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Breves considerações sobre o Contrato de Comissão

31 de agosto de 2010

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No presente e simplório estudo, não nos propomos a esgotar o tema. A intenção é, apenas, trazer alguma luz ao instituto do contrato de comissão. Nesse aspecto, tal propósito se apresentou um tanto desafiador, porque o contrato de comissão se configura um instrumento que não tem fim em si mesmo, pois é contrato preparatório de outros. No entanto, pudemos aferir que se trata de um instrumento muito interessante e que se mostra como sendo uma ferramenta muito útil aos operadores do direito.
Vejamos os motivos: a expressão “comissão” vem do latim commissione que significa “incumbência”, “atribuição de uma tarefa a alguém”, ”ato de cometer, de encarregar” que já teve, ao longo da história, várias acepções. A acepção do presente estudo é a prevista nos arts. 693 a 709 do CC, os quais regem o contrato de comissão mercantil e a sua realização através do ajuste de vontades entre partes contratantes para a realização, por uma delas, de negócios mercantis, de interesse da outra parte.
Na lição de Maria Helena Diniz, contrato de comissão é o contrato pelo qual uma pessoa (comissário) adquire ou vende bens em seu próprio nome e responsabilidade, mas por ordem e conta de outrem (comitente), em troca de certa remuneração, obrigando-se para com terceiros, com quem contrata.
Para o ilustre professor Humberto Theodoro Junior: “É, pois, um contrato em que se estabelece um mandato, mas que com este não se confunde porque, a despeito de haver cometimento de encargo a terceiro para que pratique ato ou celebre contrato em benefício do mandante, não agirá o comissário em nome do comitente, mas em seu próprio nome. Diz-se correntemente que se trata de um mandato sem representação, justamente porque não tem poderes o comissário de obrigar a pessoa do comitente perante terceiros. (…) Pode-se conceituá-lo, pois, como uma modalidade excepcional de mandato que autoriza o comissário a agir em se próprio nome e sob sua exclusiva responsabilidade”. (Contrato de Comissão no Novo Código Civil. in Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, Porto Alegre, v. 5, n. 25, p. 110).
Com a entrada em vigor do novo Código Civil em 2002, os arts. 165 a 190 do Código Comercial de 1850 que disciplinavam a matéria foram revogados, não sendo mais necessária a distinção entre comissão mercantil e civil, além do comissário não precisar ser necessariamente empresário, tendo em vista a ausência de previsão legal.
A comissão, na linguagem antiga do Código Comercial, seria um mandato sem representação, um contrato de colaboração empresarial. Ao contrário do mandato, entretanto, o comissário não representa, nos negócios que pratica, o comitente. O comissário adquire ou vende bens à conta do comitente, mas contrata em nome próprio, e não em nome da empresa a que presta colaboração (art. 693), figurando, portanto, como parte no contrato. Ao contrário do mandato, o comissário não gere os negócios do comitente, tampouco age como seu procurador o que dispensa a apresentação de documento que o habilite. Para que a comissão seja devida e o contrato respeitado é necessário a conclusão dos negócios por sua conta e em seu próprio nome (o que por si descaracteriza, portanto, a representação).
Significa dizer que o comissário obriga-se diretamente perante terceiros e que a sua presença na realização do negócio afasta totalmente o comitente do terceiro que com aquele negocia. Assim, as relações jurídicas são distintas: uma é interna, entre o comitente e o comissário, e a outra é externa, entre o comissário e o terceiro com quem negocia, o que reflete uma certa autonomia daquele. Inexiste em decorrência disso, relação jurídica entre o terceiro e o comitente, permitindo que este, inclusive e se for do seu interesse, mantenha-se literalmente e juridicamente estranho/desconhecido do terceiro com quem o comissário negocia.
É importante registrar que, como não poderia deixar de ser, por cuidar dos interesses do comitente, o comissário deve agir de acordo com suas ordens e instruções, devendo agir com cuidado e diligência, tanto para evitar-lhe prejuízos como para, e principalmente, proporcionar o lucro e/ou o objetivo para o qual foi contratado. Ao se afastar das instruções do comitente, acarretando-lhe prejuízos, responde o comissário, exceto nos casos fortuitos ou, como regra geral, em caso de insolvência dos terceiros com quem contratar.
Há ainda a hipótese de pactuação prévia de cláusula del credere, expressão em latim que, traduzida, significa “da confiança”. Quanto é feito tal pacto no contrato de comissão, o comissário se torna responsável solidário (perante o comitente) das obrigações contraídas pelas pessoas por ele contratadas, o que garante dessa maneira a execução do contrato, no todo ou em parte. Como se afigura maior risco assumido, normalmente o comissário faz jus, nesses casos, a um acréscimo na remuneração (comissão).
Já no que se refere à obrigatoriedade de prestação de contas e de seguimento das ordens e instruções do comitente na prática das atividades decorrentes de seu cargo, o comissário terá os excessos que praticar justificados, quando destes decorrer vantagem ao comitente ou ainda quando a conclusão do negócio se faz necessária, sem retardo, e, mantenha suas ações em conformidade com os usos. Em qualquer outro caso, que não esses, havendo aprovação do comitente, ainda que tácita, estará saneado o excesso.
Para efeitos didáticos e quem sabe acadêmicos, podemos pontuar que o contrato de comissão é:

