Edição 186
Alterações na Lei Anticorrupção nos acordos de leniência (MP nº 703/2015)
8 de março de 2016
Toshio Mukai Mestre e Doutor em Direito do Estado (USP Especialista em Direito Administrativo, Urbanístico e Ambiental
Anteriormente foi editada a Lei no 12.846, de 1o de agosto de 2013 (Lei Anticorrupção contra pessoas físicas e jurídicas de direito privado), que comentamos, cujo texto foi publicado em diversas revistas jurídicas do País.
Agora, no apagar das luzes de 2015, veio a público a Medida Provisória (MP) no 703, de 18 de dezembro de 2015, que altera aquela Lei para dispor sobre acordo de leniência também a Lei no 8.666, de 1993, somente no que diz respeito às suas sanções administrativas, a Lei no 8.429, de 1992, que trata da Improbidade Administrativa, e a Lei no 12.529, de 2011, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência.
O art. 1o da referida MP deu nova redação ao art. 15 da Lei no12.846/2013, passando ele a ter a seguinte redação:
Art. 15. A comissão designada para apuração da responsabilidade de pessoa jurídica, após a instauração do processo administrativo, dará conhecimento ao Ministério Público de sua existência, para apuração de eventuais delitos. [grifamos]
A antiga redação do citado dispositivo legal permitia que o Ministério Público tomasse conhecimento apenas das conclusões do processo administrativo, que objetiva apurar a responsabilidade da pessoa jurídica que se suspeita tenha cometido ato de corrupção. A nova redação tem o condão de permitir que o Ministério Público tenha conhecimento desde o momento da instauração do citado processo administrativo.
A citada MP também modificou o disposto no artigo 16 da mencionada Lei no 12.846, de 2013, ao estabelecer efetivamente as alterações no acordo de leniência, previsto no último diploma legal, em seus incisos e parágrafos, o que será concluído pelo que foi modificado em outros dispositivos que também serão apontados.
Dispõe a nova redação do art. 16:
Art. 16. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão, no âmbito de suas competências, por meio de seus órgãos de controle interno, de forma isolada ou em conjunto com o Ministério Público ou com a Advocacia Pública, celebrar acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos e pelos fatos investigados e previstos nesta Lei que colaborem efetivamente com as investigações e com o processo administrativo, de forma que dessa colaboração resulte:
I − a identificação dos demais envolvidos na infração, quando couber;
II − a obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou sob investigação;
III − a cooperação da pessoa jurídica com as investigações, em face de sua responsabilidade objetiva; e
IV − o comprometimento da pessoa jurídica na implementação ou na melhoria de mecanismos internos de integridade.
Essas disposições são complementadas com outras contidas em parágrafos e incisos, que também integram o que foi devidamente alterado pela MP em comento.
O § 1oestabelece quais são os requisitos que devem ser preenchidos cumulativamente para que se contemple a possibilidade de celebração do acordo de leniência.
O referido parágrafo teve o seu inciso I revogado pelo disposto na MP em tela. No citado dispositivo legal, era exigido que, para a celebração de acordo de leniência, a pessoa jurídica fosse a primeira a manifestar o seu interesse em cooperar com a apuração do ato ilícito.
A revogação de tal disposição implica que independentemente de ser ou não a primeira a manifestar o interesse em cooperar com a apuração, a pessoa jurídica com envolvimento na prática de ato ilícito poderá firmar acordo de leniência.
Não houve alteração no inciso II do referido parágrafo, mantendo-se, portanto, a necessidade de a pessoa jurídica interessada na formalização de acordo de leniência cessar sua participação no ato ilegal a partir da data da propositura do citado acordo.
O referido parágrafo indica, também, as obrigações da pessoa jurídica para fins de acordo de leniência, e a MP alterou um inciso e acrescentou outro com essa finalidade:
III − a pessoa jurídica, em face de sua responsabilidade objetiva, coopere com as investigações e com o processo administrativo, comparecendo, sob suas expensas, sempre que solicitada, a todos os atos processuais, até seu encerramento; e
IV − a pessoa jurídica se comprometa a implementar ou a melhorar os mecanismos internos de integridade, auditoria, incentivo às denúncias de irregularidades e à aplicação efetiva de código de ética e de conduta.
Duas críticas jurídicas: inexiste, no mundo jurídico, responsabilidade objetiva administrativa e o Ministério Público não pode fazer parte de um órgão do Executivo para celebrar acordos de leniência, sob pena de violação ao princípio da separação de poderes, constitucional.
