Bicentenário do Júri no Brasil

30 de agosto de 2022

Peterson Barroso Simão Desembargador do TJRJ / Presidente do Instituto dos Magistrados do Brasil

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O Tribunal do Júri é uma instituição fundamental, popular, democrática, jurídica e constitucional a serviço da sociedade na distribuição de Justiça, e são os operadores do Direito, ao lado dos jurados, que dão vida e forma a esse trabalho.

Nesse sentido, o Júri conduz a Justiça para mais perto dos cidadãos, sobretudo daqueles oriundos do lugar onde ocorreu o fato, que proferem julgamentos soberanos. O exemplo da resposta penal é lançado à divulgação da sociedade para coibir os ilícitos penais, caso o réu não seja absolvido.

A origem vem das civilizações antigas, desde os primeiros agrupamentos humanos, passando pela Grécia e Roma até chegar de maneira formal na Inglaterra e, posteriormente, na França, sendo difundido assim pelos demais países.

No Brasil, o Júri teve início em 18 de junho de 1822, por decreto do príncipe regente Dom Pedro I. Posteriormente, com a promulgação da Constituição de 1824, foi estabelecida expressamente a instituição do Júri.

A Proclamação da República em 1889 não alterou a estrutura da instituição. Da mesma forma, a Constituição de 1891, manteve a soberania do Júri. 

A previsão constitucional permaneceu com a promulgação da Carta de 1934, mas foi suprimida em 1937. Em 1946, há um retorno da figura do Tribunal do Júri na Constituição, que dispôs sobre o tema na parte relativa aos direitos e às garantias individuais.

A Carta de 1967 impôs uma nova ordem constitucional, no entanto, conservou a previsão do Júri, na forma da Constituição anterior. A Emenda Constitucional de 1969, embora tenha mantido o Júri, omitiu a referência de sua soberania.

A Constituição Federal de 1988, no art. 5º, inciso XXXVIII, consagrou definitivamente o Tribunal do Júri como cláusula pétrea, prevendo a soberania dos veredictos, a plenitude de defesa, o sigilo das votações e a competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida, a saber: homicídio, infanticídio, aborto e induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio.

A consciência do dever de todos que militam no Tribunal do Júri é essencial à realização do evento. Portanto, juiz, promotor, advogado, defensor público, serventuários, oficiais de justiça e jurados precisam de uma dose especial de prudência, paciência e vontade sistemática e equilibrada de entregar o resultado penal no fim das sessões, cabendo a cada um fazer a sua parte com eficiência e respeito.

Não é raro, às vezes, ter que improvisar e praticar atos legais não previstos, mas necessários. Certa vez, uma jurada grávida teve uma indisposição na parte final da sessão. A oficial de justiça comunicou a situação. O julgamento foi suspenso e um médico foi chamado para o atendimento. Felizmente, não foi nada grave. A Sessão Plenária recomeçou depois de uma hora, com resposta penal em seguida.

De outra vez, um parente de um jurado faleceu enquanto era realizada a sessão. O julgamento foi paralisado para que fosse comunicado o infortúnio. Como era algo já esperado de alguém muito doente, o próprio jurado pediu para reiniciar o ato, tudo com o objetivo comum, cumprir com o nosso dever.

Por isso, quem desejar trabalhar no Júri deve saber que é exigido algo mais de todos os operadores do Direito.

Quando um Júri ocorre na cidade, muitos ficam sabendo do resultado e do exemplo. Quando um caso de estupro ou sequestro é julgado com penas altíssimas, a divulgação para coibir atitudes ilegais semelhantes, em regra, possui pouquíssima repercussão.

Como já dito, é importante ter fé e acreditar. Muitas vezes improvisar, como no caso abaixo que é narrado como “Júri à luz de velas”.

Aconteceu no antigo Fórum de Niterói, então prestes a completar 90 anos de importante existência e já deixando saudade, pois o Tribunal do Júri foi transferido para um moderno e estruturado prédio em frente. Tratava-se do segundo julgamento de dois réus presos, sendo que o primeiro não ocorreu na semana anterior por absoluta falta de energia elétrica, em virtude do estouro de um transformador.

Por volta das 17h30min, já havíamos colhido grande parte da prova consistente dos depoimentos de cinco testemunhas e de dois interrogatórios. Novamente faltou a energia elétrica. A comunicação com a Diretoria e a empresa responsável pelo fornecimento não surtiu efeito imediato. O que fazer? Estávamos naquela situação em que os pilotos de avião chamam de no return. Suspendemos o julgamento e esperamos por mais meia hora e nada. Fizemos a impressão dos últimos depoimentos com a ajuda do serviço de informática, que trouxe aparelho apropriado (adaptador para bateria).

Infelizmente, nada de energia e a luz do final da tarde se esvaía lentamente. O que fazer? Era a pergunta que não tinha resposta. Dissolver o Conselho de Sentença seria o caminho mais fácil e cômodo, mas o último a seguir, pois a resposta penal já havia sido adiada da outra vez. Além disso, haveria necessidade de aplicar as consequências legais, inclusive analisar o relaxamento da prisão.

O céu escurecia aos poucos, o portão principal do plenário e as janelas que ficam próximas da rua já não traziam luz. Então, surgiu a ideia de acender seis ou sete velas para continuarmos o trabalho em harmonia e serenidade. Foi preservada a incomunicabilidade e afastado qualquer tormento que pudesse afetar a isenção dos jurados. Nenhum prejuízo foi constatado ou alegado em desfavor das partes.

Produzidas e encerradas as provas, restavam os debates. O promotor de justiça não se opôs ao prosseguimento, considerando que não faria leitura de peças. Sustentaria, como sustentou a acusação, oralmente, sem necessidade de manusear o processo. A penumbra de luz deu um toque de extrema responsabilidade a cada um e a todos. Ao término de suas razões de 1h30min, a energia elétrica foi restabelecida. A defesa por igual período também fez sua brilhante exposição. Por volta das 22h, a prestação jurisdicional foi cumprida com a leitura da sentença.

A instituição do Júri como importante instrumento constitucional e popular, mais uma vez mostrou que o compromisso de fazer Justiça está acima dos esforços comuns e normais. Os operadores do Direito que militam neste Tribunal do Povo – promotor, defensor, advogado, serventuários, oficiais, técnicos de informática e, principalmente, os jurados, têm a consciência inequívoca dos respectivos deveres perante a sociedade. Quando isso ocorre, não é impossível trabalhar sem a invenção de Thomas Edison, e assim os obstáculos do dia a dia podem ser superados. 

Que Deus, de quem tudo dependemos, permita-nos transportar os frutos dos ensinamentos jurídicos e factuais adquiridos com o firme propósito de aperfeiçoar a distribuição de Justiça.

Enfim, a Instituição do Júri, que pertence ao Poder Judiciário especializado, é importante instrumento de efetivação da Justiça. E, por isso, não pode passar em branco, devendo ser prestigiada nos 200 anos de sua existência.