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A pirâmide da criminalidade urbana

5 de dezembro de 2002

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A Criminologia modernizou-se como ciência social de base empírica e afastou-se – definitivamente, creio – da preponderância penalista de seus estudos (sem, contudo, perder a visão penal), em beneficio de abordagens sociológicas, notadamente no âmbito comunitário; axiológicas, com ênfase no contraste entre os valores éticos proclamados e os realmente praticados pela sociedade; e vitimológicas. Esse fato tende a gerar Política Criminal que não apenas cumpra o papel de ponte entre as conclusões da Criminologia e o Direito Penal, senão também sirva de filtro nessa transição de modo a, seja pela prevenção seja pela facilitação da solução alternativa de conflitos, prestigiar o segundo evitando sua banalização e preservando-o para os casos em que o Estado deva realmente aplicar a justiça retributiva.

A nova Criminologia não se preocupa primordialmente com o crime e o criminoso, mas com o conjunto dos crimes social mente relevantes e suas causas; com a sociedade, a qual, em grande parte, os produz; com as vitimas; e com o controle social formal ou informal que prevaleça. Em conseqüência, induz essa mesma abrangência – que com Põe o conceito de criminalidade- na diagnose da realidade da segurança pública. É necessário ter tal concepção em mente, a fim de não se incorrer em erro ao opinar, assessorar ou decidir sobre soluções relativas a problemas de violência urbana, da periculosidade que antecede o crime, e da generalização deste. Como veremos, tal realidade e indivisível, porque composta de fatores que se integram e interagem, criando sinergia e dinâmica próprias da criminalidade em cada cidade ou região metropolitana. Todavia, as ações de enfrentamento dos fatores criminógenos e do crime em si tem, necessariamente, de ser específicas e de preencher um amplo espectro de políticas sociais e criminais integradas, conformadas segundo uma mesma matriz criminológica que contemple as prevenções (primária, secundaria, terciária e vitimaria) e a repressão, à luz das peculiaridades das comunidades.

Fala-se muito em crime organizado, na maior parte das vezes demonstrando entendimento incompleto ou distorcido do fenômeno e seus entornos, manifestações e conseqüências na pirâmide da criminalidade urbana, cujo vértice e ocupado pelas chefias e os “staffs” de gerentes, conselheiros e lavadores de dinheiro. Ali estão pessoas que precisam vitalmente manter fachada de legalidade para dar permanência a organização criminosa e assim potencializar a capacidade de obter poder e dinheiro ilegal. Oeste, parte tem de ser “lavada” para reforçar a face “legal” da organização; a outra parte, suja, desce para onde muitos conhecem ser a hierarquia máxima do crime organizado, o nível intermediário da pirâmide quadrilhas ou bandos, que não lavam dinheiro, porque não necessitam de disfarces legais. Com garantia de retorno compensador para o topo, multiplicado algumas vezes, esse dinheiro serve para financiar, por exemplo, o mercador atacadista de drogas, as quais daí descem um pouco mais para o grande varejo.

O enfrentamento do crime nesses dois níveis tem de ter duas marcas: trabalho permanente e pertinaz de inteligência; e repressão implacável. Contra o topo do crime organizado, deve preponderar a inteligência financeira, em atividade conjunta do Conselho de Controle das Atividades Financeiras – COAF, da Receita Federal, do Banco Central, da Policia Federal, da Agencia Brasileira de Inteligência – ABIN e dos Ministérios Públicos federal e estaduais. Ha convênios recentes entre esses órgãos, que tendem a dinamizar o combate a lavagem de dinheiro, nutriente do crime organizado. Contra o nível intermediário da pirâmide, a inteligência e a repressão policiais são os instrumentos garantidores de eficácia.

O entendimento da realidade desses dois segmentos da criminalidade não estará completo sem a percepção do papel da corrupção para sua continuidade no tempo e no funcionamento. Corrupção visando as fraudes em setores do sistema financeiro, para a “legalização” dos ativos ilegais; corrupção para cooptar agentes do Estado, garantindo facilidades e impunidade. Logo, devem-se conduzir investigações paralelas pelas corregedorias de policia independentes, pelo Ministério Público, pelo Banco Central, pelas controladorias, pelas comissões de ética, enfim por todos os órgãos com atribuição de qualquer tipo de controle externo sobre instituições ou pessoas contra as quais haja indícios de improbidade. Quanto a prevenção da criminalidade no alto e no meio da pirâmide, infelizmente resta raciocinar apenas com a secundaria, dissuasória, por meio da almejada eficácia da repressão e da justiça penal.