O § 2o dispõe:
O acordo de leniência celebrado pela autoridade administrativa:
I − isentará a pessoa jurídica das sanções previstas no inciso II do caput do art. 6o(II é “publicação extraordinária da decisão condenatória”) e das sanções restritivas ao direito de licitar e contratar previstas na Lei no8.666/1993, e em outras normas que tratam de licitações e contratos; (Trata-se, aqui, de dar novas oportunidades à pessoa jurídica, dirigida que seja pelas pessoas físicas condenadas criminalmente mas que cumprem a pena em liberdade, de conseguir contratar com o uso dos meios condenáveis de que se utilizaram).
II − poderá reduzir a multa prevista no inciso I do caput do art. 6oem até dois terços, não sendo aplicável à pessoa jurídica qualquer outra sanção de natureza pecuniária decorrente das infrações especificadas no acordo; e (neste caso, as sanções de natureza pecuniária não serão aplicáveis, mas a “reparação integral do dano causado será aplicável, eis que isto vem previsto no §3o do art. 6o: “A aplicação das sanções previstas neste artigo não exclui, em qualquer hipótese, a obrigação da reparação integral do dano causado.)
III − no caso de a pessoa jurídica ser a primeira a firmar o acordo de leniência sobre os atos e fatos investigados, a redução poderá chegar até a sua completa remissão, não sendo aplicável à pessoa jurídica qualquer outra sanção de natureza pecuniária decorrente das infrações especificadas no acordo.
[…]
§ 4o O acordo de leniência estipulará as condições necessárias para assegurar a efetividade da colaboração e o resultado útil do processo administrativo e quando estipular a obrigatoriedade de reparação do dano poderá conter cláusulas sobre a forma de amortização, que considerem a capacidade econômica da pessoa jurídica.
[a frase “quando estipular” não tem sentido, pois o § 3o do art. 6o obriga sempre a reparação]
[…]
§ 9oA formalização da proposta de acordo de leniência suspende o prazo prescricional em relação aos atos e fatos objetos de apuração previstos nesta Lei e sua celebração o interrompe.
O § 11 é absolutamente inconstitucional.
Vejamos. Diz:
“O acordo de leniência celebrado com a participação das respectivas Advocacias Públicas impede que os entes celebrantes ajuízem ou prossigam com as ações de que tratam o art. 19 desta Lei e o art. 17 da Lei no 8.429, de 2 de junho de 1992, ou de ações de natureza civil”.
O Dr. Eliardo Teles Filho, comentou a MP no 703 no “Consultor Jurídico” e afirma:
No conteúdo, a MP no 703 tem dispositivos que, em princípio, infringem algumas das vedações materiais presentes no art. 62, § 1o, I, b, da Constituição Federal. É que partes da MP dispõem sobre normas de direito penal, processual penal e processual civil. A título de exemplo, citamos a alteração no prazo prescricional aplicável a ilícitos contidos na Lei no 8.666/1993, sem excluir expressamente sua aplicação a ilícitos penais, e a revogação de norma processual civil contida na Lei de Improbidade Administrativa. Isso significa mais vícios de inconstitucionalidade formal.
De nossa parte, entendemos que há inconstitucionalidade na norma quando ali se prevê que “o acordo de leniência celebrado com a participação da Advocacia Pública impede que os entes celebrantes ajuízem ou prossigam com as ações de que tratam o art. 19 da Lei no 12.846/2013 e o art. 17 da Lei de Improbidade Administrativa”.
Um acordo celebrado administrativamente, certamente terá como objeto as anistias previstas em outros dispositivos da MP 703. Pois bem, nenhuma lesão de direito pode ser subtraída da apreciação pelo Poder Judiciário (art. 5o, inciso XXXV da Constituição Federal = a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito).
Outrossim, é importante que se diga também que a norma é totalmente contraditória com outras disposições contidas nela mesmo (§ 3o, do art. 6o e § 3o do art. 16, que estabelecem que é obrigatório reparar o dano causado, e que o acordo de leniência firmado não exime a pessoa jurídica do seu dever de reparar o dano), posto que, no caso específico do disposto no art. 17 da Lei no 8.429, de 1992, em seu § 2o restou estabelecido que a Fazenda Pública promoverá as ações necessárias à complementação do ressarcimento do patrimônio público.
Ora, ressarcimento liga-se umbilicalmente com a ideia de reparação do dano. Obrigação essa que persiste mesmo com a formalização de um acordo de leniência, sendo, portanto, claramente contraditória, além de inconstitucional essa disposição.
O § 12 completa a inconstitucionalidade, acrescentando mais uma:
§ 12. O acordo de leniência celebrado com a participação da Advocacia Pública e em conjunto com o Ministério Público (inconstitucional, violando o princípio da separação dos Poderes) impede o ajuizamento ou o prosseguimento da ação já ajuizada por qualquer dos legitimados às ações mencionadas no § 11.
