Arguição de Inconstitucionalidade

5 de novembro de 2004

Da Redação

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Nº. 4/2004 PROCESSO Nº. 2002.017.00004

TRIBUNAL DE jUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

ÓRGÃO ESPECIAL

RELATOR: DESEMBARGADOR CELSO MUNIZ GUEDES

Constitucionalidade e inconstitucionalidade designam conceitos de relação: a relação que se estabelece entre uma coisa – a Constituição –  e  outra coisa – um comportamento – que lhe está ou não conforme, que cabe ou não cabe no seu sentido, que tem nela ou não a sua base.

A inconstitucionalidade não é um vício, embora em concreto resulte de um vício que inquina o comportamento de qualquer órgão de poder.

Não redunda, desde logo, em invalidade, embora a determine ou possa determinar.

Nem é um valor jurídico negativo, embora a invalidade constitucional acarrete nulidades constitucionais.

O Tribunal, como qualquer tribunal, decide uma questão jurídica – a da constitucionalidade ou da legalidade uma norma – à luz da norma aplicável – que é a norma constitucional ou legal, sem embargo de repercussões ou conotações políticas, ele não define ou prossegue o interesse público (ou interesse público primário) como os órgãos de função política sequer faz interpretação autêntica da Constituição.

Lição do Constitucionalista JORGE MIRANDA, da Universidade de Lisboa.

Controle incidental pelo Órgão Especial a que se refere o art. 93, XI, da Constituição Federal. Sistema difuso. Prejudicial.

Julgamento per saltum.

Inteligências dos arts. 482, do CPC, e 99 e seguintes do Regimento Interno desta egrégia Corte.

Embargos do devedor.

Art. 730, do CPC : o prazo para oferecimento é de 10 (dez) e não de 30 (trinta) dias.

Privilégio à Fazenda Pública em testilha com o art. 62, § 1º, inciso I, alínea “b”, da Constituição Federal, à ótica da Emenda Constitucional nº 32/2001.

Vedação de Medidas Provisórias sobre matéria relativa a direito processual civil.

Inconstitucionalidade do dispositivo em tela, em virtude da redação que lhe foi atribuída pela Medida Provisória nº 2.186-35/2001, alterando a Lei nº. 9.494/97. Procedência da argüição.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Argüição de Inconstitucionalidade nº 04/2002, em que é Argüente: EGRÉGIA 4ª CÂMARA CÍVEL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, tendo por objeto: MEDIDA PROVISÓRIA nº 1.984-22/2000 (UNIÃO) e Interessados: 1) ESTADO DO RIO DE JANEIRO e 2) ERO EMPREENDIMENTOS E PARTICIPAÇÕES S/A,

ACORDAM os Desembargadores que compõem o egrégio Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por unanimidade de votos, em julgar procedente a argüição, nos termos do voto do Des. Relator. Custas ex lege.

Cogitam os autos de argüição de inconstitucionalidade em que é argüente a Egrégia 4ª Câmara Cível, mercê de v. acórdão, adunado a fls. 51/53, com a seguinte ementa da Relatoria do preclaro Des. Sidney Hartung, verbis:

APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. ART. 730, DO CPC.

A M.P. nº. 1.984-22 não tem o condão de revogar o dispositivo processual quanto ao prazo de propositura dos Embargos à Execução, observando-se que o interesse difuso não permite a aplicabilidade de dispositivo que investe contra princípios constitucionais, relevando-se, ainda, o fato de que as Medidas Provisórias não podem permanecer atuando ininterruptamente.Inconstitucionalidade da norma inserta no art. 730, caput, do CPC, com a nova redação dada pela Medida Provisória nº. 1.984-22/00 e suas ulteriores reedições; e, em atendimento ao previsto no art. 481, do CPC, determina-se a remessa dos autos ao Órgão Especial, face à cisão funcional de competência vertical, a fim de ser apreciada a questão constitucional para, após, possibilitar o julgamento do pedido.

