Acesso à Justiça e democracia no Brasil

4 de janeiro de 2021

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Uma homenagem ao Professor Theophilo de Azeredo Santos

Historicamente, o princípio do acesso à justiça é fruto de novas lentes conceituais e bases legais que permitiram alinhar desenvolvimento e dignidade humana, com vistas à construção do equilíbrio social e da paz.

A Constituição da República de 1988 inaugurou um novo regime no Brasil, consagrando direitos na ordem interna. Passados esses anos, os reflexos dessas garantias estão presentes na introjeção de direitos no tecido social, sendo um bom exemplo o Direito do Consumidor, hoje enraizado na coletividade. O desenvolvimento da cidadania é consequência desse paradigma.

Neste sentido, o presente artigo objetiva realizar um corte temático sobre o acesso à justiça, inspirado nos ideais democráticos do Professor Theophilo de Azeredo Santos, à luz de apontamentos contidos em seu Discurso de Posse na Presidência do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) que, há cerca de 50 anos, já sinalizava um desenho dialógico da justiça.

Inicialmente, fazendo jus ao ofício docente do professor, registramos seu incentivo à pesquisa acadêmica. A proposta de “reciclagem” dos profissionais do Direito foi uma de suas preocupações observada em seu discurso. O texto de 1972 trouxe a referida palavra hoje sentida como atualização.

Em deferência a esse espírito acadêmico, vamos extrair breves conceitos de Aristóteles, cujas ideias “desempenham um papel fundamental para a formação do pensamento ocidental”, trazendo “inquietações sobre a existência do ser, linguagem, justiça, política e outros que passam à centralidade na atual sociedade”.

No leque aristotélico de sentidos, justiça abarca “mediação, a equidade e a justiça política”. O pensamento do filósofo de Estagira revela conceitos duais. Mas há uma linha intermediária na configuração do que é justo, sendo este o foco do alcance da justiça. Assim, quando falamos justiça, na verdade estamos recorrendo à figura “animada” da justiça que é ojuiz”, que exercerá o papel de “mediador”, que levará os litigantes a alcançarem o meio-termo (o que é justo) para restabelecer a igualdade entre as partes.

Direitos e garantias são construções históricas que visam a alcançar a sonhada justiça. O discurso do Professor Theophilo elenca um rol de iniciativas que se configuraram numa ode à democracia, sobretudo ao conclamar que todos unissem forças em prol do “ambiente de democracia” e pelo “clima de paz e justiça”. Vale lembrar o período conturbado vivido à época, tendo em vista a complexidade do regime militar instaurado no País.

A promoção do bem comum é finalidade do Estado. Por isso políticas públicas assistenciais são cruciais para reduzir as “brechas de desigualdade que hoy existen em la Région em la protección efectiva de los derechos, particularmente entre ricos y pobres” e manter o equilíbrio e a paz social.

O Brasil ocupa o 84º lugar no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Para Flávia Piovesan, a “acentuada desigualdade social é o maior fator a justificar a frustrante posição do País no IDH – bem distante dos vizinhos Chile (44º), Argentina (45º) e Uruguai (48º)”. Portanto, se queremos alcançar a justiça, é imprescindível reparar tais distorções.

A Constituição afirmou garantias e concretizou direitos, o que naturalmente implicou no aumento de demandas judiciais. A dependência da tutela estatal é própria do nosso sistema. Mas, apesar de visíveis esforços, o Judiciário não consegue atender com a esperada celeridade que anseiam as partes. Aqui, encontramos um nó que, em alguns casos, precisa ser desfeito, porque é senso comum que a porta de entrada foi ampliada, mas a de saída ainda é estreita.

Estamos em uma evolução contínua do processo democrático e, consequentemente, do exercício da cidadania. Desta forma, “conquistas precisam ser resguardadas pelo Direito”. Eis uma compreensão visionária no discurso do Professor Theophilo, anterior à Constituição Cidadã.

Na esteira da democracia, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituiu o sistema multiportas (Resolução nº 125/2010), incentivando o aperfeiçoamento de mecanismos adequados de solução de conflitos. Uma boa influência do common law, com a Alternative Dispute Resolution, que busca soluções mais céleres para problemas do cotidiano.

Um desses importantes meios é a arbitragem, que foi disciplinada na Lei nº 9.307/1996, encontrando abrigo posterirormente no Código de Processo Civil (CPC/2015). O instituto aperfeiçoou as relações comerciais nacionais e internacionais, sendo hoje um meio adequado na solução de conflitos.

A mediação (Lei nº 13.140/2015), por sua vez, se configura em um ajuste com benefícios mútuos, realizada com atuação de um terceiro desinteressado, que exerce o papel de facilitador na relação entre as partes. A mediação é construída à medida que o diálogo afasta as divergências e segue em direção à solução mais adequada, no caso concreto.

O instituto da conciliação está previsto na Lei nº 9.099/1995 e no CPC/2015. Nela, um terceiro intervém de forma ética no procedimento, limitando-se aos requisitos legais para não induzir quaisquer das partes na tomada de decisão.

O CNJ inovou no Relatório 2019 ao incluir o “Índice de conciliação”, que é obtido “pelo percentual de sentenças resolvidas por homologação de acordo em relação ao total de sentenças e decisões terminativas proferidas”. Até 2019, o cômputo de demandas conciliadas era animador. Porém, no Relatório 2020, há redução no índice de conciliação de 12,5% para 9,6%, sendo a maior redução na Justiça estadual. Na Justiça do Trabalho também houve leve redução de 23,7% para 22,8% e, na Justiça Federal, leve aumento de 10,6% para 10,9%.

No Brasil e no mundo, garantias constitucionais, aumento do sentimento de cidadania, direito ao não retrocesso, inovações tecnológicas, entre outros tantos fatos sociais e jurídicos, promoveram um ambiente propício a novas demandas judiciais. Este é um paradoxo afeto aos sistemas democráticos. As contradições contemporâneas impelem o Poder Público a exercer de forma eficiente a gestão da sociedade.

Todavia, em uma perspectiva multifacetada, além do Estado, outros atores, como o setor privado, organismos não governamentais e cidadãos também precisam colaborar com práticas dialógicas para solucionar conflitos.

A sociedade necessita de soluções que estejam em harmonia com as exigências do cenário atual. Esta é uma tarefa diária. Uma responsabilidade de todos, como afirmava o Professor Theophilo de Azeredo Santos, na defesa inconteste do Estado Democrático de Direito.

Notas_______________________

O Professor Theophilo de Azeredo Santos formou-se em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Doutorou-se pela mesma universidade e pela Université Paris Sorbonne. Em 1972, tornou-se presidente do IAB e realizou uma gestão inovadora trazendo a lume temas caros até hoje, como mulher, menor e arbitragem. Faleceu em 2020, após anos dedicados à cultura jurídica. Seu discurso de posse se encontra arquivado na Biblioteca do IAB, um dos acervos jurídicos mais completos do País.

Angela Dias Mendes. “Crítica hermenêutica do Direito – As sementes de hoje e os frutos do amanhã. Uma homenagem ao Professor Lenio Luiz Streck”. Org. Angela Dias Mendes. Blumenau: Dom Modesto, 2020.

Aristóteles. “Arte Poética, Organon, Ética a Nicômaco”. São Paulo: Nova Cultural, 1994.

Jorge Correa Sutil. “Acceso a la justiça y reformas judiciales”. Universidade de Santiago, Chile. Disponível em: https://cejamericas.org/wp-content/uploads/2020/09/117Accesoalajusticiayreformasjudiciales.pdf

CNJ – Relatório Justiça em Números – 2019. Disponível em:  https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf