A Lei nº 13.786/2018, os distratos no mercado imobiliário: Um passo para a construção de uma nova realidade. Segurança jurídica como pressuposto para investimentos

22 de janeiro de 2019

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Desde 2012, o mercado imobiliário discute o rompimento imotivado e unilateral dos contratos de compra de imóvel sob o regime da incorporação imobiliária, ou seja, dos imóveis adquiridos ainda durante a construção na forma da Lei no 4.591/1964.

Embora a legislação seja absolutamente clara em afirmar que tais contratos são irrevogáveis e irretratáveis, especialmente porque fazem parte de uma engrenagem jurídico-comercial em que o adimplemento de todos é o combustível do sucesso da incorporação imobiliária, cada vez mais se consolidou o entendimento de que, uma vez alteradas para pior as condições econômicas do consumidor à época da contratação, pode ele pretender o desfazimento do contrato, recebendo uma devolução de parte do que pagou.

Essa solução levou a milhares de desistências, gerando um estoque de imóveis nas incorporadoras muito difícil de administrar, especialmente com o mercado em crise, quando desaparecem os interessados em novas aquisições.

No início, esse fenômeno estava limitado a um grupo de consumidores que, como já dito, sofreram alterações em suas condições financeiras e que, por isso e apenas por isso, não podiam mais continuar pagando as prestações às quais haviam se obrigado por contrato.

Mas, estimulado por decisões judiciais de todos os tipos e, sem dúvida, incentivado por entidades de classe pretensamente representantes de todo o mercado imobiliário, o Congresso Nacional produziu mais uma obra prima: a Lei no 13.786 de 28 de dezembro de 2018, que já nasceu batizada de “Lei do Distrato”, certamente provocando arrepios no saudoso professor Caio Mário da Silva Pereira.

Depois que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) editou a Súmula 543, a jurisprudência e todos nós cometemos um erro histórico que foi enxergar nessa Súmula a permissão para o “distrato imotivado”, o que nunca foi uma verdade, como se pode alcançar pela simples leitura dos precedentes, claramente restritos à hipótese de distrato motivado, com causa e, principalmente, prova idônea dos motivos ensejadores do rompimento unilateral do contrato.

Tanto assim que, enormemente preocupado com o impacto econômico das decisões judiciais, o STJ incentivou a realização de diversos eventos acadêmicos, dos quais se pode destacar três deles, sendo dois no próprio Tribunal (‘A Incorporação Imobiliária na Perspectiva do STJ’, em 2017 e 2018) e outro no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (‘A Incorporação Imobiliária na Perspectiva do TJRJ’, em 2017), todos organizados pelo Instituto Justiça & Cidadania, nos quais a construção acadêmica e doutrinária ajudou à qualificação da posição jurisprudencial, em especial no início da discussão sobre a revisão da Súmula 543 do STJ, como deve ser, aliás, sempre que um problema atingir proporções sociais e econômicas de grande relevância.

Apesar de tudo isso, a não muito eficiente produção legislativa do país foi capaz de produzir um texto legal inábil o suficiente para ser, a um só tempo, ruim para o mercado imobiliário, para os consumidores coletivamente considerados e, por fim, para se antagonizar com a posição que vinha sendo construída sob a liderança revisionista do Poder Judiciário.

Há enormes defeitos que, diante do risco da proximidade de sua aplicação pelo Poder Judiciário, exigem indicação direta para o debate.

Uma lei tem utilidade quando pacifica conflitos, evita ações no Judiciário, consolida a jurisprudência dominante que seja contrária à legislação anterior ou permite que as partes a ela submetida desenvolvam seus negócios com previsibilidade, sabendo, antes, qual é a regra do jogo.

Essa nova regra não alcança nenhum desses requisitos de utilidade, conveniência e oportunidade.

O mais grave é permitir o distrato imotivado, sem razão, por simples desejo do consumidor que se desinteressa de cumprir, por capricho, aquilo a que se comprometera. Essa liberdade prejudica não apenas ao incorporador, mas ao coletivo de consumidores de cada incorporação imobiliária.

É absolutamente sem sentido admitir que alguém desista de um contrato licitamente assinado sem exigir que ele demonstre e prove um justo motivo, contemporâneo à celebração do contrato.