SUSPENSÃO DO JULGAMENTO.ENCAMINHAMENTO DOS AUTOS AO ÓRGÃO ESPECIAL.

A argüente sustenta a inconstitucionalidade formal do dispositivo do Código de Processo Civil, sob o fundamento de que não poderia a medida provisória revogá-lo, por ausentes os requisitos de urgência e relevância da matéria tratada pela norma.

No caso concreto, o Estado do Rio de Janeiro ajuizou embargos de devedor, indeferidos liminarmente, por intempestivos, eis que ultrapassado o prazo de 10 (dez) dias, previsto na redação original do art. 730, do CPC.

Inconformado, interpõe apelação (fls. 10), invocando o dispositivo com a redação dada pela Medida Provisória nº 1.984, então em sua 22ª reedição, para sustentar que o prazo teria sido ampliado para 30 (trinta) dias.

Fundamenta sua pretensão no disposto no art. 62, da Constituição Federal, segundo o qual as normas constantes de medida provisória têm força de lei.

O apelado, por seu turno, afirma que “a medida provisória é um instrumento legislativo excepcional, só podendo ser utilizada em casos de relevância e urgência”, circunstâncias que não se verificam na espécie (fls. 29).

O Ministério Público manifestou-se sobre a apelação, em 1º grau, pelo desprovimento do recurso, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da norma (fls. 35), em 2º grau, opinou pelo desprovimento (fls. 44).

A douta Procuradoria de Justiça, junto a esta Egrégia Corte, manifestou-se a fls. 59/62, em judicioso parecer da lavra da ilustre Procuradora de Justiça, Drª. Heloísa Carpena Vieira de Melo, pela procedência do pedido, sob a chancela da seguinte ementa, verbis:

“ARGÜIÇÃO DE INSTITUCIONALIDADELIDADE.

MEDIDA PROVISÓRIA nº 1.984-22/2000.

REVOGAÇÃO DO ART. 730, DO CPC.

PRAZO PARA AJUIZAR EMBARGOS EM EXECUÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA.

URGÊNCIA E NECESSIDADE NÃO CARACTERIZADAS.

POSSIBILIDADE DE CONTROLE PELO JUDICIÁRIO.

PROCEDÊNCIA DO PEDIDO’’.

TUDO VISTO E BEM PONDERADO.

Assiste razão ao apelado, devendo-se reconhecer a inconstitucionalidade do dispositivo da lei processual, alterado pela Medida Provisória nº. 1.984, que, evidentemente, não poderia dispor sobre matéria que não se reveste dos requisitos de urgência e relevância, criando apenas mais um privilégio para a Fazenda Pública.

O exercício de funções legislativas pelo Executivo, face ao princípio da separação de poderes, é excepcional.

O que justifica e legitima a edição de medidas provisórias é a existência de um estado de necessidade, a exigir do Poder Executivo a adoção imediata de providências de caráter legislativo, as quais não poderiam ser alcançadas pelo regular processo de produção de normas, dada a premência do tempo e a ameaça concreta de perecimento de direitos ou frustração de um objetivo político determinado.

Não resta dúvida quanto à possibilidade de controle pelo Judiciário, eis que se trata de requisito de caráter jurídico e objetivo.  A jurisprudência do egrégio Supremo Tribunal Federal ampara a tese, como se vê do v. aresto adiante transcrito, verbis:

“Os conceitos de relevância e urgência a que se refere o art. 62, da  Constituição, como pressupostos para a edição de medidas provisórias, decorrem, em princípio, do juízo discricionário de oportunidade e valor do Presidente da República, mas admitem o controle judiciário quanto ao excesso do poder de legislar”.

(ADIn nº 162-1/DF – DJU de 19/09/97).

