A Quebra do Incorporador e as Conseqüências

5 de dezembro de 2002

Roseli Nalin

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Temos acompanhado na mídia a “quebra” de incorporadores, afluindo a justiça as suplicas dos compromissários compradores que paga­ram, integralmente, o preço e permanecem com seu imóvel hipotecado, rogando a adjudicação do bem e baixa do respectivo gravame.

Tal circunstancia, incontestavelmente, redunda em absoluto pre­juízo dos compradores das unidades imobiliárias, pelas quais pagaram direta e integralmente o preço ajustado mas que permanecem sob o jugo do gravame hipotecário, em seus imóveis por coma da irresponsabilidade dos incorporadores que deixam de repassar, ao ór­gão financiador do empreendimento, os valores recebidos, cerrando as suas portas e, literalmente, desaparecendo da praça, deixando o seu legado aos lesados.

Em linha de princípio, o órgão financiador fica resguardado pela inexistência de contrato com os adquirentes das unidades, além da garantia real estar protegida por lei.

Normalmente, do pacto instituidor da hipoteca não participam os adquirentes, somente o incorporador e o órgão financiador. Contudo, são os adquirentes os atingidos, diretamente, pelo descumprimento daquele contrato, repisa-se, do qual não participaram.

É certo que consta da escritura o gravame instituído por ocasião da obra, dele tendo ciência os adquirentes. No entanto, na nossa compreensão, tal ciência não há de ensejar uma interpretação tão elástica, a ponto de impor aos compra­dores que sejam obstaculados de obter a li­beração de seu imóvel, após o integral paga­mento do preço.

A relação jurídica existente entre o adquirente e o incorporador alça-se como ato de consumo, eis que é o incorporador um fornecedor de bens e serviços e, como tal, põe-se algemado as normas disciplinadas no C.D.C. Neste contexto, há de ser preservado o equilíbrio negocial, impedindo que conduta nefasta do incorporador afronte o princípio da boa-fé do adquirente, o qual, compulsoriamente, regula as rela­ções de consumo. Aliás, a ratio essendi que abriga o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, não tem por escopo privilegiar a qualquer das partes que integrem a relação jurídica de consumo, senão de preservar o necessário e indispensável equilíbrio entre as mesmas (Lei nº 8.o78 de 111o9/ 199o).

Nesse sentido, alias, há acórdão paradigmático da Colenda Corre Federal, prolatado no Recurso Especial nº 299.445­PR, da relatoria do Mínimo Ruy Rosado, cuja ementa, que lhe capitaneia, acha-se assim redigida: “Promessa de compra e venda. Empresa imobiliária. Incidência do Có­digo de Defesa do Consumidor. Rege-se pela lei nº 4.59111964, no que tem de específico para a incorporação, e pelo C.D.C o contrato de promessa de compra e venda celebrado entre a companhia imobiliária e o promissário comprador”. (in Revista do S.T.J., volume 156, pág. 374).

Constando dos instrumentos de compromisso de compra e venda dos imóveis que as escrituras definitivas serão firmadas após o pagamento integral do preço, e desde que o compromisso assumido pelos compradores restou honrado, diversamente da obrigação a cargo do incorporador, a qual, além de descumprida, persiste em manter conduta apática frente a ansiedade vivenciada por seus clientes, tal conduta reprovável, preconcebidamente omissiva, não pode conduzir a absurdez, sem agredir a lógica e o bom senso que norteiam as relações jurídicas dos contratantes.

A hipoteca contratada entre a incorporadora e o órgão financiador, ao nosso entender, vincula tão só os seus pactuantes. Em tendo o comprador da unidade pago o preço, injusto, e até mesmo imoral, que o gravame permanecer recaindo sobre a unidade adquirida, emprestando-se galas e supremacia ao interesse mercantilista e menosprezo ao consumidor.

Aliás, como preleciona, ainda no cenário da Alta Corte Federal, em lição perspícua, o Mínimo Milton Pereira: “o Direito não fica alheio as realidades sociais, nem se divorcia do bom senso, devendo a sua compreensão ser ajustada a justiça das normas. Não pode ser desajustado, nem injusto” – (in Revista do S.T.J., volume nº 77, pag. 97).