i)    bilateral, por criar obrigações recíprocas tanto para o comissário como para o comitente;
ii)    consensual, tendo em vista bastar o simples consenso entre o comissário e o comitente, independe da entrega do bem;
iii)    não solene, ou seja, sem exigências legais de formalidade;
iv)    oneroso, pois obriga o comitente a recompensar moneta­riamente o comissário pelos serviços prestados, e;
v)    pessoal, em virtude da presença do intuitus personae. Assim, apenas o contratado poderá cumprir a obrigação, sendo obrigação intransferível, gerando a presunção de confiança mútua entre o comitente e o comissário, que pode ser tanto pessoa física quanto jurídica.

Além de concluir o negócio em seu próprio nome, o comissário tem como obrigação:

i)    seguir as ordens e instruções do comitente, ou na ausência destas, observar os usos e costumes da praça onde o negócio se realiza, com cuidado e diligência;
ii)    comunicar o comitente assim que concluído o negócio, informando o nome do terceiro beneficiário e as datas ajustadas para pagamento;
iii)    informar a ocorrência de avarias nas mercadorias ou divergência entre valores;
iv)    prestar contas através da transferência dos valores angariados com a transação, ficando a seu cargo as deduções autorizadas pela lei;
v)    pagar juros pela mora na entrega dos fundos que pertencerem ao comitente, e;
vi)    se responsabilizar pela guarda e conservação dos bens do comitente.
vii)    relativamente a terceiros, o comissário se responsabiliza pelas obrigações contraídas, visto que o contrato é celebrado em seu nome, assim como, por perda e extravio de dinheiro.

Em contrapartida o comissário tem o direito de ser reembolsado dos valores eventualmente gastos na celebra­ção dos negócios contraídos por conta do comitente, com juros (a não ser que pagos antecipadamente), além de ter o direito a:

i)    reter bens e valores, antes do repasse ao comitente, para garantir o pagamento de sua comissão ou o reembolso de despesas;
ii)    ser indenizado, no caso de prejuízos decorrentes da atividade que exercer, também acrescido de juros, quando cabível;
iii)    ser remunerado pelos atos negociais praticados, ainda que proporcionalmente no caso de impossibilidade de conclusão, que independa de sua vontade;
iv)    perceber perdas e danos, além da remuneração devida e pactuada, quando dispensado sem justa causa;
v)    dilatar prazos para pagamento, exceto quando houver instrução contrária do comitente, e;
vi)    gozar de crédito privilegiado no caso de falência ou insolvência do comitente.

O comitente tem por obrigação precípua remunerar o serviço do comissário, ainda que proporcionalmente quando não concluído por: motivo de força maior, morte e dispensa com ou sem justa causa do comissário. Também é obrigado a:

i) fornecer fundos para possibilitar a realização de negócios;
ii)    ressarcir as despesas realizadas pelo comissário nos atos decorrentes da atividade de comissão, com juros;
iii) executar o contrato celebrado, de acordo com suas instruções, pelo comissário;
iv)    pagar juros pelos valores adiantados pelo comissário para conclusão de negócios decorrentes de instruções suas.