Agravante, em uma interpretação meramente literal do disposto, partes que não foram autores da celebração do acordo de leniência ficam sujeitos legalmente a observá-lo.
Ocorre que acordo de leniência só pode ser celebrado com pessoas jurídicas, o que implica que eventuais pessoas físicas, que tiveram participação significativa no ato ilícito (dirigentes da pessoa jurídica e agentes públicos), caso não fosse tal dispositivo inconstitucional, poderiam figurar em polos passivos de ações de improbidade administrativa, independentemente de ser ou não celebrado acordo de leniência, posto que não são considerados litisconsortes passivos necessários da pessoa jurídica, uma vez que a Lei no 12.846, de 2013, trata apenas da responsabilização administrativa e cível da pessoa jurídica partícipe de ato ilícito.
Não esquecendo, também, outro ponto que não pode deixar de ser considerado: a mera celebração de um acordo na esfera administrativa não tem o condão de impedir o prosseguimento de uma ação judicial em curso, visto que seria clara violação ao princípio da separação e harmonia dos poderes, bem como pelo fato de que processos administrativos não se confundem com processos judiciais, como estabelece o inciso LV do art. 5o da Constituição Federal.
O § 13 também é inconstitucional quando admite que o Ministério Público faça parte do acordo de leniência administrativo.
O § 14 dá ao TC competência para, após receber o acordo de leniência, com base no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, instaurar procedimento administrativo contra a pessoa jurídica celebrante, para apurar prejuízo ao erário, quando entender que o valor constante do acordo não atende o disposto no § 3o (o § 3o da Lei no 12.846/2013 continua em vigor, como já registramos, e diz: “A aplicação das sanções previstas neste artigo não exclui, em qualquer hipótese, a obrigação da reparação integral do dano causado”).
O art. 17 da MP prevê acordos de leniência específicos para as questões licitatórias e respectivos contratos.
Dispõe:
Art. 17. A administração pública poderá também celebrar acordo de leniência com a pessoa jurídica responsável por atos e fatos investigados previstos em normas de licitações e contratos administrativos com vistas à isenção ou à atenuação das sanções restritivas ou impeditivas ao direito de licitar e contratar.
Art. 17-A. Os processos administrativos referentes a licitações e contratos em curso em outros órgãos ou entidades que versem sobre o mesmo objeto do acordo de leniência deverão, com a celebração deste, ser sobrestados e, posteriormente, arquivados, em caso de cumprimento integral do acordo pela pessoa jurídica.
Trata-se de norma incompleta e impossível, juridicamente, de aplicação, porque falta à norma a observância da igualdade dos ilícitos praticados para que os acordos sejam idênticos. Além disso, a norma viola o regime federativo.
No art. 18 dispõe:
Na esfera administrativa, a responsabilidade da pessoa jurídica não afasta a possibilidade de sua responsabilização na esfera judicial, exceto quando expressamente previsto na celebração de acordo de leniência, observado o disposto no § 11, no § 12 e no § 13 do art. 16.
Trata-se de outra norma inconstitucional, pois há invasão do princípio da separação dos Poderes, com uma decisão administrativa extinguindo um processo judicial, pelo acordo administrativo, violando a regra do art. 5o, inciso XXXV.
O art. 20 recebeu o parágrafo único com a seguinte previsão: “A proposta do acordo de leniência poderá ser feita mesmo após eventual ajuizamento das ações cabíveis”.
Observação: Se isso ocorre, esse acordo será inócuo, visto que não terá nenhum reflexo, constitucionalmente, nas ações ajuizadas. A ação judicial somente terá de receber um acordo entre as partes e sob a condução e homologação do juiz ou do Tribunal competentes. Todo acordo feito fora dos autos judiciais não poderá influir na ação judicial, mormente se não feito pelas partes e se não sofrer a homologação judicial.
O art. 25 recebeu os §1o e 2o:
§ 1o. Na esfera administrativa ou judicial, a prescrição será interrompida com a instauração de processo que tenha por objeto a apuração da infração.
§ 2o. Aplica-se o disposto no caput e no § 1o aos ilícitos previstos em normas de licitações e contratos administrativos.
O art. 29 recebeu os §§ 1o e 2o:
§ 1o Os acordos de leniência celebrados pelos órgãos de controle interno da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios contarão com a colaboração dos órgãos a que se refere o caputquando os atos e fatos apurados acarretarem simultaneamente a infração ali prevista.