O segundo defeito é não distinguir o distrato­necessidade do distrato-especulação. Enquanto no primeiro caso é possível – embora indesejável – admitir o distrato em situações especiais, nas quais houver prova, no segundo caso é inadmissível permitir o distrato para os investidores ou para aqueles que acham terem feito um mau negócio, porque isso transformará os incorporadores em agentes financeiros obrigados a garantir para os investidores um retorno sem risco.

Essa liberalidade irá destruir o mercado imobiliário.

É preciso ter muito cuidado ao admitir o distrato de um contrato imobiliário. A incorporação imobiliária é um negócio hipercomplexo, no qual cada alteração em um de seus pilares poderá provocar o colapso de todo o sistema se não for coletivamente pensada e discutida.

É óbvio que a atividade do incorporador envolve riscos, como qualquer atividade empresarial. Mas, risco é uma coisa, medo é outra completamente diferente. Em nenhum país desenvolvido, a insegurança jurídica pode ser um risco aceitável e, no Brasil, passamos a ter medo da insegurança jurídica como se tem de uma assombração, pois ela acaba com a fronteira entre o permitido e o proibido, tornando viável (e, agora, legal) quebrar contratos imotivadamente, o que destrói um país e afasta investimentos.

Mas, no fundo, ainda é possível usar o velho ditado do “ruim com, pior sem” para abordar os pontos que foram introduzidos ou reavivados pela Lei, que começa oficializando no art. 35-A a obrigatoriedade de um quadro-resumo, já de considerável utilização pelo mercado imobiliário, com as condições principais do contrato, dentre elas as regras do distrato (inciso VI) que podem ser fixadas pelas partes, desde que respeitados os limites previstos pelo legislador.

Destaco o inciso XII – “o termo final para obtenção do auto de conclusão da obra (habite-se)” – pois pode, ao menos, colocar fim a uma discussão que me parece sem sentido: a obrigação contratual de fazer a obra termina com a obtenção do habite-se e a fase de entrega das chaves, que pré-exige a quitação do preço, e já não tem mais relação com a obrigação principal do contrato.

O art. 43-A é o único que consolida uma posição jurisprudencial dominante, ao admitir a validade da tolerância de até 180 dias para conclusão das obras, prazo no qual não haverá imposição de penalidades para a incorporadora.

Mas, ao fazê-lo, criou uma regra ou condição inútil, ao afirmar que o atraso não dará causa à resolução do contrato por parte do adquirente, já que admite o distrato imotivado, sendo irrelevante que se esteja no prazo de construção ou de tolerância. Para ser tecnicamente correta, a Lei deveria, então, vedar o distrato imotivado após a expedição do habite-se.

Só que, não apenas não fez isso, como legitimou a absurda hipótese de distrato imotivado após a entrega das chaves e sem qualquer limite temporal para a sua ocorrência.

Ainda no art. 43-A, o atraso da incorporadora é penalizado com multa de 1% sobre o valor pago, o que também é importante, embora se discuta o excesso na fixação de 1%, pois as indenizações eram fixadas com base no valor do imóvel, sem levar em consideração o que havia sido efetivamente pago pelo comprador.

Os pontos mais polêmicos estão, claro, na parte que deu nome à Lei, ou seja, nos efeitos econômicos do distrato, previstos no art. 67-A.

No distrato imotivado – na desistência do comprador ou na resolução por sua inadimplência – estabeleceu a Lei que poderá ser convencionada uma multa de até 25% do total pago. Além disso, o comprador desistente ou inadimplente perderá a comissão de corretagem que houver sido paga de acordo com as regras da decisão do STJ e, se houver sido disponibilizado para ele o imóvel, pagará ainda fruição de 0,5% do valor do contrato, o que é razoável, mais as despesas que pagaria como proprietário, tais como condomínios, impostos, etc.

Neste particular há uma certa reverência à Súmula 543, na sua versão equivocada, como se disse acima, acerca de admitir o distrato imotivado e fixar percentual de retenção até 25% mais a comissão de corretagem. A inovação vem na hipótese da incorporação estar submetida ao regime do patrimônio de afetação, o que ocorre quase sempre que há financiamento bancário para a construção ou implementação do Regime Especial Tributário. Nessa hipótese, a retenção poderá chegar a 50% e a devolução poderá se dar até 30 dias após a expedição do habite-se, o que não ocorre no caso anterior.