Na base da pirâmide da criminalidade urbana encontram-se crianças e adolescentes mergulhados em caldo de cultura essencialmente criminógeno, composto por fatores indutores de violência não contrapostos pelas devidas instancias formais e informais de controle social e até incentivados pela ausência de algumas delas. Listam-se alguns, variando sua importância criminógena de acordo com as circunstancias de cada comunidade: desagregação familiar dificuldade de acesso a serviços do Estado (saúde, educação, saneamento básico, justiça, segurança; violência domótica; violência na escola; uso de drogas; falta de áreas e atividades de lazer e esporte; desemprego; dificuldade de evolução cultural; falta de assistência e de solidariedade a vítimas de violência; precariedade das condições de preparação da reintegração social dos apenados e dos adolescentes em conflito com a lei; exploração sexual de crianças e adolescentes; falta de creches; carência alimentar; baixa qualidade de moradia etc… No País, milhares de jovens sucumbem ao chamamento do crime segundo um processo difícil de definir se de sintetização desses fatores em um único, a desvalorização da vida (a própria e a dos demais) ou se de atomização deste, gerando os inúmeros indutores de violência, combinado com a estreita margem de tolerância as frustrações das expectativas de consumismo e hedonismo, elevados ao “status” de valores culturais pela sociedade e pelos meios de comunicação. Tudo estimulado pela atraente lucratividade do crime – prosseguindo com o exemplo do narcotráfico – possibilitada pela injeção vertical, de cima para baixo, de dinheiro ilegal na pirâmide da criminalidade (furtos e roubos praticados por, ironizemos, “free-lancers”, apenas complementaram o quadro). Na fila para emprego como “soldados” do tranco, outros milhares.

Isso ocorre por falhas no controle social pelas mencionadas instancias informais (família, escola, religiões, profissão, cultura, costumes, vizinhança, terceiro setor, mídia, opinião pública etc.) e formais (policia, Ministério Público, Justiça, setor penitenciário, autoridades financeiras etc.). Sendo essa uma parte da etiologia da criminalidade, o enfrentamento do problema tem de reconstruir o controle social ponto por ponto. No tocante ao universo dos jovens em situação de risco de entrada no crime, voltemos ao primeiro parágrafo deste texto e logo veremos que o novo paradigma valoriza o fortalecimento das instancias informais e a comunitarização das formais, sob o enfoque da prevenção primária, isto é, da prevenção dos primeiros desvios para a violência e a delinqüência. Tal enfoque representa uma ruptura com as praticas de prevenção anteriores, que faziam repousar apenas na eficácia das políticas penal e policial-repressiva a dissuasão de delinqüentes potenciais. O fracasso dessa visão, evidenciado pelos inadmissivelmente altos índices de criminalidade, levou a mudança de rumo em direção a uma gestão social em segurança pública, que vem sendo implantada           pelo Governo Federal, efetivamente desde março de 2001, em regiões metropolitanas que, hoje, somam sete (São Paulo, Rio, Vitória, Recife, Fortaleza, Cuiabá e Brasília).

A metodologia desse Plano de Prevenção da Violência Urbana assenta-se nas seguintes idéias básicas: 1) seleção de cinqüenta programas do Plano Plurianual de investimentos (Avança Brasil) relacionados direta ou indiretamente com indutores de violência, distribuídos por treze ministérios; 2) identificação das zonas de maior incidência e produção de violência e criminalidade nos municípios das regiões metropolitanas; 3) definição, com as lideranças comunitárias, das principais carências e necessidades carreadoras de indutores de violência; 4) estabelecimento de projetos para resposta eficaz a essas carências e necessidades, estruturados sobre a integração de programas selecionados dentre aqueles cinqüenta; 5) articulação desses projetos federais com seus correspondentes estaduais, municipais e do terceiro setor, evitando-se superposições; 6) estimulo a adesão da iniciativa privada em apoio aos projetos; 7) mobilização das pessoas das comunidades para a participação, por intermédio de lideranças locais; 8) capacitação dos lideres para a implantação e execução dos projetos; 9) implantação; 10) acompanhamento, avaliação da execução e, se necessário, correção de rumo. A síntese dessas idéias é integrar os programas sociais para otimizar seus resultados, dando foco nos jovens em seu ambiente comunitário, visando ao enfrentamento dos indutores de violência locais.