§ 2o Se não houver concurso material entre a infração prevista no caput e os ilícitos contemplados nesta Lei, a competência e o procedimento para celebração de acordos de leniência observarão o previsto na Lei no 12.529, de 30 de novembro de 2011, e a referida celebração contará com a participação do Ministério Público.
Observação:
O caput da Lei no 12.846/2013 prevê expressamente:
Art. 29. O disposto nesta Lei não exclui as competências do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, do Ministério da Justiça e do Ministério da Fazenda para processar e julgar fato que constitua infração à ordem econômica.
[Esse art. 29 não foi alterado, em sua redação, pela MP no 703/2015]
Portanto, há de se aplicar aqui a regra de interpretação lecionada por Carlos Maximiliano, segundo o qual o sentido e o alcance do caput de uma norma comanda a interpretação de todos os parágrafos e incisos desse caput.
Destarte, em qualquer hipótese, a interpretação do § 2o do art. 29 deve seguir o sentido e o alcance do caput, ou seja, “se houver concurso material entre a infração prevista no caput (art. 29) e os ilícitos contemplados nesta Lei, a competência para a celebração de acordo de leniência observará o previsto na Lei no 12.529, de 30/11/2011 (não poderá haver participação do MP sob pena de inconstitucionalidade). E o acordo de leniência será o previsto no artigo 86 (Do programa de leniência), inciso I a II, § 1o e incisos I a IV, § 2o, § 3o, § 4o, incisos I e II, §§ 5o a 12 e art. 87 e Parágrafo único, todos da Lei no 12.529, de 30/11/2011, que “Estrutura o Sistema Brasileiro da Defesa da Concorrência”.
O art. 30 diz:
Ressalvada a hipótese de acordo de leniência que expressamente as inclua, a aplicação das sanções previstas nesta Lei não afeta os processos de responsabilização e aplicação de penalidades decorrentes de:
I − ato de improbidade administrativa nos termos da Lei no8.429, de 1992;
II − atos ilícitos alcançados pela Lei no8.666, de 1993, ou por outras normas de licitações e contratos da administração pública, inclusive no que se refere ao Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), instituído pela Lei no12.462, de 2011; e
III – exceto infrações contra a ordem econômica nos termos da Lei no12.529, de 2011, que não poderão ser incluídas no acordo de leniência referido tendo em vista que estas infrações, segundo o caput (que tem a preferência interpretativa) serão objeto de competência do CADE para processar e julgar fato que constitua infração à ordem econômica, e, portanto, cabe a ele (CADE) efetivar o acordo de leniência, no caso, de acordo com os artigos 86 e 87 da Lei no 12.529/2011. [Por isso mesmo, o art. 30, original, da Lei no 12.846, de 1o/8/2013, não continha o inciso III, previsto na nova redação dada pela MP no 703/2015, que ficou contraditória em relação ao caput do art. 29 da Lei no 12.846/2013).
O art. 2o da MP revogou:
I – o § 1o do art. 17 da Lei no 8.429, de 2 de junho de 1.992. Esse § 1o rezava: “É vedada a transação, acordo ou conciliação nas ações de que trata o caput”. A revogação realizada torna extremamente complexa a questão da Ação de Improbidade Administrativa, posto que, essa realizou-se apenas para permitir a celebração de acordos de leniência, com pessoas jurídicas, não envolvendo, portanto, pessoas físicas. Então temos o caso em que pode ocorrer acordos ou conciliação em Ações de Improbidade Administrativa, mas apenas com pessoas jurídicas, não físicas.
II – o inciso I do § 1o do art. 16 da Lei no 12.846, de 1o de agosto de 2013.
Obs.: O art. 16 referido previa o seguinte:
Art. 16. A autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública poderá celebrar acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo, sendo que dessa colaboração resulte:
I − a identificação dos demais envolvidos na infração, quando couber; e
II − a obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito sob apuração.
O § 1o dispõe: “O acordo de que trata o caput somente poderá ser celebrado se preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos:
I − a pessoa jurídica seja a primeira a se manifestar sobre seu interesse em cooperar para a apuração do ato ilícito;
É esse inciso que foi revogado, como já exposto, posto que, realmente, era ele desnecessário. Já que a intenção da MP é permitir que todas as empresas partícipes de atos ilícitos possam celebrar acordos de leniência, o que leva à questão: de que serve o acordo de leniência, se todos os partícipes em ato ilícito poderão, em tese, obter os favores da lei e, portanto, a sanção por ato ilícito simplesmente cairia no vazio?
A MP no 703/2015 entrou em vigor em 18 de dezembro de 2015 e foi assinada pela Presidenta Dilma Rousseff.