação da onipotência e da onipresença em todas as questões de interesse da sociedade.
À esfera da política cabe a formulação de políticas pú­blicas, cumprindo ao Poder Judiciário, nessa seara, o papel de guardião da Constituição e dos direitos fundamentais.
A intervenção judicial assume aqui caráter marcadamente corretivo, até mesmo em face de determinações constitu­cionais.
Juntos, afinados com o fundamental objetivo de aprimorar as instituições, de maneira a ajustá-las às inevitáveis mudanças socioculturais compatíveis com o desenvolvimento tecnológico do mundo pós-moderno, os Poderes da República hão de continuar trabalhando de maneira harmônica para a expansão do modelo democrático estabelecido em 1988, que, apesar de jovem, comprova incontestável e definitiva consolidação.
De minha parte, agradeço a oportunidade que me foi dada – e nisso relembro a honrosa indicação, para esta Corte, do presidente Fernando Henrique Cardoso –, para participar mais diretamente desse contínuo processo de construção e aperfeiçoamento da democracia constitucional brasileira.
Saúdo a ministra Ellen Gracie pela proficiente gestão à frente desta Corte e a todos os meus pares, a quem agradeço a confiança e com quem continuo contando para bem conduzir o Poder Judiciário brasileiro.