Como já advertira o Ministério Público em seu alentado parecer de fls. 35/39, o Judiciário foi assumindo paulatinamente sua atividade de controle destes atos legislativos anômalos, em especial a partir do julgamento da ação direta de inconstitucionalidade da Medida Provisória nº 1.577-6/97, que, tal como ocorre na espécie, revogava dispositivos da lei processual para criar novos privilégios para a Fazenda Pública, ampliando prazos e hipóteses de propositura de rescisórias quando esta fosse autora.

Nesse julgamento, foi afirmada não só a possibilidade de controle das medidas provisórias, no tocante aos requisitos constitucionais, como também a própria ausência destes no caso concreto, em tudo semelhante a este de que cuidam os autos, tratando de reforma legislativa processual tendente a aumentar a desigualdade entre as partes, em benefício do Estado.

Merece registro o trecho da decisão do colendo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADIn nº 1.753/DF (Pleno, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, DJ do dia 12/06/98), verbis:

“Ação rescisória: MProv. 1577-6/97, arts. 4º e parágrafo único: a) ampliação do prazo de decadência de dois para cinco anos, quando proposta a ação rescisória pela União, os Estados, o DF ou os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações públicas (art. 4º) e b) criação, em favor das mesmas entidades públicas, de uma nova hipótese de rescindibilidade das sentenças – indenizações expropriatórias ou similares flagrantemente superior ao preço de mercado (art. 4º, parág. único): argüição plausível de afronta aos arts. 62 e 5º, I e LIV, da Constituição: conveniência da suspensão cautelar: medida liminar deferida. 1. Medida provisória: excepcionalidade da censura jurisdicional da ausência dos pressupostos de relevância e urgência à sua edição: raia, no entanto, pela irrisão a afirmação de urgência para as alterações questionadas à disciplina legal da ação rescisória, quando, segundo a doutrina e a jurisprudência, sua aplicação à rescisão de sentenças já transitadas em julgado, quanto a uma delas – a criação de novo caso de rescindibilidade – é pacificamente inadmissível e quanto à outra – a ampliação do prazo de decadência – é pelo menos duvidosa. 2. A igualdade das partes é imanente ao procedural due process of law; quando uma das partes é o Estado, a jurisprudência tem transigido com alguns favores legais que, além da vetustez, têm sido reputados não arbitrários por visarem a compensar dificuldades da defesa em juízo das entidades públicas; se, ao contrário, desafiam a medida da razoabilidade ou da proporcionalidade, caracterizam privilégios inconstitucionais: parece ser esse o caso das inovações discutidas, de favorecimento unilateral aparentemente não explicável por diferenças reais entre as partes e que, somadas a outras vantagens processuais da Fazenda Pública, agravam a conseqüência perversa de retardar sem limites a satisfação do direito do particular já reconhecido em juízo. 3. Razões de conveniência da suspensão cautelar até em favor do interesse público”.

Ademais, o egrégio Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento sobre o excogitado diploma legal, conforme decidido no Resp. nº 181.221/RS, sendo Relator o Ministro Peçanha Martins, publicado na Revista de Jurisprudência do STJ nº 135/264, verbis:

“Processual Civil.

Execução de sentença.

INSS.

Embargos do devedor.

Prazo da oposição.

Medida Provisória nº. 1.523/1997 está estreitamente vinculada à Lei nº. 8.213/1991.

Somente nas execuções de sentença de causas relativas a benefícios previdenciários, o prazo para oposição de embargos é de trinta   dias.

Recurso especial conhecido, porém, improvido.”

Nestas condições, o Judiciário foi tomando consciência deste seu relevantíssimo papel (especialmente tendo em vista proliferação de medidas provisórias, com dezenas de reedições).

Ademais, em 16/04/98, o Excelso Pretório, no julgamento da ADIMC nº. 1.753/DF (Pleno, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, publicado no DJ 12/06/98), permitiu-se invalidar a Medida Provisória nº. 1.577-6/97, que alargava as hipóteses de cabimento de aumentava os prazos para propositura de ações rescisórias pela Fazenda Pública, sob o argumento de que tal lei careceria de urgência.