De outra borda, o comitente tem direito a mover ação, contra o comissário, pelos atos de comissão praticados em desrespeito à previsão legal, e diretamente contra os terceiros quando o comissário lhe ceder seus direitos, bem como a:

i)    exigir que o comissário pague, imediatamente, valores não recebidos em decorrência de dilação de prazo concedida contrariamente às suas orientações, ou até mesmo quando não lhe for dado conhecimento sobre nomes e datas de pagamentos;
ii)    alterar as instruções passadas ao comissário, que deverão ser observadas inclusive para negócios pendentes;
iii)    reivindicar valores e bens que sejam de sua propriedade e estejam em poder do comissário e receber diretamente dos terceiros que com este contrataram, no caso da falência ou insolvência deste.

Na doutrina dominante prevalece a exegese extraída do art. 694, o qual prevê que: “O comissário fica diretamente obrigado para com as pessoas com quem contratar, sem que estas tenham ação contra o comitente, nem este contra elas, salvo se o comissário ceder seus direitos a qualquer das partes”.
No entanto, alguns juristas e estudiosos já ousam inovar sobre o dispositivo legal, prosperando, na doutrina mais recente, opinião contrária, no sentido de que, por exercer direito próprio, o comitente, independentemente de cessão de direitos do comissário, pode exigir o cumprimento do contrato diretamente do terceiro.
Orlando Gomes apresenta a figura do comissário como titular formal do crédito, alegando que nesta condição é que deve reclamar o pagamento. Todavia, segundo seu ponto de vista, o direito de ação do comissário não impede que o comitente promova diretamente a realização do crédito, visto que é a ele que interessa o recebimento. Assim, por duas formas poderia se dar o confronto do comitente com o terceiro: diretamente (conforme nova doutrina) ou por cessão dos direitos do comissário (hipótese ausente de controvérsia quanto a seu cabimento).
Fábio Ulhoa Coelho, explicitando as características da comissão mercantil, ensina: “Acentue-se que as negociações levadas a efeito pelo comissário atendem, na verdade, aos interesses do comitente, sendo, por esta razão, empreendidas por conta e risco deste último. Assim, todos os riscos comerciais do negócio cabem, em princípio, ao comitente. Mesmo na comissão del credere, correm por conta do comitente os demais riscos, como o de vício na coisa vendida ou evicção.”
Para Waldemar Ferreira, citado por Bulgarelli, o Código Comercial afastou, peremptoriamente, “qualquer relação entre o comitente e o terceiro que interveio no negócio em seu prol realizado pelo comissário. O comissário, reza o art. 166, ‘fica diretamente obrigado às pessoas com quem contratar, sem que estas tenham ação contra o comitente, nem este contra elas’. Eis o ponto saliente. Não age o comissário como representante do comitente. Este é inteiramente estranho ao negócio jurídico levado por aquele a cabo. Se, todavia, quiser nele intervir, será indispensável outro negócio jurídico — a cessão de direito, para que lhe suceda na relação jurídica: ‘salvo se o comissário fizer cessão dos seus direitos a favor de uma das partes’.” (FERREIRA, Waldemar. Aspectos econômicos e financeiros do contrato de comissão mercantil. Revista de Direito Mercantil, 1953, ano III, n. 2.403, p. 100-101. apud BULGARELLI, Waldirio. Contratos Mercantis. 8 ed. São Paulo: Atlas, 1995. n. 2.13.10, p. 496) — sublinhou-se.
Enfim, afora a discussão jurídica acerca do direito do comitente de, independentemente de cessão de direitos do comissário, exigir o cumprimento do contrato diretamente do terceiro, concluímos que o contrato de comissão é um instrumento jurídico muito interessante e que pode ser brilhantemente utilizado para celebração de negócios jurídicos simples, bem como para celebração de negócios jurídicos de alta complexidade e relevância.