Cabe comentar o sistema normativo axiológico de controle informal baseado no poder condicionador de condutas – moderando-as ou degenerando-as-, inerente aos valores culturais praticados. Parágrafos arras apresentou-se desvalorização da vida como síntese de todos os indutores de violência ou como origem deles. É muito provável que a segunda hipótese seja a verdadeira sob o ponto de vista de começo de um ciclo vicioso cujos componentes se reforcem perversamente; a desimportância da vida sendo decorrência da secularização das religiões e do esvaziamento do sentido espiritual e transcendental da existência. O  vácuo assim surgido teria sido ocupado por valores de uma sub-cultura como consumismo, hedonismo, êxito rápido sem esforço perseverante e a qualquer custo geradores ou estimuladores da maior pane dos indutores de violência. Os valores proclamados por nossa sociedade, reconhecidos como os da nossa cultura verdadeira – família, dignidade da pessoa, solidariedade, tolerância, liberdade, verdade, honestidade, misticismo etc. estariam abafados ou mesmo ausentes na moral e na ética dos universos fornecedores de jovens para a delinqüência. Da mesma forma que se deve enfrentar cada indutor de violência com políticas públicas adequadas (e o Plano de Prevenção da Violência Urbana destina-se a integrá-las) para reconstruir o controle social, também há que enfrentar a sub-cultura por meio da reconstrução ou fortalecimento dos valores verdadeiros da cultura, e, identicamente, só se pode fazê-lo aliando-se Estado e Sociedade, especialmente no âmbito das comunidades.

O veiculo desse esforço de reverificação ética deve ser a educação no seu sentido mais amplo e profundo, que só se concretiza quando abordada holisticamente a realidade comunitária envolvente do jovem, alvo final. Uma espécie de Lei Moral, sintetizada como de respeito a vida ou valorização da vida deve permear toda a sociedade e o Estado, na totalidade das manifestações de ambos, seja as do cotidiano seja as extraordinárias.

Julgo ser ponto pacífico que governantes e lideres comunitários devam imbuir-se da ética de governo ou de liderança popular. Tal ética tem duas vertentes. A primeira, a ética pessoal dos delegados do povo, e simultaneamente de auto-aperfeiçoamento e auto-vigilância, de acordo, respectivamente, com o esforço individual de incorporar e fortalecer dentro de si os valores da cultura nacional, e de tratar com lisura a gestão da coisa pública. Básica, condições “sine qua non”, é comumente confundida com o total de ética exigível dos denominados homens e mulheres públicos. Quando isso ocorre, quando e considerada bastante, um fim em si mesma, assume feições de vaidade do tipo ostentação de integridade de caráter e de probidade, no caso de egocentrismo, ou de genuíno e limitado sentimento de realização pessoal com Características de egoísmo. De qualquer forma, é a ética-para-o-ego; na realidade, a não-Ética. A segunda vertente pode ser chamada ética altruísta, voltada para o “alter”, para o outro, para o povo. É vertebrada pela resultante dos vetores externos lançados a partir da plataforma de ética pessoal positiva, sem distorção egocêntrica ou egoísta. Se a ética-para-o-ego ignora o mundo (o povo), negando, dessa forma, a vida, a altruísta os reconhece e afirma. Praticada pelo governante e pelo líder comunitário, atribui legitimidade ética ao exercício do poder, humanidade a gestão publica eficiente, e empatia a sua interação com o povo. Da composição das duas vertentes afirmativas surge a ética integral de governo e liderança comunitária, criadora de condições para o surgimento da Lei Moral. Nela começa a educação para o fortalecimento ético dos jovens, por intermédio do mais forte dos instrumentos educativos, o exemplo.

A partir dessa solida posição moral, governante e lideres comunitários, associados ao terceiro setor e a empresários estimulados pelo governo a desempenharem seu papel social, pautarão ações e programas pelos valores proclamados, segundo as circunstâncias de cada estado, município e comunidade local, com foco na criança e no jovem em seus ambientes na família, na escola, no lazer, nas igrejas, nas atividades culturais, nas competições esportivas etc… Nessas situações, o valor tolerância, na denotação positiva de reconhecimento e aceitação das diferenças, assume importância fundamental como catalisador do diálogo entre gerações, classes, categorias, níveis administrativos públicos e privados, pessoas em geral. E a única maneira de se trocarem experiências, aderirem os desiguais a causas justas benéficas a comunidade, criar sinergia social a partir de energias individuais.

Quando a ação policial na base da pirâmide, há que definirem-se dois tipos, ambos indispensáveis e cujo êxito pressupõe policias bem equipadas, científica e tecnicamente atualizadas, operacionalmente integradas, e compostas por policiais bem remunerados e capacitados continuadamente. Um tipo e a ação repressiva, caudatária das operações no nível intermediário, voltada contra os que já tenham sido incorporados aos bandos delinqüentes. É passo fundamental para o início da retomada do controle social formal em áreas dominadas pelo crime. O outro, dirigido para as populações ainda não controladas pelas quadrilhas ou já liberadas pela repressão, e a policia comunitária, um conceito que se adapta muito bem aos postulados da nova Criminologia, por permitir o entrosamento dos agentes informais do controle social com o formal policial, no ambiente em que vivem os destinatários do provimento de segurança. Dentre as vantagens decorrentes da confiança que naturalmente surge dessa interação, a tendência de forte diminuição da sub-notificação de ocorrências e os informes preventivos ou esclarecedores de delitos tem influência positiva imediata na eficácia da ação policial e no conseqüente fortalecimento do controle social formal. Isso facilita o enraizamento das ações de políticas sociais do tipo do Plano de Prevenção da Violência Urbana, gerando o ciclo virtuoso de afirmação definitiva das duas instâncias do controle social. Centros Integrados de Cidadania – CIC podem ser pólos físicos emblemáticos de convergência e irradiação de vetores de tal ciclo, com instalações para reuniões com lideranças comunitárias, e para representações policiais, de assistência social, da Justiça e do Ministério Público estaduais, do instituto de identificação, da Defensoria Publica, de mediadores etc…