Ora, a hipótese sob exame é, em linhas gerais, análoga àquela focalizada pelo Supremo Tribunal Federal: lá, ampliou-se o prazo para embargos.

Entretanto, a manifesta inconstitucionalidade do dispositivo em tela está assentada, sem sombra de dúvida, na vedação de medidas provisórias sobre matéria relativa a direito processual civil, por força da Emenda Constitucional nº 32, de 11/09/2001, dando nova redação ao art. 62, da Carta Magna Federal.

A propósito, colhe-se lição de JORGE MIRANDA, Professor Catedrático na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, in “Teoria do Estado e da Constituição” – Editora Forense – 2002 – fls. 492/493 e 522), verbis:

“Os órgãos de fiscalização da constitucionalidade devem raciocinar não tanto com base em juízos lógico-formais quanto em juízos valorativos, procurando soluções constitucionalmente corretas; descendo ao fundo das coisas e não se contentando com quaisquer aparências. Nunca estará em causa apreciar a oportunidade política desta ou daquela lei ou a sua maior ou menor bondade para o interesse público. Estará ou poderá estar em causa a correspondência (ou não descorrespondência) de fins, a harmonização (ou desarmonização) de valores, a inserção (ou não desinserção) nos critérios constitucionais.

Há ainda quem sustente que o juízo de constitucionalidade (sobretudo em face do princípio da igualdade) não pode deixar de envolver a consideração da razoabilidade da norma ou da solução.

No entanto, razoabilidade é algo que pode ser entendido de diferentes maneiras. Pode equivaler a adequação à ratio Constitucionis, a harmonia de valorações, a proporcionalidade, a respeito do processo eqüitativo (due process of law). Ou pode significar não já adequação teleológica, mas sim adequação lógica, coerência interna da lei, razoabilidade imanente.

Em qualquer das acepções compreendidas na primeira perspectiva, a preterição da razoabilidade redunda ainda em desvio de poder. Já não, ou já não tanto, na segunda ótica, em que desponta o risco de transformar a apreciação da lei ou do ato num exame de técnica legislativa ou num juízo de mérito.

Os grandes pressupostos da fiscalização da constitucionalidade das leis e dos demais atos jurídicos-públicos vêm a ser, primeiro, a existência de uma Constituição em sentido formal, e, em segundo lugar, a consciência da necessidade de garantia dos seus princípios e regras com a vontade de instituir meios adequados.

Não é preciso que haja Constituição formal para que se produza inconstitucionalidade e, muito menos, que a Constituição seja rígida. Basta que haja Constituição em sentido material, e não apenas em sentido institucional. Mas em Constituição material e flexível, como a britânica (e, de certo modo, também em Constituição formal e flexível), a inconstitucionalidade não se configura violação jurídica autônoma e, de qualquer sorte, não se propiciam condições para a organização de uma fiscalização.

Em contrapartida, não é suficiente a emanação de uma Constituição em sentido formal para que o sistema se dote de um aparelho de fiscalização e, muito menos, de uma fiscalização jurisdicional – porque, lógica e historicamente, não se confundem inconstitucionalidade e fiscalização da inconstitucionalidade.  É necessário, além disso, que a supremacia da Constituição se revele um princípio operativo”.

Isto posto, acolhe-se a argüição suscitada, em controle concreto, no sentido de declarar a inconstitucionalidade do disposto no art. 730, do Código de Processo Civil, com a redação da Medida Provisória nº. 2.180-35, de 24/08/2001, alterando a Lei nº. 9.494, de 10/09/1997, em virtude da nova regra insculpida no art. 62, § 1º, inciso I, alínea “b”, da  Constituição Federal, à ótica da Emenda Constitucional nº. 32/2001.

Em seguida, remetam-se os autos à egrégia 4ª Câmara Cível desta colenda Corte, para os devidos fins.