É certo que as garantias reais objetivam proteger o credor da insolvência do devedor, ficando o bem vinculado ao cumprimento da obrigação e o credor hipotecário com o direito de seqüela, sendo o bem acompanhado da garantia é oponível contra terceiros.

Contudo, entendimento construtivo da jurisprudência que nos endossa, marcado pelo absoluto compromisso com a justiça, na hipótese elencada, o direito de seqüela, do credor hipotecário, não se opera, dada a excepcionalidade desses negócios, ciente o financiador de que as unidades, a serem construídas, serão alienadas a terceiros, cujos compromissários adquirentes não assumem o encargo de bisar o resgate da dívida, ou seja, junto ao incorporador/construtor e, também, aquela do construtor junto ao financiador. Tal posicionamento está a denotar que extrapolaria a lógica do razoável, eis que na trilogia contratual os dois contratantes com fins lucrativos comportam-se de forma negligente (financiador) e inadimplente (incorporador), enquanto o comprador pontual assume o risco do empreendimento dos demais, em absoluta inversão de valores. Por mais uma vez, constata-se aqui afronta a legis­lação de referencia, o C.D.C, o qual veda, expressamente, tal repasse ao terceiro.

Aliás, nessa enseada jurídica, a compreensão do nosso raciocínio, assentado entendimento pretoriano, emanado, também, da nossa Corte Federal, o imóvel cedido para incorporação e construção de edifício, mediante pagamento por permuta com apartamentos ao proprietário, posterior hipoteca entre a construtora e a entidade financiadora, não abrange as unidades reservadas ao ex-proprietário, o que se consubstancia na clarividente ementa: “A hipoteca decorrente de financiamento concedido pelo banco a incorporadora e construtora para construção do edifício, não alcança unidades que o ex-proprietário do terreno recebeu da construtora em troca ou como prévia pagamento deste”. (Rec. Especial nº 146.659-MG – Relator Mínimo Cesar Asfor Rocha, pub. Revista S.T.J., volume 135, pag. 398).

Acresça-se destacar, o art. 22 da Lei 4.864/65, que disciplina que o credito da sociedade de credito imobiliário, após a transferência da unidade, passa a incidir sobre os direitos decorrentes dos contratos de alienação das unidades, sendo ineficaz em relação ao terceiro adquirente a garantia hipotecaria instituída pela construtora. Com efeito, após abertas as matrículas relativas as unidades, a hipoteca deixa de ser uma, partilhando-se em unidades distintas.

Disso resulta-se, o único a responder pelo debito hipotecário deve ser, e há de ser, e o incorporador. Aliás, em esmerado voto emitido pelo juiz Pinheiro Franco, na Corte judiciária de Minas Gerais, em julgado da sua lavra a relatoria, discorrendo quanto a distorção jurídica em tais hipóteses, alvitra que deva ser esta a posição pretoriana, si et in quantum perdurar omissa providencia legislativa, a exemplo do que, anteriormente, moldava-se o Direito Romano, assim se posicionou com o seguinte destaque: “No sistema jurídico Romano, a essência e o fim do direito se indicam com a palavra aequitas; mas se pela evolução da consistência social ou por circunstancias de fato o preceito jurídico já não corresponde a sua finalidade, manifesta-se uma antítese entre o jus e o aequitas, entre leis e justiça. Nesse sentido e que o aequitas corrige o jus, pois, como afirma Cícero, repetindo Terêncio, numa época de grande progresso social, summun jus, summa injuria.”

Conclusivamente, na hipótese abordada, temos que ha de se assegurar aos adquirentes o reconhecimento quanto a ineficácia das hipotecas constituídas, com o cancelamento nas respectivas matrícu­las junto ao Cartório do Registro de Imóveis, relativamente as suas unidades imobiliárias quitadas, por eles adquiridas, a par de assegurar o direito adjudicatório das mesmas.