É possível compreender que aumentar a retenção em favor do incorporador seja uma tentativa de estimular o patrimônio de afetação, mas, em verdade, não faz o menor sentido jurídico ou financeiro fazer essa distinção, pois as incorporações imobiliárias já possuem um “sistema de vinculação de receitas”, como bem lembra o professor Melhim Chalhub. Ainda mais fazendo isso separando o consumidor de uma incorporação com afetação daquele em outra sem esse regime, quando as consequências do distrato são trágicas tanto em um quanto em outro modelo.

Um ponto de destaque, não pelo seu conteúdo, mas pela oportunidade que pode representar se avançada a discussão, está no §9o do art. 67-A, que afasta a multa se o desistente arrumar outro comprador para o imóvel, hipótese muito comum quando o mercado está aquecido, mas que, na prática, dificilmente ocorrerá, pois nessa o comprador irá preferir “salvar parte do seu dinheiro” e não terá as mesmas condições de oferta que a incorporadora.

Mas, é uma inovação que vale analisar para, junto com a do §7o do mesmo artigo, aprimorar e, ao se admitir o distrato, fixar o prazo para devolução quando houver a venda da unidade, pelo preço em que ela for vendida, pois aí sim ter-se-á um sistema justo e equilibrado, sendo desnecessário falar até mesmo em retenção, se a venda ocorrer em condições econômicas normais.

O que há mesmo a ser comemorado é o §14 do art. 67-A, que ratifica a validade do leilão extrajudicial, com ou sem alienação fiduciária em garantia, e garante que a restituição nesse caso, se houver, ocorrerá de acordo com as regras da legislação específica, sempre condicionada à existência de arrematante e ao preço da oferta.

Esse sim é um sistema equilibrado, às vezes maltratado por algumas decisões judiciais, que chegam mesmo a admitir distrato em hipóteses de alienação fiduciária ou depois de realizado o leilão, ferramenta que põe termo extrajudicial ao contrato.

Vale ressaltar que a Lei também disciplinou com as mesmas regras os loteamentos realizados sob a égide da Lei no 6.766/1979.

Como dito, não é a solução, mas também não é exatamente o fim dos tempos.

A edição da Lei aumentou o trabalho do Poder Judiciário. Agora, mais do que nunca, deverão avançar os trabalhos de overruling e, ao final, se caminhará para revisão da Súmula 543, pois nela nunca se poderia abrigar o distrato imotivado e, além disso, porque o raciocínio que levou a sua formação já não é mais consistente e as consequências da sua aplicação revelaram insuportáveis impactos econômicos no mercado imobiliário.

Como se não fosse pequeno esse desafio, deverá se ter profunda serenidade e equilíbrio no uso da Lei no 13.786/2018, não se afastando do caminho de convocar o Legislativo a se unir ao Judiciário, ao Executivo e ao mercado imobiliário para juntos acharem uma solução completa, sustentável e eficaz, advertidos todos que soluções unilaterais estarão longe de resolver o problema e perto de torná-lo definitivo e irrecuperável.

Há que se decidir, ainda, se a nova lei se aplicará aos contratos em curso ou apenas ao novos contratos, me parecendo ser essa última a interpretação mais técnica, embora seja razoável admitir que as decisões das ações de distrato ainda em curso possam revelar um aumento do percentual de retenção até o limite de 50%.

Pequenos passos seriam extremamente fáceis e valiosos, como, por exemplo, separar o comprador que precisa do distrato daquele especulador que quer desistir imotivadamente, exigindo prova das razões da desistência, permitindo o distrato no primeiro caso, mas apurando na hipótese concreta o percentual justo de retenção, e vedando, em qualquer hipótese, o distrato no segundo caso.

A insegurança jurídica assusta e mata os investimentos. Um país que premia o descumprimento imotivado dos contratos é um país atrasado, forte candidato à barbárie jurídica e, infelizmente, não é ainda a nova Lei dos Distratos que nos colocará em caminho mais seguro, mas, sem dúvida, é um passo nessa direção.

 

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