O novo paradigma de enfrentamento da criminalidade dedica especial atenção as vítimas da delinqüência. Elas não podem continuar afastadas do processo ou desempenhando-se apenas como testemunhas. Como co-protagonistas do momento delituoso, assim devem permanecer ao longo do processo investigativo e penal. Resguardadas, e bem verdade, mas a1vos de atenção permanente dos operadores da justiça, de modo a não virem a sofrer uma segunda vitimação pelo alheamento das providencias policiais e judiciais. Da mesma forma, a comunidade deve poupar-lhes de uma vitimação terciária devida a insolidariedade. Nos casos de delito envolvendo conflitos interpessoais, uma visão de justiça restaurativa, colocando vitima e criminoso em interação durante todo o processo, cria circunstâncias favoráveis para evitar que a vitimação se tome fator realimentador de violência. A mediação, fora do processo penal, e a conciliação, se for inevitável o processo, são instrumentos muito adequados a essa abordagem.

O planejamento, implantação e controle de toda essa estratégia de desconstrução da pirâmide da criminalidade requer, antes de mais nada, visão sistêmica que se concretize em Um Sistema Nacional de Segurança Pública, composto pelos Subsistemas de Prevenção e de Repressão. Um Conselho Nacional seria o órgão normativo do sistema e articulador das políticas de prevenção primária, terciária, vitimaria, e de repressão (a prevenção ao secundaria, por sua essência dissuasória dependente da eficácia policial e penal, não implica política nem órgão específicos). O órgão central do Subsistema de Repressão seria o novo ministério, estruturado a partir da atual Secretaria Nacional de Segurança Pública, que subordinasse apenas a Policia Federal, a Policia Rodoviária Federal, o Conselho e o Departamento Nacional de Transito, e se articulasse com o Sistema de Inteligência Financeira (Conselho de Controle das Atividades Financeiras, Coordenação de Pesquisa e Investigação da Secretaria da Receita Federal e Departamento de Ilícitos Financeiros e Cambiais do Banco Central, coordenadas, para fins de enfrentamento da lavagem de dinheiro, pelo primeiro). Teria um Departamento de Inteligência, órgão central do Sistema Nacional de Inteligência de Segurança Pública.

O Subsistema de Prevenção comportaria a primaria, que poderia permanecer como atualmente, com a Secretaria de Prevenção da Violência Urbana e a Secretaria Nacional Antidrogas no Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da Republica, dada a necessidade de ampla articulação com ministérios, estados e municípios. As prevenções terciária e vitimaria ficariam a cargo de um Departamento de Execuções Penais e Reinserção Social a ser criado no Ministério da Justiça e Cidadania (nova designação). Não se justifica centralizar todos os tipos de prevenção em um único órgão, porque a secundaria, a terciária e a vitimaria são conseqüências diretas da eficácia de atividades funcionais setoriais autônomas, diferentemente da primaria, intensiva, integrada e focada.

Tal atribuição de competências tem as vantagens de permitir amplo alcance de coordenação nacional de políticas, estratégias e ações específicas; aproveitar ao máximo estruturas existentes e experiências acumuladas; criar novas estruturas para setores não mais atendidos pelas antigas; e, sobretudo, dar foco ao enfrentamento de cada causa e conseqüência da criminalidade, otimizando, assim, o emprego dos recursos humanos, materiais e orçamentários disponíveis.

Como conclusão, podemos sintetizar o diagnostico e a solução dos problemas de Segurança Pública do País com as seguintes idéias: 1) a criminalidade socialmente relevante estrutura-se verticalmente, tendo como coluna vertebral, entre o topo e os níveis médios da pirâmide, o grande financiamento com capital ilegal, e, entre estes e a base, a hierarquia das quadrilhas; 2) o topo necessita vitalmente da lavagem de grande parte do dinheiro ilegal; 3) na base da pirâmide existem circunstancias sociais e culturais predominantemente criminógenas; 4) 0 enfrentamento da criminalidade requer ações preventivas e repressivas específicas integradas sistemicamente, envolvendo comunidades, municípios, estados, Governo Federal e, na prevenção primaria, o terceiro setor; 5) para tanto, os três níveis da administração pública devem organizar-se em sistemas.